Os perpétuos incapazes

Hoje as pessoas têm uma verdadeira aversão à pena de morte. Tratam-na como se fosse uma violência, uma agressão, uma injustiça; mas à primeira vista tanta ojeriza parece não ter sentido. Afinal de contas, por definição, toda e qualquer pena legitimamente aplicada é de algum modo um exercício de força, é um mal infligido, é um dano causado; não fosse desse modo, pena não seria. Mesmo assim, a coisa mais comum é encontrar pessoas que exercem, sobre a pena capital, um juízo de reprovação por vezes até mais severo do que contra o próprio crime de homicídio. Como se explica isso?

Penso que há dois pressupostos elípticos que ajudam a compreender essa mentalidade. Há, primeiro, uma exacerbação da sensibilidade cristã. Aquela história de que deveríamos oferecer a outra face a quem nos esbofeteia ficou de tal modo impregnada na cultura ocidental que por (muitas) vezes, ao não agirmos assim, sentimos que estamos violando um dever. A metáfora do sândalo perfumando o machado que o derruba tornou-se universal; e nós, quando nos negamos a perfumar aqueles que nos destroem, percebemo-nos como se fôssemos de algum modo transgressores de uma lei ainda mais alta do que a que proíbe o crime.

A verdade é que parece de algum modo mais censurável a pena que o crime por uma razão análoga àquela que faz com que a vingança seja por vezes mais reprovável que a própria agressão. O agressor avilta-se pelo próprio fato de agredir; já o agredido, espera-se que seja magnânimo. Se o agressor praticou o mal movido por sabe-se lá que condições — a necessidade, o medo, o impulso –, o mesmo não se pode dizer da vingança: ela é sempre premeditada, ela não tem outro propósito senão retribuir o mal sofrido. E quando se institucionaliza a pena de morte o contraste fica ainda mais marcante: é fácil imaginar um criminoso premido pelas circunstâncias, enquanto o mesmo não se pode jamais dizer da impessoalidade burocrática da justiça.

Mas há aqui também um outro pressuposto inconfessado: é a noção de que a civilização é superior ao crime e, portanto, nós, homens de bem, somos de alguma maneira superiores aos criminosos — não estando assim autorizados a agir com eles da mesma forma que eles agem para conosco. Em crianças nós toleramos certos comportamentos que, em um adulto, seriam dignos da mais áspera censura; repreender uma criança da mesma forma que repreenderíamos um adulto soa-nos um absurdo injustificável. Se uma criança nos bate com todas as suas forças, nós nem assim poderíamos bater-lhe de volta com toda a força de que dispomos. Ora, o criminoso está em um nível evolutivo inferior ao homem civilizado — e, portanto, ainda que ele nos faça todo o mal que esteja ao seu alcance, nós não lhe poderemos causar em resposta todo o dano de que somos capazes. Não deixa assim de ser irônico que o humanismo abolicionista tenha esses rasgos de condescendência: a pena capital é repelida porque, coitado, o criminoso não a merece.

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O estranho é que a abolição da pena de morte termina por resvalar, no limite, para a supressão de toda e qualquer pena. Executar um criminoso é uma crueldade, concedamos; mas não é também uma coisa cruel encarcerar um infeliz? Se um assassino não merece ser executado porque a sociedade não pode pagar o mal com o mal, por que um sequestrador mereceria ser encarcerado? Tal não seria punir a privação da liberdade do cativeiro com a privação da liberdade do cárcere? Se não aceitamos que se possa castigar unicamente para pagar o mal praticado — a clássica função retributiva da pena –, haverá realmente boas razões para se castigar por qualquer motivo que seja? Não deveríamos procurar outras formas de resolver os conflitos, formas que causem menos danos?

Gustavo Corção, falando sobre o valor da vida, escreveu certa vez que a consciência católica sempre viu na pena capital «um recurso extremo graças ao qual os homens mais perversos recuperaram a dignidade perdida e o direito ao respeito de todos». A afirmação, que provavelmente será considerada estranha aos leitores contemporâneos, tem no entanto um fundamento bastante simples: nós só atribuímos responsabilidades pelos seus atos àqueles que são perfeitos como nós. Inimputáveis são os loucos e as crianças — aqueles coitados que, na fórmula jurídica, são incapazes de perceber o caráter ilícito de sua atitude ou de se determinar de acordo com esse entendimento (Código Penal, 26). Inimputáveis são seres humanos defeituosos, incompletos, inferiores. Apregoar o abolicionismo universal das penas, assim, é no fundo tratar a todos como perpétuos incapazes, é não lhes conceder a plenitude da condição humana.

Só existe uma única Religião Verdadeira

A origem das falsas religiões é uma coisa que se pode investigar em diversos planos.

Do ponto de vista do Cristianismo, munidos da Verdade Revelada, lançando os olhos sobre o fenômeno religioso a partir do terreno elevado da Igreja de Cristo que é «coluna e sustentáculo da Verdade», não podemos senão concluir que, no início das falsas religiões — que mais afastam do que aproximam de Deus –, está o Demônio, o Pai da Mentira, aquele cujo papel na história da humanidade é o de roubar, matar e destruir. É neste sentido que S. Pio de Pietrelcina dizia, de maneira jocosa, que o Protestantismo também tivera uma origem sobrenatural, uma vez que fora fundado por Satanás.

Contudo, à luz da história humana auto-referenciada, do ponto de vista do homem desterrado em cujo interior ainda pulsa o anelo pelo Paraíso Perdido, ou mesmo — por que não? — munidos apenas da teologia natural, não podemos ser tão ligeiros na divisão dicotômica do mundo entre as inspirações divinas e o bafo sulfúreo do Demônio. O homem também pode errar, e erra amiúde, por conta própria, sem que a isso precise ser conduzido tendo Lúcifer ao braço. O erro religioso de boa vontade é certamente mais comum do que o satanismo stricto sensu: há decerto mais pessoas tomando demônios por Deus do que trocando o Deus que se sabe verdadeiro pelos diabos sabidamente exsurgidos do Inferno. E isto sem nenhumas considerações de ordem soteriológica, que as condições subjetivas de cada um identificar o demônio que se lhe antolha Deus haverá de julgar. Aqui se cogita tão-somente do motor da adesão à falsa crença, não do seu valor salvífico.

Da mesma forma que não nos podemos esquecer de que só existe uma única Religião Verdadeira, da qual todas as outras são ou sombras ou caricaturas, não nos é dado também olvidar que o fato mesmo de alguém aderir a uma falsa religião significa, ao menos ordinariamente, que o problema de Deus se coloca para esta pessoa e ela o considera em alguma medida relevante. Em resumo: que Satanás espalha, sim, ídolos pelo mundo, mas só se prostra diante dos ídolos quem ao menos deseja se relacionar com o Além.

Construir «uma torre cujo cimo atinja os céus» (cf. Gn XI, 4) é pecado; mas o pecado está no meio de que se serve, não no fim que se almeja. Porque atingir os céus é um anseio natural do ser humano criado para Deus — do homem cujo coração vive inquieto enquanto n’Ele não repousa, para usar a passagem clássica de Sto. Agostinho. E em tempos onde querem sufocar este ditame da consciência, talvez não seja tão imprudente assim valorizá-lo — ainda que apenas o seu reflexo distorcido na fracassada odisséia religiosa do homem distante da Revelação.

As quatro paredes do materialismo são as quatro paredes de uma prisão

[Tolkien e Lewis conversando sobre o mito. A passagem é clássica; recentemente, encontrei-a dramatizada neste vídeo do youtube. Vale acompanhar. Cliquem no botão de “Closed Caption” (CC, embaixo da barra de progresso, à direita) para ativar a legenda em português, caso ela já não apareça.]

