Mais Crimen Sollicitationis

Isto não é uma questão de anti-catolicismo, no sentido da malícia com a qual certos segmentos da sociedade americana sempre abordaram a Igreja Católica. Isto é um novo fenômeno – uma tendência de até mesmo as pessoas imparciais [fair-minded] acreditarem nas piores interpretações sobre qualquer história envolvendo a Igreja.

– John L. Allen Jr., August 15, 2003.

As minhas trocas de farpas com o pessoa da UNA deram resultado, motivo pelo qual fico muitíssimo feliz. Os ateus preconceituosos deram-se ao inaudito e louvável trabalho de pensar por conta própria, de ir às fontes e parar com a síndrome-de-papagaio de repetição de chavões. Não conseguiram ainda escapar do fenômeno cuja existência o Allen Jr. evoca na frase em epígrafe, mas já é um bom começo. Oxalá a progressiva abertura da mente à verdade e à honestidade termine por abrir enfim espaço Àquele que é a Verdade.

Após a irresponsável publicação de um documentário velho da BBC sem checar as fontes (e, aliás, repleto de erros crassos de português; ser obrigado a ler “pretesto” foi uma coisa realmente frustrante…), a UNA me surpreendeu com a publicação de um texto incomparavelmente melhor sobre o mesmo assunto, tanto que eu nem seria capaz de atribuir ambos ao mesmo blog. Não vou me deter no exame do documentário: basta dizer que a acusação principal – de que a Crimen Sollicitationis tenciona impedir que os padres pedófilos sejam punidos – é  totalmente descabida, pois segredo canônico não se confunde com investigações policiais.

Quanto ao texto da UNA, é uma pena que o louvável esforço investigativo feito por eles não tenha sido um pouco maior. Se eles tivessem pesquisado um pouquinho a mais, iriam encontrar esta discussão sobre o documento na Wikipedia inglesa que diz que a tradução para o inglês está cheia de erros. Se eles entendessem melhor sobre o assunto que estão falando, também chegariam facilmente à mesma conclusão, porque há trechos do documento que simplesmente não fazem sentido. Por exemplo, o número 11 fala em “penalty of excommunication latae sententiae, ipso facto and without any declaration [of such a penalty] having been incurred and reserved to the sole person of the Supreme Pontiff, even to the exclusion of the Sacred Penitentiary” (Crimen Sollicitationis, 11). Passei um tempo enorme tentando entender o que raios era essa “exclusão da Sagrada Penitenciária” [cheguei a cogitar se o documento não estaria dizendo que a pessoa estava excluída do Sacramento da Penitência], até me deparar com a tradução melhor na supracitada discussão da Wikipedia: a excomunhão é “reserved to the Supreme Pontiff in person alone, excluding even the Apostolic Penitentiary”.

As fontes consultadas pela UNA, portanto, por serem inacuradas, comprometem seriamente a análise que eles fizeram sobre o documento. Algumas coisas ditas, evidentemente, são verdadeiras. Mas outras são erros decorrentes quer da má tradução para o inglês, quer da falta de conhecimento que têm os ateus sobre as leis canônicas da Igreja Católica.

Sobre os erros de tradução, a citada discussão da Wikipedia disse que, em um ponto, chegou-se ao absurdo de que the word “excepted” has been transformed into “accepted”, thereby reversing the meaning (!!!). E este ponto é precisamente o parágrafo 72 da instrução, usado pela UNA para mostrar que a Igreja impunha silêncio às vítimas de pedofilia. Na tradução do blog ateu:

72. Essas coisas devem ser tratadas conforme [as regras dos] pecados de solicitação [que] são válidas aqui, mudando apenas aquelas coisas necessárias para adaptá-las à sua natureza exata, a de pior de todos os pecados [o texto segue e adverte que todos estão obrigados a denunciar um eventual transgressor ao Superior Hierárquico, sob as penas da lei da Igreja, a menos que o conhecimento dos fatos tenha sido obtido por  Segredo de Confissão].

