Oxalá tivéssemos as mãos vazias

Muitas pessoas têm muitas visões sobre Nosso Senhor: para uns Ele é um taumaturgo, para outros, um sábio divulgador da regra áurea, uns O vêem ainda como um Rei generoso e providente, e ainda outros O querem um defensor das liberdades individuais. Já eu penso que nada resume tão bem o Cristianismo como a Sexta-Feira Santa, e os homens errariam bem menos acerca de Cristo se se acostumassem a encará-Lo como a Liturgia de hoje O apresenta ao mundo.

Porque a história do dia de hoje nos mostra duras verdades. A primeira e mais óbvia delas é a realidade da nossa maldade, entregando à morte um Homem inocente, preferindo, a Ele, um bandido conhecido e condenado. Naquela turba que pediu a Pilatos a Crucifixão de Cristo todos nós estamos vergonhosamente representados, e isso se trata de um dos pontos mais básicos do Catecismo: Cristo morreu por nós. Dito assim, em palavras curtas, em uma sentença já gasta pelos séculos, a frase parece perder muito de sua verdadeira força de expressão, e é por isso que precisamos ler e reler incontáveis vezes as quatro narrativas da Paixão de Cristo, e é por isso que a Igreja precisa repetir, a cada ano, todo o ritual da Semana Santa: quando se diz que Cristo morreu por nós, o que se quer realmente dizer é que cada um de nós pode e aliás deve se reconhecer naqueles judeus que, hoje, exigiram que o Sangue d’Ele fosse derramado.

Não fosse o suficiente, a nossa ira destrutiva não foi dirigida contra um nosso semelhante: foi contra o Deus Todo-Poderoso, o Criador do Céu e da Terra, Aquele de Quem viemos e sem o Qual nada podemos fazer. Trata-se, assim, de verdadeiro instinto auto-destrutivo: querer matar o Criador é o mesmo que desdenhar da própria Criação, e as Trevas que envolveram o mundo enquanto Cristo agonizava na Cruz somente por muito pouco não tragaram definitivamente todo o Universo. Nunca o mundo esteve tão periclitante quanto naquelas horas terríveis em que Nosso Senhor sufocava no alto do madeiro! Nós morríamos enquanto O matávamos. Aceitávamos lançar sob trevas a terra inteira, contanto que O lançássemos à escuridão do Sepulcro. Trata-se de uma inversão perversa da ética humana: a nossa razão nos manda fazer aos outros o bem que gostaríamos que nos fizessem, mas no Gólgota nos regozijávamos em sofrer o mal que nos satisfazia infligir ao Filho de Deus. Dir-se-ia que de bom grado aceitaríamos até padecer na cruz, contanto que pudéssemos também crucificar a Nosso Senhor inocente.

E essa lógica perversa é o retrato da história humana: nós somos, no fundo, uns animais cujo instinto destrutivo supera até mesmo o de autopreservação. “Chorai por vós mesmas”, disse Cristo enquanto subia o Calvário, “porque, se eles fazem isto ao lenho verde, que acontecerá ao seco?” (Lc 23, 31).

Essa maldade não costuma ser suficientemente compreendida. Não é simplesmente que não valêssemos nada: nós já nada valíamos antes, na época dos Profetas, durante a vida pública de Jesus, até o Domingo de Ramos, vá lá. Com a Paixão de Cristo, no entanto, a nossa situação sofre uma piora inimaginável, porque acrescentamos, ao nada que já somos, a culpa infinita do deicídio. Oxalá estivéssemos de mãos vazias! Hoje elas estão cheias de sangue — e o sangue dos justos clama aos Céus vingança e atrai a ira de Deus.

Mas ao lado da nossa perversidade está o amor incondicional de Deus — amor usque ad mortem, até a Cruz. É um paradoxo notável. É precisamente quando temos mais culpa que somos enfim perdoados. O ato que é o maior dos nossos crimes é também, ele próprio, a fonte da nossa Redenção, e isso é assombroso e, passados vinte séculos, até hoje nos assombra.

E diante da Cruz de Cristo todos os demais aspectos da Sua vida são colocados em sua correta perspectiva. De todos os milagres que Ele se realizou, nenhum se compara a essa prodigiosa transmutação de crime em perdão, de morte em vida. Os ensinamentos que Ele nos transmitiu, somente após resgatados pelo sangue do Cordeiro nos os podemos cumprir. A maior das riquezas que Ele tem para nos dar é a Vida Eterna que nos foi alcançada do alto da Cruz. E tudo o que podíamos ser e fazer até o dia de hoje, tudo é palha e cinza e nada agora que temos a santa liberdade dos filhos de Deus.