TOLKIEN: – [A estória do Cristianismo] tem tudo o que o coração humano deseja, porque tem sido contada por Aquele que é a satisfação do próprio desejo. É uma estória que começa e termina com a alegria.

LEWIS: – Mas só porque uma estória traz alegria, isso não significa necessariamente que é verdadeira. Há muitos mitos alegres e eles não me parecem verdadeiros, me parecem falsos.

TOLKIEN: – E ainda ESSA estória tem a inconsistência da realidade. Não há nenhum outro conto jamais contado que os homens consideraram que era verdade, e nenhum que tantos céticos vieram a aceitar como verdade.

LEWIS: – Talvez seja apenas um artifício muito bem contado…

TOLKIEN: – Essa história tem o supremo convincente tom de arte primária, não ficção! Mas de Criação. E rejeitar isso leva a escuridão ou a ira. De fato, na minha própria vida ela me levou da escuridão para a luz.

LEWIS: – Surpreendente. Tollers, você me surpreendeu. Você absolutamente me surpreendeu.

Extermínio de cristãos no Egito: a face perseguida do Cristianismo

Li no Reinaldo Azevedo e nem vou me demorar muito em comentários: vejam diretamente lá. «A verdade, já escrevi aqui, é que cadáveres cristãos rendem poucas perorações humanistas, embora seja o cristianismo a religião mais perseguida do mundo – a rigor, é a única cassada e caçada em vários cantos do planeta. Um cadáver cristão jamais atingirá a altitude moral de um cadáver palestino, por exemplo, porque lhe faltam as carpideiras da ideologia e do vitimismo profissional».

Enquanto isto, aqui nos trópicos, a perseguição (ainda) é de outra natureza: moral. Eu comentava ontem sobre os crucifixos em prédios públicos, mas o ataque ideológico ao Cristianismo age em diversas frentes. Acho que era o Orlando Fedeli quem dizia que, em Paris, aos finais do século XVIII, começaram zombando dos católicos. Em todo caso, o fato é que perseguição moral é já perseguição, e que Cristo ainda hoje encontra (em triste abundância para o “civilizado” século XXI!) quem derrame o seu sangue por Ele. Sem que ninguém se importe, ocultos sob o véu do silêncio cúmplice da mídia.

Rezemos pela Igreja perseguida. E não nos calemos. Nem desanimemos, porque o sangue dos mártires é ainda hoje – como era no passado – semente de cristãos.

Kardec e Talião

Está rolando um interessante debate nos comentários de um texto do Deus lo Vult! do mês passado, sobre espiritismo e catolicismo. Trago de novo o assunto à baila só para fazer algumas considerações ligeiras sobre Justiça, Misericórdia y otras cositas más.

Antes de qualquer coisa, salta aos olhos como os espíritas – muito provavelmente sem perceberem – aplicam com uma extrema rigidez a Lex Talionis que criticam no Velho Testamento, elevando-a contudo a patamares inacreditáveis. “Olho por olho, dente por dente” – muitos consideram isso bárbaro e desumano. No entanto, os espíritas aplicam o mesmíssimo princípio a todas as coisas que acontecem no mundo e pensam com isso resolver o problema do mal!

Como responde um espírita à pergunta “por que sofro”? Ele diz “sofro porque, em uma vida passada, eu fiz alguém sofrer”. Olho por olho, dente por dente, dor por dor: esta é a Doutrina Espírita. A tal “lei da causa e efeito” com sua mecanicidade só confere um status metafísico à lei de Talião, que passa a ser absoluta e implacável. “Nenhum mal causado fica impune”. Se Talião é desumano e inaceitável, muito mais inaceitável é este “super-Talião” onipresente que os espíritas acreditam ser Deus.

Não há espaço para o perdão na Doutrina Espírita, por causa da lei acima. Se eu causei um mal, eu vou precisar sofrer um mal “equivalente” para poder lavar a minha alma da mancha da culpa adquirida. Se não for nesta vida, será numa próxima. E, com isso, julgam explicados os problemas do mundo… mas a que preço? Por acaso viver em um mundo nestes moldes é reconfortante? Por acaso isto é “Justiça”?

Além deste “talionismo espiritual”, os espíritas acreditam em um igualitarismo totalmente ilógico. A parábola do administrador que dá “a um, cinco talentos; a outro, dois talentos; e a outro, um talento” simplesmente não cabe na lógica espírita. Provavelmente eles vão explicar a diferença de tratamento entre os empregados do patrão com base em uma “vida pretérita” deles. Eles não aceitam que Deus possa dar a um mais do que a outros – mesmo quando Nosso Senhor, a Quem eles têm por “mestre”, por diversas vezes deu mostras claras e inequívocas de agir com desigualdade. Oras, por que algumas pessoas nascem com saúde, outras com saúde e dinheiro, outras com saúde, dinheiro e beleza, etc? Por que o administrador dá um talento a um, a outro dois, a outro cinco? Acaso é injusto o administrador? Acaso Deus é injusto quando distribui os Seus bens da maneira como Lhe apraz?

E quanto aos trabalhadores da última hora (Mt 20, 1-16)? Que trabalharam somente uma hora e ganharam exatamente a mesma coisa que os que suportaram “o peso do dia e do calor”? Mas é precisamente a este “pai de família”, a quem é permitido fazer dos seus bens o que lhe apraz, que o Reino dos Céus é comparado. Onde fica o igualitarismo espírita? Por que, então, o sujeito que se arrepender na hora da morte vai entrar no mesmo Reino dos Céus onde a outra pessoa que passou a vida toda sendo temente a Deus também estará? Nosso Senhor já respondeu a estas questões! Elas só são difíceis para quem acredita que Talião é o Senhor do Universo, e que as coisas são regidas por um mecanicismo igualitário cego e impessoal. Crêem em Deus os espíritas? Por certo, não no mesmo Deus que eu creio.

O Cristianismo tem o mérito de dar valor ao sofrimento. Mas não como na Doutrina Espírita – o sofrimento não é uma “punição” por pecados de vidas passadas, mas sim uma oportunidade de santificação. Nosso Senhor era Justo, nele não havia pecado e, mesmo assim, Ele sofreu – é por isso que o sofrimento humano tem valor. Ele foi “divinizado” quando Deus tomou as nossas dores. Ele foi o preço da nossa Redenção; é por meio do sofrimento, então, que se alcança o Reino dos Céus, não na lógica talionesca espírita, mas na lógica da gratuidade do Amor Divino. O problema do mal só encontra sentido na Cruz de Nosso Senhor – é para Ela que os espíritas deveriam olhar, ao se questionarem sobre os males do mundo. Infelizmente, eles preferiram olhar para a Lei de Talião. São tão poucos os pontos em comum entre a doutrina de Kardec e a de Nosso Senhor Jesus Cristo, que somente com um olhar totalmente superficial é possível julgá-las parecidas ou mesmo compatíveis.

Os frutos da Canção Nova

[DISCLAIMER: aviso aos desavisados que este post é uma ironia. Após alguns comentários recebidos, talvez seja importante deixar as coisas claras. Peço desculpas se, inadvertidamente, induzi alguém ao erro com esta postagem.]

Enquanto os maledicentes de plantão questionavam a aproximação entre a Canção Nova e a presidenciável Dilma Rousseff, aqueles que verdadeiramente amam a Deus acima de todas as coisas e trabalham, com afinco, pela salvação das almas, não se deixaram desanimar nem por um instante. E continuaram investindo na Dilma. E finalmente os resultados do seu apostolado são já visíveis.

Eis os incontestáveis frutos obtidos pela Canção Nova na vida da Dilma. A matéria é da Folha de São Paulo. Trata-se de uma clara e evidente aproximação da petista ao catolicismo, devidamente registrada ao longo do tempo, constando somente de declarações públicas. De uma eficácia de fazer inveja aos tradicionais modelos de apostolado! E, quando pensávamos que a Canção Nova estava se vendendo ao petismo, era o contrário: na verdade, ela se fazia de morta para “roubar” – no bom sentido, claro – o coveiro. Como São Paulo, a CN fez-se petista e abortista para salvar os petistas e abortistas. E aquela que se dizia agnóstica, agora se diz publicamente católica – ainda que meio titubeante.