Isto foi dito baseado na versão inglesa do documento, que diz (grifos meus) “having accepted the obligation of the denunciation from the positive law of the Church”. Contudo, o original em latim diz claramente (de novo, meus grifos) “excepta obligatione denunciationis ex lege Ecclesiae positiva”. Francamente, isso não é nem mesmo uma falsa cognata! O que impediu o sujeito que fez a tradução para o inglês de escrever a tradução imediata “excepting the obligation of the denunciation”? Devido ao erro de tradução e à inversão do sentido da frase, a UNA disse que, “nos casos de abuso de menores, prevalece a lei da imposição do silêncio”. Não é verdade. Nos casos de abuso de menores – o “pior de todos os pecados” -, não existe a obrigação de se fazer a denúncia ao Superior e, por conseguinte, não existe o voto de silêncio que é feito nesta denúncia.

Na verdade, não fosse – de novo – por aquele estranho fenômeno ao qual alude o jornalista na citação em epígrafe, os ateus deveriam ter percebido que havia alguma coisa estranha. Imposição de silêncio pontifício para casos de parafilias com “PORCOS, ÉGUAS, GALINHAS E VACAS”? Isso pode fazer sentido na cabeça atéia preconceituosa, mas ofende o bom senso. O voto de silêncio que é exigido nos casos de crimes de solicitação decorre da natureza sigilosa da penitência sacramental. O segredo de confissão é absolutamente inviolável e, por isso, as denúncias de crimes que ocorrem neste contexto também estão envoltas em sigilo. Não havendo Confissão Sacramental, não existe imposição de segredo; e, assim, fica desmascarada esta que talvez seja a mais cretina calúnia contra a Igreja que já tive a oportunidade de analisar aqui no Deus lo Vult!. Agradeço à UNA pela oportunidade.

Por último, e já esclarecida a questão principal e mais importante sobre a falsa “imposição de silêncio” da Igreja às vítimas de pedofilia, resta uma questão de somenos importância sobre se a Crimen Sollicitationis ainda está em vigor ou não. O cân. 6, logo na segunda página do CIC, diz o que segue:

Cân. 6 – §1. Com a entrada em vigor deste Código, são ab-rogados:

[…]

3º Quaisquer leis penais, universais ou particulares, dadas pela Sé Apostólica, a não ser que sejam acolhidas neste Código;

[Código de Direito Canônico]

Sempre soube que, com a entrada em vigor do Código de 1983, ficaram ab-rogadas as leis penais – incluindo, portanto, as excomunhões – promulgadas anteriormente. Na verdade, todo católico sabe (aliás, eu já disse aqui mais de uma vez) que só existem oito excomunhões automáticas, que são (1) revelação de sigilo sacramental, (2) absolvição de cúmplice em pecado contra o Sexto Mandamento, (3) agressão física contra o Romano Pontífice, (4) profanação eucarística, (5) heresia, apostasia ou cisma, (6) sagração episcopal sem mandato pontifício, (7) aborto provocado e (8) tentativa de ordenação feminina [esta, é recente]. Não existe nenhuma excomunhão automática para quem “revela Segredo do Santo Ofício”, desde a promulgação do Código vigente.

No entanto, o documento usado pela UNA para “provar” que a Crimen Sollicitationis continua em vigor é a Graviora Delicta. Esta Carta Apostólica não “evoca e confirma” a instrução de 1962 como disseram os ateus – ela apenas cita a instrução dizendo que até o momento estava em vigor. Na minha opinião, ela foi substituída pela própria Graviora Delicta, por força do motu proprio Sacramentorum Sanctitatis Tutela; por falta de competência, deixo no entanto esta questão para os canonistas, porque ela não faz muita diferença, já que a instrução de 2001 também fala em segredo pontifício para todas as coisas que nela são tratadas: Huiusmodi causae secreto pontificio subiectae sunt.

Demonstrado está, portanto, que a Igreja nunca impôs silêncio às vítimas de pedofilia, nem nos dias de hoje e nem à época da Crimen Sollicitationis. O Segredo Pontifício, antigo “Segredo do Santo Ofício”, decorre – no caso em pauta – do sigilo sacramental e não de uma tentativa da Igreja de “encobrir” os crimes dos Seus pastores; e este segredo, contudo, não se aplica aos casos de pedofilia, ao contrário do que o artigo da UNA se esforçou para provar.