A suprema doação da Cruz é prova do amor de Deus por nós; e diante desse amor é impossível não se comover. Quando o véu do Templo rasgou-se ao meio, também alguma coisa precisa se ter rasgado dentro de nós. Quando a lança perfurou o coração de Cristo, também o nosso coração precisa haver sido traspassado. O mal que entrara em nós lá no Éden foi finalmente, após séculos, extirpado. Nosso Senhor morto desce ao sepulcro; e agora também nós podemos, enfim, morrer em paz.

O luto da Sexta-Feira Santa

O preto de hoje talvez seja uma das maiores mudanças da Liturgia pascal antiga em relação à do Novus Ordo. A Celebração da Paixão do Senhor, desde que me entendo por gente, assisto-a com o sacerdote vestido de vermelho: cor do sangue, cor do martírio. Hoje, na Forma Extraordinária do Rito Romano, vi a Paixão ser celebrada com o sacerdote ostentando paramentos pretos — negros como a morte, escuros como a Noite que se fez durante a Crucificação hoje rememorada.

Paramentos negros! A bem da verdade, a estola somente sobre a alva — na função litúrgica de hoje, não propriamente sacramental, o padre não enverga a grande casula negra das missas de Réquiem — é até bastante discreta. Mas não perde em eloquência. A prostração diante do altar vazio com a qual se inicia o rito de hoje é bem expressiva daquele abandono ao qual fiz referência ontem, no fim da Missa in coena Domini: parece que deu tudo errado, parece que acabamos de perder algo que já nos havíamos acostumados a ter sempre conosco, parece que os nossos pecados desta vez foram demais e, por conta deles, a desolação fez-se presente no lugar santo — e o templo, vazio, censura-nos a impiedade.

Mas é durante as Grandes Orações que o negro dos paramentos se faz mais vívido. O padre voltado para o altar, diante de nós, com o pluvial preto, a grande capa escondendo-lhe praticamente todo o brancor da alva. Agora, sim, o luto da cerimônia se faz mais presente, mais pesado, quase como se lhe pudéssemos tocar. Dirigimos as nossas súplicas Àquele que crucificamos: pedimos pelo Papa, pela Igreja, pelos sacerdotes, por nós próprios. E num arroubo missionário que brota do lado do Crucificado, é como se as graças alcançadas no Calvário não se contentassem com a Igreja apenas. O Sangue vertido na Cruz do Gólgota pede mais — e o sacerdote de negro clama ao Deus Altíssimo sucessivamente pelos hereges e cismáticos, pelos judeus, pelos pagãos. É de Cristo que nasce a Igreja, mas é também da Cruz que Ela se expande para abarcar aqueles que, antes, a Ela não pertenciam: e a cada vez que nós celebramos a Sexta-Feira da Paixão, nós nos lembramos disso e, solenemente, enlutados, pedimos ao Deus elevado no madeiro da Cruz que Se digne atrair a Si o mundo inteiro.

Sem dúvidas o luto é bem apropriado ao dia de hoje. E se trata de uma dupla tristeza: há a falta que nos faz o Cristo, sem dúvidas, que até ontem estava conosco e hoje nos foi retirado; há a dor da Crucificação, evidentemente — ó vós que passais pelo caminho, olhai e vede se há dor como a minha!, como nos interpela a Pietà. Mas há uma dor ainda maior e mais pungente, uma dor que enlouquece e desespera: há a dor da culpa, e é essa que não suportamos, é essa que somos constantemente tentados a afastar de nossa frente — e é exatamente por isso que devemos sempre acompanhar piedosamente o Tríduo Santo, ano após ano, para ver se daqui para o dia da nossa morte, com a graça de Deus, conseguimos nos emendar.