Pelo andar da carruagem, daqui para as eleições de outubro a Dilma será católica praticante de comunhão diária. Uma alma arrancada às garras de Satanás, para a maior glória de Deus. Parabéns, Canção Nova!

Falta de Fé?

A charge lusitana acima foi-me enviada por email, e está disponível em um portal ateu. Alguém me perguntou “como refutar”. Mas refutar o quê? Nada existe para ser refutado, porque há vacuidade de argumentos! A charge é somente uma piada boba direcionada a uma caricatura tão grotesca da Igreja Católica que, sinceramente, só com muita ignorância ou má fé para confundir com Ela.

Qual foi a parte do Cristianismo que os anti-clericais ainda não entenderam? A Crucificação de Nosso Senhor? A perseguição contra os cristãos executada pelo Império Romano? O jugo muçulmano? A Revolução Francesa? As perseguições comunistas? Qual página da História da Igreja pode ser aberta sem que se encontre nela a mancha de sangue de cristãos assassinados por odium fidei? E, depois de tudo isso, como é possível que os inimigos da Igreja ainda pensem que a Fé concede uma espécie de “corpo fechado”, de salvo-conduto em meio às tribulações desta vida?

Será possível que os anti-clericais nos julguem esquizofrênicos? Nós sabemos – na nossa própria pele! – que a Fé cristã não torna ninguém imune aos sofrimentos humanos. Isto nunca, absolutamente nunca, esteve em discussão. O Cristianismo nunca foi apresentado como “basta ter Fé que nada de mal vai lhe acontecer”. Qual o motivo, então, da insistência na caricatura barata?

Só posso conceber isso como sendo uma recusa a enfrentar o inimigo real. Se não existe brecha nas muralhas da Igreja por meio da qual Ela possa ser atacada, então não sobra aos anti-clericais outra opção que não apelar para o velho sofisma do espantalho. Pinte-se uma caricatura grotesca do Cristianismo (pouco importa o quão distante ela esteja da realidade) e deboche-se dela, pulverizando-a impiedosamente. O que conseguem com isso os anti-clericais? Julgam atingir a Igreja? Ao contrário, só demonstram a sua própria incompetência. Tais expedientes só mostram que eles não sabem, ou não querem saber, contra o quê protestam. Por não conseguirem atacar a Igreja ou não saberem o que Ela é, comprazem-se em espezinhar espantalhos.

Há uma frase dos Salmos aqui na barra lateral do Deus lo Vult! da qual eu gosto particularmente. Diz “se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os construtores; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigiam as sentinelas”. Mostra – agora sim! – a Fé Cristã da forma como ela é: os esforços humanos são inócuos sem o auxílio do Senhor, mas de forma alguma a amizade do Senhor dos Exércitos “dispensa” os homens de, por sua parte, esforçarem-se. Quando o Senhor guarda a cidade, nem por isso as sentinelas podem dormir. Isto é tão claro em toda a história do judaísmo e do Cristianismo que, sinceramente, é frustrante que os anti-clericais ainda não tenham percebido. E este problema não é de falta de Fé. É falta de inteligência ou de caráter mesmo.

Os paradoxos do Cristianismo – Chesterton

Este estranho efeito provocado pelos grandes agnósticos, de levantarem dúvidas ainda mais profundas do que as suas próprias, poda ser exemplificado de várias maneiras. Citarei apenas uma. Quando li e reli todos os relatos não-cristãos e anticristãos a respeito da Fé, de Huxley a Bradlaugh, logo uma lenta e horrível impressão gravou-se, gradual mas graficamente, sobre o meu espírito – a impressão de que o Cristianismo devia ser algo extraordinário. De fato, o Cristianismo (como eu o entendia) tinha os mais  violentos vícios, mas tinha também, aparentemente, o místico talento de conciliar defeitos que pareciam incompatíveis entre si. Atacavam-no por todos os lados e pelas mais contraditórias razões. Assim que um racionalista acabava de demonstrar estar o Cristianismo demasiadamente longe para o leste, outro vinha demonstrar, com igual clareza, que ele estava muito mais longe para o oeste. E tão logo minha indignação esmorecera perante sua angular e agressiva quadratura, logo minha atenção era despertada para observar e condenar sua enervante e sensual esfericidade. Caso algum leitor não tenha compreendido o que quero dizer, dar-lhe-ei tantos exemplos quantos, ao acaso, lembrar-me a respeito desta auto-contradição do ataque cético. Começarei por apresentar quatro ou cinco exemplos; existem mais de cinqüenta.

Por exemplo, deixei-me influenciar bastante pelo eloqüente ataque contra o Cristianismo por sua desumana melancolia, pois sempre pensei (e ainda penso) que o pessimismo sincero é o pecado imperdoável. O falso pessimismo é uma realização social, mais aceitável do que qualquer outra coisa e, felizmente, quase todo o pessimismo carece de sinceridade. Mas, se o Cristianismo fosse, como se costumava dizer, algo meramente pessimista e contrário à vida, então eu estaria inteiramente disposto a mandar pelos ares a Catedral de S. Paulo. O mais extraordinário, porém, é o seguinte: provaram-me, no Capítulo I (para minha absoluta satisfação), que o Cristianismo era demasiadamente pessimista; mas, depois, no Capítulo II, provaram-me que ele era, em grande parte, otimista demais. Uma das acusações contra o Cristianismo era a de que ele impedia os homens, por meio de lágrimas e terrores mórbidos, de procurarem a alegria e a liberdade no seio da Natureza. Outra acusação, porém, era que ele confortava os homens com uma fictícia providência e os colocava numa creche rosa e branca. Um grande agnóstico perguntava por que motivo a Natureza não era suficientemente bela, e por que razão custava tanto ser livre. Outro agnóstico argumentava que o otimismo cristão – “esse vestido ‘de mentirinha’ tecido por mãos piedosas” – escondia de nós o fato de que a Natureza era feia e que era impossível ser livre. Quando um racionalista classificava o Cristianismo como um pesadelo, já outro começava a chamá-lo de paraíso dos tolos. Isso me intrigavam porque tais acusações pareciam-me incompatíveis. O Cristianismo não podia ser, ao mesmo tempo, uma máscara preta sobre um mundo branco e uma máscara branca sobre um mundo preto. A situação de um cristão não podia ser, ao mesmo tempo, tão confortável a ponto de ser ele um covarde para prender-se a ela, ou tão desconfortável a ponto de ser um tolo para nela permanecer. Se o Cristianismo deturpava a visão humana, devia deturpá-la de uma forma ou de outra: o cristão não poderia usar, ao mesmo tempo, óculos verde e óculos cor-de-rosa. E, como todos os rapazes daquele tempo, eu repetia com terrível alegria as zombarias que Swinburne proferia contra a monotonia do credo:

“Venceste, ó pálido Galileu, e o Mundo tornou-se sombrio com o Teu hálito”.

Mas, quando li as narrativas deste mesmo poeta acerca do paganismo (como em “Atlanta”), cheguei à conclusão de que o Mundo era ainda mais sombrio, se isso fosse possível, antes do Galileu bafejá-lo com o seu sopro, do que depois disso. Certamente o poeta afirmava, em abstrato, que a própria vida era escura como breu. E no entanto, de uma forma ou de outra, o Cristianismo a tinha obscurecido ainda mais. O mesmo homem que acusava o Cristianismo de pessimismo era, ele próprio, um pessimista. Achei que devia haver algo errado. E, num momento de exaltação, veio-me à mente a idéia de que aqueles talvez não fossem os melhores juízes da relação entre a religião e a felicidade, pois não possuíam nem uma coisa nem outra.

Deve-se compreender que não concluí, apressadamente, que as acusações eram falsas ou que os acusadores não passavam de loucos. Apenas deduzi que o Cristianismo deveria ser algo mais estranho e perverso do que se pretendia afirmar. Uma coisa pode ter esses dois defeitos opostos, mas era necessário que fosse bastante estranha para poder concentrar tais características. Um homem podia ser muito gordo em uma parte do corpo e muito magro em outra, mas seria preciso que tivesse uma compleição deveras singular. Nesse ponto, todos os meus pensamentos centravam-se, apenas, na bizarra forma da religião cristã, sem atribuir qualquer forma bizarra ao pensamento racionalista.

Segue-se outro caso semelhante. Uma das coisas que eu julgava que mais depunham contra o Cristianismo era a acusação que lhe faziam, de que havia algo de tímido, de monacal e de desumano em tudo o que se costuma chamar de “cristão”, especialmente sua atitude perante a resistência e a luta. Os grandes céticos do século XIX eram, em grande parte, viris. Bradlaugh, de forma expansiva, e Huxley, de forma reservada, eram, decididamente, homens. Em comparação, parecia aceitável que existisse algo de fraco e de excessivamente paciente nos ensinamentos cristãos. O paradoxo do Evangelho acerca da outra face, o fato dos padres nunca lutarem em guerras, uma centena de coisas, enfim, tornava plausível a acusação de que o Cristianismo era uma tentativa de transformar o homem em um cordeiro. Li isso e acreditei, e, se não tivesse lido nada diferente, continuaria a acreditar. No entanto, li algo muito diferente depois. Virei a página seguinte do meu manual agnóstico, e logo meu cérebro ficou de pernas para o ar. Descobri, então, que tinha de odiar o Cristianismo, não por combater pouco, mas por combater demasiado. A religião cristã parecia a mãe das guerras. O Cristianismo tinha inundado o mundo em sangue. Eu, que havia ficado zangado com o Cristianismo por ele nunca se zangar, tinha, agora, de zangar-me com ele, porque sua fúria havia sido a coisa mais horrível e mais monstruosa da História da Humanidade. O seu ódio embebera-se na Terra e fumegara até o Sol. As mesmas pessoas que criticavam o Cristianismo por sua mansidão e pela não-resistência dos mosteiros eram as que vinham, agora, acusá-lo pela violência e pela bravura das Cruzadas. Fora por culpa do pobre e velho cristianismo (de uma forma ou de outra) que Eduardo, o Confessor, não combatera, e Ricardo Coração de Leão, sim. Os Quackers (assim ouvíamos dizer) eram os únicos cristãos típicos e, no entanto, os massacres de Cromwell e de Alba eram crimes tipicamente cristãos. O que tudo isso queria dizer? Que Cristianismo era este que sempre proibia as guerras e sempre estava a provocá-las? Qual poderia ser a natureza de uma coisa que era insultada, primeiramente, por não combater e, depois, por estar sempre envolvida em lutas? Em que mundo de enigmas se gerara esse monstruoso assassino e essa monstruosa mansidão? A forma do Cristianismo tornava-se mais estranha a cada instante.

Passo, agora, ao terceiro caso; o mais estranho de todos, porque envolve uma objeção real contra a Fé. A única objeção real contra a religião cristã é o fato [de] ser ela uma religião. O Mundo é um grande lugar, habitado por povos das mais diferentes espécies. O Cristianismo (parece-me razoável fazer esta afirmação) está limitado a um tipo de povo: surgiu na Palestina, e, praticamente, parou na Europa. Esse argumento impressionou-me fortemente na mocidade, e senti-me como que arrastado para a doutrina que sempre fora pregada nas sociedades éticas, isto é, a doutrina segunda a qual existe uma grande e inconsciente igreja que pertence a toda a Humanidade, fundada sobre a onipresença da consciência humana. Os credos – dizia-se então – dividiam os homens, mas a moral ao menos acabava por uni-los. A alma podia procurar as mais estranhas e mais remotas terras e épocas, e, ainda assim, encontraria o essencial senso comum ético. Podia encontrar Confúcio sob as árvores do Ocidente, mas encontrá-lo-ia escrevendo: “Não roubarás”. Podia decifrar os mais obscuros hieróglifos encontrados no mais primitivo deserto, e o seu significado, depois de decifrado, seria este: “Os meninos devem dizer a verdade”. Eu acreditava nesta doutrina da irmandade de todos os homens que diz respeito à posse de um senso moral, e nela acredito ainda, como acredito em outras coisas. Eu ficava, então, muito irritado com o Cristianismo, porque sugeria (como eu supunha) a idéia de que todas as épocas e impérios dos homens tinham escapado, inteiramente, a esta luz da justiça e da razão. Mas encontrei, depois, algo surpreendente. Verifiquei que as pessoas que diziam ser a Humanidade uma Igreja, de Platão a Emerson, eram as mesmas que afirmavam ter a moralidade mudado totalmente, afirmando, ainda, que o que era considerado certo em uma época já não o era em outra. Se eu pedisse, digamos, um altar, responder-me-iam que não havia necessidade dele, pois os nossos irmãos nos haviam deixado claros oráculos e um credo, nos seus ideais e costumes universais. Mas, se eu, serenamente, argumentasse que um dos costumes universais do homem era ter um altar, então os meus agnósticos mestres virar-se-iam completamente e responder-me-iam que os homens sempre tinham estado mergulhado nas trevas e nas superstições dos selvagens. Verifiquei que seu constante desdém em relação ao Cristianismo era por ser ele a luz de um povo, enquanto deixava todos os outros morrerem nas trevas. No entanto, pude também observar que era para eles motivo especial de orgulho o fato de serem a ciência e o progresso a descoberta de um povo, enquanto todos os outros povos jaziam na escuridão. O seu principal insulto contra o Cristianismo era, efetivamente, para eles, motivo de glória, e parecia uma estranha injustiça toda a sua relativa insistência nesses dois aspectos. Ao considerarmos algum pagão ou agnóstico, era forçoso lembrarmo-nos de que todos os homens tinham uma religião; ao considerarmos algum místico ou espiritualista, tínhamos apenas de ponderar as absurdas religiões que alguns homens professavam. Podíamos acreditar na ética de Epicteto porque a ética nunca tinha mudado, mas não devíamos acreditar na ética de Bossuet porque a ética tinha mudado. Operara-se uma mudança em duzentos anos, mas não em dois mil.

Tudo isso começava a parecer alarmante. Não que o Cristianismo fosse suficientemente mau para agregar em si todos os defeitos, mas qualquer vara era suficientemente boa para açoitar a religião cristã. A que poderíamos comparar esta coisa extraordinária que todos estavam ansiosos por contradizer, sem mesmo repararem que, assim procedendo, contradiziam a si próprios? Observei o mesmo em todo o lugar. Não posso dispor de mais espaço para esta discussão em todos os seus pormenores, mas, para que não se suponha que estive selecionando, injustamente, três casos aleatórios, mencionarei, rapidamente, alguns outros. Alguns céticos descreveram que o grande crime do Cristianismo tinha sido o seu ataque contra a família. O Cristianismo arrastava as mulheres para a solidão e para a vida contemplativa de um mosteiro, longe de seus lares e de seus filhos. Mas logo outros céticos (ligeiramente mais avançados) vinham dizer que o grande crime do Cristianismo era forçar-nos ao casamento e à constituição da família, condenando as mulheres ao duro trabalho do lar e dos filhos, proibindo-lhes a solidão e a vida meditativa. As acusações eram, na verdade, contraditórias. Dizia-se, ainda, que algumas palavras das Epístolas ou do Rito do Matrimônio revelavam desprezo pelo intelecto das mulheres. No entanto, concluí que os próprios anticristãos sentiam desprezo pelo intelecto das mulheres, porque seu grande desdém pela Igreja no continente era devido ao fato de afirmarem que “só as mulheres” a freqüentavam. Outras vezes, o Cristianismo era censurado por seus trajes indigentes e pobres, por seu burel e suas ervilhas secas. Entretanto, no momento seguinte, o Cristianismo era censurado por sua pompa e ritualismo, seus relicários de pórfiro e suas vestes de ouro. Acusavam-no por ser demasiadamente humilde e por ser demasiadamente pomposo. O Cristianismo era acusado, ainda, de ter sempre reprimido em extremo a sexualidade, quando Bradlaugh, o Malthusiano, descobrira que ele a reprimia muito pouco. De um só fôlego, lançavam-lhe ao rosto uma recatada respeitabilidade e uma religiosa extravagância. Nas capas do mesmo panfleto ateu, fui encontrar a fé censurada por sua falta de união (“uns pensavam uma coisa e outros pensavam outra”) e, ao mesmo tempo, por sua união (“é a diferença de opinião que impede o Mundo de se arruinar”). No decorrer da mesma conversa, um amigo meu, livre-pensador, censurava o Cristianismo por desprezar os judeus e depois desprezava a si mesmo por ser judeu.

Eu desejava ser absolutamente imparcial, como ainda o desejo ser agora, e não concluí que o ataque ao Cristianismo fosse de todo injusto. Concluí apenas que, se o Cristianismo estava errado, estava, sem dúvida, muito errado. Tão hostis terrores poderiam ser combinados em uma só coisa, mas tal coisa devia ser bem estranha e única. Há homens que são avarentos e, ao mesmo tempo, perdulários; porém, são raros. Há também homens lascivos e, ao mesmo tempo, ascéticos, mas estes também são raros. Mas, se este amálgama de loucas contradições realmente existisse, pacifista e sanguinário, suntuoso e maltrapilho, austero e lascivo, inimigo das mulheres e seu tolo refúgio, pessimista declarado e otimista ingênuo, se este mal existisse, então haveria nele algo de supremo e único. De fato, não encontrei nos meus mestres racionalistas explicação alguma para tal excepcional corrupção. O Cristianismo (teoricamente falando) era, a seus olhos, apenas um dos mitos ordinários e um dos erros dos mortais. Eles não me davam a chave para esta retorcida e desnatural maldade. Esse mal assumia as proporções do sobrenatural. Era, sem dúvida, quase tão sobrenatural como a infalibilidade do papa. Uma instituição histórica que nunca se mostrou acertada é um milagre tão grande como uma instituição que nunca pode errar. A única explicação que imediatamente me ocorreu à mente foi que o Cristianismo não viera do céu, mas do inferno. Na verdade, se Jesus de Nazaré não fosse Cristo, devia ter sido o Anticristo.

G. K. Chesterton, “Ortodoxia”, pp. 114-121. Ed. LTr, São Paulo, 2001.

“A Europa na crise das culturas” – por Joseph Ratzinger

Tradução: Wagner Marchiori
Original: ZENIT (em castelhano)
Grifos e destaques do tradutor

A EUROPA NA CRISE DAS CULTURAS

Pronunciada pelo Cardeal Ratzinger no Mosteiro de Subíaco em 01 de abril de 2005.

Vivemos em um momento de grandes perigos e de grandes oportunidades para o homem e para o mundo; um momento que é também de grande responsabilidade para todos nós. Durante o século passado as possibilidades do homem e seu domínio sobre a matéria aumentaram de forma verdadeiramente impensável. No entanto, seu poder de dispor do mundo permitiu que sua capacidade de destruição alcançasse dimensões que, às vezes, nos horrorizam. Por isso, é espontâneo pensar na ameaça do terrorismo, esta nova guerra sem confins e sem fronteiras. O temor de que o Terror possa se apoderar de armas nucleares ou biológicas não é infundado e permitiu que, dentro dos Estados de direito, se acudisse a sistemas de segurança semelhantes aos que antes existiam somente nas ditaduras; mas, de todo modo, permanece a sensação de que todas estas precauções podem ser insuficientes, pois não é possível e nem desejável um controle global. Menos visíveis, mas nem por isso menos inquietantes, são as possibilidades que o homem adquiriu de manipular a si próprio. Ele (o Homem) mediu as profundidades do ser, decifrou os componentes do ser humano e, agora, é capaz, por assim dizer, de construir por si mesmo o homem, que já não vem ao mundo como dom do Criador, mas como um produto de nosso atuar, produto que, portanto, pode inclusive ser selecionado segundo as exigências por nós mesmos definidas. Assim, já não brilha sobre o homem o esplendor de ser ‘imagem de Deus’, que é o que confere sua dignidade e inviolabilidade, mas somente o poder das capacidades humanas. Não é mais do que a ‘imagem do homem’, mas, de que homem?

A isso tudo se acrescenta os grandes problemas planetários: a desigualdade na repartição dos bens da terra; a pobreza crescente; o esgotamento da Terra e de seus recursos; a fome; as enfermidades que ameaçam o mundo todo e o choque de culturas. Tudo isso nos mostra que o aumento de nossas possibilidades não teve como correspondência um desenvolvimento equivalente de nossa energia moral. A força moral não cresceu na mesma medida que o desenvolvimento da ciência, mas antes, diminuiu, porque a mentalidade técnica encerra a moral no âmbito subjetivo e, pelo contrário, necessitamos de uma moral pública, uma moral que saiba responder às ameaças que estão sobre a existência de todos nós.

O verdadeiro e maior perigo deste momento está justamente neste desequilíbrio entre as possibilidades técnicas e a energia moral. A segurança que precisamos como pressuposto de nossa liberdade e dignidade não pode vir de sistemas técnicos de controle, mas que somente pode surgir da força moral do homem: aonde esta força faltar ou não for suficiente o poder que o homem tem se transformará cada vez mais em poder de destruição.

É certo que existe hoje um novo moralismo cujas palavras chaves são ‘justiça, paz, conservação da criação’, palavras que reclamam valores essenciais e necessários para nós. No entanto, tal moralismo resulta vago e cai, assim, quase que inevitavelmente, na esfera político-partidário. É sobretudo uma pretensão dirigida aos demais e não um dever de nossa vida cotidiana. De fato, o que significa justiça? Quem a define? O que pode produzir a paz? Vimos nas últimas décadas em nossas ruas e em nossas praças como um pacifismo pode se desviar em direção a um anarquismo destrutivo e ao terrorismo. O moralismo político dos anos 70, cujas raízes certamente não estão mortas, foi um moralismo com uma direção errada, pois estava privado de racionalidade serena e, em última instância, colocava a utopia política acima da dignidade do indivíduo, mostrando que podia chegar a desprezar o homem em nome de grandes objetivos.

O moralismo político, tal como o vivemos e ainda hoje estamos vivendo, não só não abre caminho a uma regeneração, mas que a bloqueia. E o mesmo se pode dizer de um cristianismo e de uma teologia que reduzem o cerne da mensagem de Jesus – o “Reino de Deus” – aos “valores do Reino”, identificando esses valores com as grandes palavras-chave do moralismo político, e proclamando-as, ao mesmo tempo, como síntese das religiões. Logo, esquece-se, assim, de Deus, apesar de ser Ele o sujeito e a causa do Reino de Deus. Em seu lugar ficam grandes palavras (e valores) que se prestam a qualquer tipo de abuso.

Este breve olhar sobre a situação do mundo nos leva a refletir sobre a realidade atual do cristianismo e, portanto, sobre as bases da Europa; essa Europa que antes, poderíamos dizer, foi um continente cristão, mas que foi, também, o ponto de partida dessa nova racionalidade científica que nos possibilitou grandes possibilidades e, ao mesmo tempo, grandes ameaças. Certamente o cristianismo não surgiu na Europa e, portanto, não pode ser classificado como religião européia ou a religião do âmbito cultural europeu. Mas, historicamente foi na Europa que recebeu sua ‘marca’ cultural e intelectual mais eficaz e, por isso, fica unido de maneira especial à Europa. Por outro lado, é igualmente certo que foi na Europa, desde os tempos do Renascimento e de maneira mais plena desde os tempos da ‘ilustração’ (1), que se desenvolveu essa racionalidade científica que não somente levou a uma unidade geográfica do mundo na época dos descobrimentos (ao encontro dos continentes e das culturas), mas que, agora, muito mais profundamente, graças à cultura técnica possibilitada pela ciência, imprime seu selo a todo o mundo, ou ainda, em certo sentido o uniformiza.

(1) Considera-se nessa tradução os termos Ilustração/Ilustrada e Iluminismo/Iluminista como conceitos equivalentes (Nota do Tradutor)

E atrás dessas pegadas desta forma de racionalidade, a Europa desenvolveu uma cultura que, de uma maneira desconhecida antes pela humanidade, exclui Deus da consciência pública, seja negando-O totalmente, seja julgando que Sua existência não é demonstrável (é incerta) e, portanto, pertencente ao âmbito das decisões subjetivas, algo, no mínimo, irrelevante para a vida pública. Esta racionalidade puramente funcional, por assim dizer, resultou numa desordem da consciência moral também nova para as culturas que até então existiram, pois considera que racional é só aquilo que se pode provar com experimentos. Dado que a moral pertence a uma esfera totalmente diferente desaparece como categoria e tem que ser identificada de outro modo, pois há que se admitir que a moral é necessária. Em um mundo baseado no cálculo, é o cálculo das conseqüências que determina o que se deve considerar como moral ou não moral. E assim a categoria de bem, como foi exposta claramente por Kant, desaparece. Nada em si é bom ou mal, tudo depende das conseqüências que uma ação permite prever.

Se o cristianismo, por um lado, encontrou sua forma mais eficaz na Europa, é necessário, por outro lado, dizer que também na Europa se desenvolveu uma cultura que constitui a contradição absoluta mais radical não só do cristianismo, mas, também, das tradições religiosas e morais da humanidade. Por isso, compreende-se que a Europa está experimentando uma autêntica “prova de tensão”; por isso se entende também a radicalidade das tensões que nosso continente deve enfrentar. Mas, daqui emerge ainda, e sobretudo, a responsabilidade que nós, os europeus, devemos assumir neste momento histórico: no debate sobre a definição da Europa, sobre sua forma política, não se está apenas em jogo uma batalha nostálgica de “retaguarda” da história, mas, antes, uma grande responsabilidade para a humanidade atual.

Olhemos com mais precisão esta contraposição entre duas culturas que marcaram a Europa. No debate sobre o preâmbulo da Constituição Européia tal contraposição se mostrou em dois pontos controversos: a questão da referência a Deus na Constituição e a menção das raízes cristãs da Europa. Dado que no artigo 52 das Constituição se garantiu os direitos institucionais das Igrejas, podemos, diz-se, estar tranqüilos. Mas, isto significa que as igrejas, na vida da Europa, encontram lugar no âmbito do compromisso político, enquanto que, nos fundamentos da Europa não há espaço para as pegadas de seu conteúdo.

As razões que se oferecem no debate público para esta conclusão NÃO são superficiais e é evidente que mais que esclarecer as verdadeiras motivações, as escondem. A afirmação de que a menção das raízes cristãs da Europa fere os sentimentos de muitos não cristãos que vivem nela é pouco convincente, já que se trata, além de tudo, de um fato histórico que ninguém pode seriamente negar.

Naturalmente esta menção histórica contém uma referência ao presente, pois, ao mencionar as raízes, indicam-se as fontes originais de orientação moral, isto é, um fator de identidade da Europa. A quem, então, se ofenderia? A identidade de quem ficaria ameaçada? Os muçulmanos, a quem freqüentemente se alude nessa questão, não se sentem ameaçados por nossos fundamentos morais cristãos, mas, sim, pelo cinismo de uma cultura secularizada que nega seus próprios fundamentos. E tampouco se ofendem nossos concidadãos judeus pela referência às raízes cristãs da Europa já que essas raízes remontam ao monte Sinai: levam a marca da voz que se fez ouvir sobre o monte de Deus e nos unem nas grandes orientações fundamentais que o Decálogo legou à humanidade. O mesmo se pode dizer da referência a Deus: a menção a Deus não ofende os pertencentes a outras religiões. O que lhes ofende é, antes, a tentativa de construir a comunidade humana sem Deus.

As motivações dessa negativa à referência a Deus e às raízes cristãs NÃO são mais profundas do que permitem intuir os argumentos que nos oferecem. Pressupõem a idéia de que SOMENTE A CULTURA ILUSTRADA RADICAL, que alcançou seu pleno desenvolvimento em nosso tempo, poderia constituir a identidade européia. Junto a ela podem, portanto, coexistir diferentes culturas religiosas com seus respectivos direitos, DESDE QUE E NA MEDIDA EM QUE RESPEITEM OS CRITÉRIOS DA CULTURA ILUSTRADA E A ELA SE SUBORDINEM.

Esta cultura ilustrada fica substancialmente definida pelos direitos “de liberdade”. Baseia-se na liberdade como um valor fundamental que tudo mede: a liberdade de escolha religiosa, que inclui a neutralidade religiosa do Estado; a liberdade para expressar a própria opinião, com a condição de que não se coloque em dúvida este cânone; o ordenamento democrático do Estado, isto é, o controle parlamentar sobre os organismos estatais; a formação livre de partidos; a independência da Justiça; e, finalmente, a tutela dos direitos do homem e a proibição de discriminações. Neste caso, o cânone está ainda em formação, já que também há direitos humanos que são contrastantes, como, por exemplo, no caso do conflito entre o desejo de liberdade da mulher e o direito de viver do que está para nascer.

O conceito de discriminação se amplia cada vez mais e, assim, a proibição da discriminação pode se transformar progressivamente em uma limitação da liberdade de opinião e da liberdade religiosa. Logo não se poderá afirmar que a HOMOSSEXUALIDADE, como ensina a Igreja Católica, constitui uma desordem objetiva na estruturação da existência humana. E o fato de que a Igreja está convencida de que não tem o direito de conferir a ORDENAÇÃO SACERDOTAL ÀS MULHERES é considerado, por alguns, como algo inconciliável com o espírito da Constituição européia.

É evidente que este cânone da cultura ilustrada, que longe está de ser algo definitivo, contêm valores importantes dos quais, precisamente como cristãos, não queremos e nem podemos renunciar; no entanto, é evidente também que a concepção mal definida (ou não definida) de liberdade, que está na base dessa cultura, inevitavelmente implica em contradições; e é evidente que precisamente por causa de seu uso (um uso que parece radical) implica em limitações da liberdade que há apenas uma geração eram inimagináveis. Uma confusa ideologia da liberdade conduz a um dogmatismo que se está revelando cada vez mais hostil para a liberdade.

Sem dúvida, devemos voltar a falar do problema das contradições internas da forma atual da cultura ilustrada. Mas, antes, temos de terminar de descrevê-la. Pertence à sua natureza, enquanto cultura de uma razão que tem finalmente consciência completa de si mesma, o fato de assomar-se de uma ambição universal e conceber-se como completa em si mesma, sem necessidade de ser complementada por outros fatores culturais.

Vêem-se claramente ambas características quando se propõe o tema de quem pode chegar a ser membro da Comunidade européia e, sobretudo, no debate sobre o ingresso da Turquia nela. Trata-se de um Estado, ou talvez melhor, de um âmbito cultural, que não tem raízes cristãs, mas que recebeu a influência da cultura islâmica. Atartuk pretendeu transformar a Turquia em um Estado laicista, tentando implantar o laicismo – amadurecido no mundo cristão da Europa – em um terreno muçulmano.

Podemos nos perguntar se isso é possível: segundo a tese da cultura ilustrada e laicista da Europa, somente as normas e conteúdos da cultura ilustrada podem determinar a identidade da Europa e, conseqüentemente, todo Estado que faz seus esses critérios pode pertencer à Europa. Não importa, ao final, a trama de raízes no qual se implanta esta cultura da liberdade e da democracia. E precisamente por isso se afirma que as raízes não podem entrar na definição dos fundamentos da Europa, tratando-se de raízes mortas que não formam parte da identidade atual. Como conseqüência, esta nova identidade, determinada exclusivamente pela cultura ilustrada, comporta também que Deus não tem nada a ver com a vida pública e com os fundamentos do Estado.

Deste modo, em certo sentido, tudo se torna lógico e plausível. De fato, poderíamos desejar algo melhor que o respeito à democracia aos direitos humanos? Mas, de qualquer maneira, é inevitável a pergunta se esta cultura ilustrada laicista é realmente a cultura, descoberta finalmente como universal, capaz de dar uma razão comum a todos os homens; uma cultura à qual se deveria ter – qualquer um e em qualquer lugar – acesso, ainda que sobre um húmus histórica e culturalmente diferenciado. E nos perguntamos, por fim, se é verdadeiramente completa em si mesma, de modo que não tem necessidade alguma de raízes fora de si.

SIGNIFICADO E LIMITES DA CULTURAL RACIONALISTA ATUAL

Encaremos, agora, estas duas últimas perguntas. À primeira, isto é, à pergunta de se se alcançou a filosofia universalmente válida e totalmente científica na qual se expressaria a razão comum de todos os homens, é necessário responder que, indubitavelmente, alcançou-se conquistas importantes que podem pretender ter uma validade geral: a conquista de que a religião não pode ser imposta pelo Estado, mas que somente pode ser acolhida na liberdade; o respeito dos direitos fundamentais do homem e iguais para todos; a separação dos poderes e o controle do poder.

De todo modo, não se pode pensar que estes valores fundamentais, reconhecidos por nós como geralmente válidos, possam se realizar do mesmo modo em qualquer contexto histórico. Não se dão em todas as sociedades os mesmos pressupostos sociológicos para uma democracia baseada em partidos como acontece no Ocidente; de modo que a total neutralidade religiosa do Estado, na maior parte dos contextos históricos, pode se considerar como uma mera ilusão.

E assim chegamos aos problemas mencionados na segunda pergunta. Mas esclareçamos antes a questão se as filosofias modernas ilustradas, consideradas em seu conjunto, podem ser consideradas como a última palavra da razão comum de todos os homens. Estas filosofias se caracterizam pelo fato de serem positivistas e, portanto, anti-metafísicas, de maneira que, ao final, Deus não pode ter nelas nenhum lugar. Estão baseadas em uma auto-limitação da razão positiva que é adequada no âmbito técnico, mas que quando se generaliza provoca uma mutilação do homem. Como conseqüência, o homem deixa de admitir toda instância moral fora de seus cálculos e – como já vimos – o conceito de liberdade, que num primeiro olhar poderia parecer estender-se de forma ilimitada, acaba levando à auto-destruição da liberdade.

Indubitavelmente as filosofias positivistas contêm elementos importantes de verdade. Porém, esses se baseiam em uma auto-limitação da razão, típica de uma situação cultural – a do Ocidente moderno – e, por isso, não podem ser a última palavra da razão. Ainda que pareçam totalmente racionais, não são a voz da razão mesma, pois também estão vinculadas culturalmente, ou seja, estão vinculadas à situação do Ocidente atual.

Por este motivo não são, absolutamente, as filosofias que, em algum momento, serão válidas em todo o mundo. Mas, sobretudo, deve-se dizer que esta filosofia ilustrada e sua respectiva cultura são incompletas. Corta conscientemente suas próprias raízes históricas privando-se, assim, das forças regeneradoras das quais ela própria surgiu – essa memória fundamental da humanidade sem a qual a razão perde sua orientação.

De fato, considera-se agora válido o princípio segundo o qual a capacidade do homem consiste em sua capacidade de ação. AQUILO QUE SE SABE FAZER, PODE-SE FAZER. Já não existe um “saber fazer” separado do “poder fazer”, porque atentaria contra a liberdade, que é o valor supremo. Mas, o homem sabe fazer muitas coisas e sabe fazer cada vez mais coisas; e se este “saber fazer” não encontra sua medida em uma norma moral, converte-se, como já podemos observar, em poder de destruição.

O homem sabe clonar homens e, por isso, o faz. O homem sabe usar homens como “armazém” de órgãos para outros homens e, por isso, o faz. E o faz porque parece ser exigência de sua liberdade. O homem sabe construir bombas atômicas e, por isso, as faz, estando pela mesma linha de princípios, também disposto a usá-las. No final, até o terrorismo se baseia nessa modalidade de “auto-autorização” do homem e não nos ensinamentos do Corão.

A radical separação da filosofia ilustrada de suas raízes acaba desprezando o próprio homem. O homem, no fundo, não tem nenhuma liberdade – dizem-nos os porta-vozes das ciências naturais – em total contradição com o ponto de partida de toda essa questão. Não se deve acreditar que é (o homem) algo diferente de todos os demais seres vivente e, portanto, também deveria ser tratado como eles – dizem-nos os porta-vozes mais avançados de uma filosofia definitivamente separada das raízes da memória histórica da humanidade.

Havíamos proposto duas perguntas: se a filosofia racionalista (positivista) é estritamente racional e, por conseguinte, universalmente válida, e se é completa. É auto-suficiente? Pode – ou inclusive deve – relegar suas raízes históricas no âmbito do passado e, portanto, no âmbito do que só pode ser válido subjetivamente? Devemos responde a ambas perguntas com um claro NÃO. Esta filosofia não expressa a razão completa do homem, mas, somente uma parte dela e, por causa desta mutilação da razão, não pode ser considerada racional. Logo, é também incompleta e somente pode “se curar” se restabelecer de novo o contato com suas raízes. Uma árvore sem raízes simplesmente seca…

Ao se afirmar isto não se nega tudo que há de positivo e importante nesta filosofia, mas que se afirma, sim, a sua necessidade de ser completada e sua profunda deficiência. E, deste, modo, voltamos a falar dos dois pontos controvertidos do preâmbulo da Constituição européia. O confinamento das raízes cristãs não se revela como a expressão de uma tolerância ‘superior’ que respeita por igual todas as culturas ao não privilegiar nenhuma, mas, antes, como a absolutização de um pensamento e de um estilo de vida que se contrapõe radicalmente às demais culturas históricas da humanidade.

A AUTÊNTICA CONTRAPOSIÇÃO QUE CARACTERIZA O MUNDO DE HOJE NÃO É A QUE SE PRODUZ ENTRE AS DIFERENTES CULTURAS RELIGIOSAS, MAS ENTRE A RADICAL EMANCIPAÇÃO DO HOMEM DE DEUS, DAS RAÍZES DA VIDA, DE UM LADO; E, DE OUTRO LADO, AS GRANDES CULTURAS RELIGIOSAS. SE CHEGARMOS A UM CHOQUE DE CULTURAS, NÃO SERÁ PELO CHOQUE ENTRE AS GRANDES RELIGIÕES – que sempre lutaram uma contra a outra, mas que também sempre souberam conviver juntas – MAS, SIM, POR CAUSA DO CHOQUE ENTRE ESTA RADICAL EMANCIPAÇÃO DO HOMEM E AS GRANDES CULTURAS HISTÓRICAS.

Deste modo, o rechaço à referência a Deus não é expressão de uma tolerância que quer proteger as religiões que não são teístas e a dignidade dos ateus e agnósticos, mas, antes, a expressão de uma consciência que quer ver Deus definitivamente cancelado da vida pública da humanidade, encerrado no âmbito subjetivo de culturas residuais do passado. O RELATIVISMO, que constitui o ponto de partida de tudo isto, converte-se em um dogmatismo que se crê na posse do conhecimento definitivo da razão e com o direito a considerar todo o resto unicamente como uma etapa da humanidade, no fundo já superada, e que pode ser relativizada adequadamente. Na realidade, tudo isso significa que necessitamos raízes para sobreviver e que não devemos perder a Deus de vista se queremos que a dignidade humana não desapareça.

O SIGNIFICADO PERMANENTE DA FÉ CRISTÃ

Estou propondo um rechaço do Iluminismo e da Modernidade? Absolutamente não. O cristianismo, desde o princípio, compreendeu a si próprio como a religião do “logos”, como a religião segundo a razão. Não encontrou seus percussores entre as outras religiões, mas nessa ilustração filosófica que ‘limpou’ o caminho das tradições para sair em busca da verdade e do bem, do único Deus que está além de todos os deuses.

Enquanto religião dos perseguidos, enquanto religião universal, além dos diversos Estados e povos, negou ao Estado o direito de considerar a religião como parte do ordenamento estatal, postulando, assim, a liberdade da fé. Sempre definiu os homens – todos os homens sem distinção – como criaturas de Deus e imagem de Deus, proclamando como princípio, ainda que nos limites imprescindíveis dos ordenamentos sociais, a mesma dignidade a todos.

Neste sentido a Ilustração é de origem cristã e não é por acaso que tenha nascido única e exclusivamente no âmbito da fé cristã, ali onde o cristianismo – por desgraça – converteu-se tradição e religião do Estado. Ainda que a filosofia, enquanto busca de racionalidade – também de nossa fé – tenha sido sempre uma prerrogativa do cristianismo, havia-se domesticado em demasia a voz da razão.

Foi e é mérito da Ilustração haver recolocado em questão estes valores originais do cristianismo e o haver devolvido à razão sua própria voz. O Concílio Vaticano II, na constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo, sublinhou novamente esta profunda correspondência entre cristianismo e Ilustração, buscando chegar a uma verdadeira conciliação entre a Igreja e a modernidade, que é o grande patrimônio que ambas as partes devem tutelar.

Ora bem, faz-se necessário que ambas partes reflitam sobre si mesmas e estejam dispostas a se corrigirem. O cristianismo deve se lembrar sempre de é a religião do “logos”. É fé no “Creatur Spiritus”, no Espírito criador, do Qual procede tudo o que existe. Esta deveria ser precisamente hoje sua força filosófica, pois o problema se funda SE O MUNDO VEM DO IRRACIONAL – e sua razão não é senão um subproduto, talvez até prejudicial, de seu desenvolvimento – OU SE O MUNDO PROVEM DA RAZÃO – e é, conseqüentemente, seu critério e sua meta.

A fé cristã se inclina por essa segunda tese, tendo, assim, desde o ponto de vista puramente filosófico, realmente ‘boas cartas para jogar’, apesar de que muitos hoje consideram somente a primeira tese como moderna e racional por antonomásia. No entanto, uma razão surgida do irracional – e que é, em última instância, ela própria irracional – não constitui uma solução para nossos problemas. Somente a razão criadora, e que se manifestou no Deus crucificado como Amor, pode verdadeiramente nos mostrar o caminho.

No diálogo tão necessário entre laicistas e católicos, os cristãos devem estar muito atentos para se manterem fiéis a esta linha de fundo: viver uma fé que provem do “logos”, da razão criadora, e que, portanto, está também aberta a tudo o que é verdadeiramente racional.

Ao chegar a esse momento queria, em minha qualidade de crente, fazer uma proposta aos laicistas. Na época da Ilustração se tentou entender e definir as normas morais essenciais dizendo-se que seriam válidas ‘ etsi Deus non daretur’, mesmo no caso de Deus não existir. Na contraposição das confissões religiosas e na crise da imagem de Deus, tentaram-se manter os valores essenciais da moral por cima das contradições e buscar uma evidência que os fizessem independentes das múltiplas divisões e incertezas das diferentes filosofias e confissões. Deste modo, quiseram assegurar os fundamentos da convivência e, em geral, os fundamentos da humanidade. Naquele momento da história, pareceu que era possível, pois as grandes convicções de fundo surgidas no cristianismo em grande parte resistiam e pareciam inegáveis. Mas agora já não é assim.

A busca de uma certeza tranqüilizadora, que ninguém pudesse contestar independentemente de todas as diferenças, falhou. Nem sequer o esforço, realmente grandioso, de Kant foi capaz de criar a necessária certeza compartilhada por todos. Kant negou que se pudesse conhecer a Deus no âmbito da razão pura, mas, ao mesmo tempo, colocou Deus, a liberdade e a imortalidade como postulados da razão prática, sem a qual, coerentemente, não era possível, para ele, a ação moral.

A situação atual do mundo não nos leva a pensar que talvez tivessem razão de novo? Digo-o com outras palavras: a tentativa, levada ao extremo, de considerar as coisas humanas menosprezando completamente Deus nos leva cada vez mais ao abismo, ao encerramento total do homem. Deveríamos, então, voltar ao axioma dos Ilustrados e dizer: mesmo quem não consiga encontrar o caminho da aceitação de Deus deveria buscar viver e dirigir sua vida “veluti si Deus daretur”, como se Deus existisse. Este é o conselho que dava Pascal a seus amigos não crentes; é o conselho que queríamos também dar a nossos amigos que não crêem. Deste modo, ninguém fica limitado em sua liberdade e nossa vida encontra um novo sustentáculo e um critério cuja necessidade é urgente.

O que mais necessitamos nesse momento da história são homens que, através de uma fé iluminada e vivida, façam que Deus seja crível nesse mundo. O testemunho negativo de cristãos que falavam de Deus e viviam de costas a Ele, obscureceu a imagem de Deus e abriu a porta à incredulidade. Necessitamos de homens que tenham o olhar fixo em Deus, aprendendo n’Ele a verdadeira humanidade.

Necessitamos de homens cujo intelecto seja iluminado pela luz de Deus e a quem Deus abra o coração, de maneira que seu intelecto possa falar ao intelecto dos demais e seu coração possa abrir o coração dos demais.

Somente através de homens que tenham sido tocados por Deus é que Deus voltará entre os homens. Necessitamos de homens como Bento de Nursia, que em um tempo de dissipação e decadência, penetrou na solidão mais profunda conseguindo, depois de todas as purificações que sofreu, levantar-se até a Luz, regressar e fundar Montecasino, a cidade sobre o monte que, com tantas ruínas, reuniu as forças das quais se formou um mundo novo.

Deste modo, Bento, como Abraão, chegou a ser pai de muitos povos. As recomendações a seus monges apresentadas no final de sua “Regra” são indicações que nos mostram o caminho que conduz para o alto, a sair da crise e dos escombros. “Assim como há um mau zelo de amargura que separa de Deus e leva ao inferno, há, também, um zelo bom que separa dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna. Pratiquem, pois, os monges este zelo com a mais ardente caridade, isto é, ‘adiantando-se para honrar uns aos outros’; tolerem com suma paciência suas debilidades, tanto corporais como morais […] pratiquem a caridade fraterna castamente; temam a Deus com amor; […] e absolutamente nada anteponham a Cristo, que nos leve a todos à vida eterna” (capítulo 72).