Tudo isso que estes dias estamos vivenciando, tudo, tudo, o Getsêmani e a traição, a prisão e os julgamentos injustos, a flagelação e as bofetadas, a coroa de espinho e as cusparadas, o caminho do Calvário, as quedas, a transfixação dos pés e dos pulsos, a sede, o vinagre, a asfixia da Cruz, tudo é por culpa nossa, tudo é por culpa minha. E não se trata aqui da culpa difusa que estamos acostumados a dividir com os nossos contemporâneos, por exemplo, a culpa de uma equipe pelo fracasso de um projeto. No geral, um determinado conjunto de pessoas é capaz ainda de alcançar o objetivo a que se propõe mesmo que um de seus membros falte com os seus deveres, e a falha de um só não é de ordinário capaz de frustrar os esforços de todos. Quando fracassa uma empresa de muitos, não é geralmente por conta de um apenas: o malogro de um projeto comum ocorre devido aos erros de vários, e isso de certo dilui a culpa de cada um dos corresponsáveis pela empreitada.

Na Paixão de Cristo, no entanto, não é assim. A Redenção é da humanidade inteira, é verdade, mas ela se aplica toda a cada pecador. Dito de outro modo, não foi um grande conjunto de pecados que fez Cristo sofrer e morrer — um grande conjunto para o qual a minha contribuição é bem modesta e, portanto, bem pequena a minha responsabilidade. Não; Cristo sofreu tudo por cada pecado, e isso de tal modo é verdadeiro que, se fosse eu o único ser humano a pecar na face da terra, a Paixão seria a mesma, e os mesmos seriam os gritos de dor, as mesmas as lágrimas que atravessam os séculos, o mesmo o Sangue que tinge de rubro o madeiro da Cruz. Não foi por uma imensidão genérica de pecados que Cristo morreu, mas pelos meus! Vistas as coisas assim, é até bem pouco o luto que hoje nós manifestamos: nem mesmo no silêncio litúrgico é possível ouvir os gemidos que nos deveriam aflorar do fundo do peito, e a pequena dor que sentimos ao acompanhar a procissão do Senhor Morto é somente um pálido reflexo da compunção que nos deveria vergar o corpo por terra.

IMG-20160325-WA0031

Esta Sexta-Feira Santa é também 25 de Março, é também o dia da Anunciação (*): convergem hoje para o mesmo dia a Encarnação e a Paixão, e o “alegra-Te!” do Anjo à Santíssima Virgem divide espaço com as lágrimas que Ela verteu ao pé da Cruz. Hoje uma Virgem trouxe Deus aos homens; hoje uma Virgem entregou o Seu Filho a Deus. Se o nosso arrependimento não está à altura da multidão dos nossos pecados, olhemos corajosamente para a Virgem Maria, confiemos n’Ela, recorramos a Ela — e Lhe supliquemos que todo este horror não seja em vão.

[(*) Liturgicamente, como as celebrações da Semana Santa têm precedência sobre quaisquer outras festas, a Liturgia da Anunciação é transferida para a segunda-feira depois da Oitava de Páscoa. Este ano, portanto, celebrar-se-á a Festa da Anunciação aos quatro de abril, já em pleno tempo pascal.]

Começa a Semana Santa

São poucos os dias que separam o Domingo de Ramos da Sexta-Feira da Paixão: que separam a entrada gloriosa de Nosso Senhor em Jerusalém, aclamado pelo povo, da Sua Crucificação horrenda, instigada também pelo povo, poucos dias depois. Na Liturgia de ontem, o drama se desenrola com ainda maior volatilidade: o contraste entre os gritos de «Hosana!» e «Crucifica-O!» atinge o fiel católico que assiste à Missa no pequeno intervalo entre a procissão de entrada e o Evangelho. Nós O saudamos! Nós O crucificamos!

A súbita mudança de humor pode parecer inverossímil; no entanto, com que facilidade os nossos melhores propósitos de amor e dedicação a Deus esvanecem-se e dão lugar, da noite para o dia, aos mais mesquinhos sentimentos de egoísmo e amor-próprio! Não cabe somente aos judeus daquele tempo o terrível crime do deicídio; em verdade, cada um de nós, e por incontáveis vezes!, assassinamos a Deus. Verdade que aprendemos no Catecismo. Verdade que a Sagrada Liturgia não nos deixa esquecer. Verdade enfim que experimentamos em nossa carne – que, se mirarmos com sinceridade o espelho de nossa alma, não deixaremos de ver com desconcertante clareza.

Começa a Semana Santa. É uma síntese de nossa vida. Sigamo-la atentamente.

No alto da Cruz ou aos pés d’Ela

É interessante que ao 14 de setembro siga-se o 15 de setembro; ou, dito de outro modo, para parecer menos simplório, é interessante que logo após a festa de Exaltação da Santa Cruz (dia 14) a Igreja celebre a festa de Nossa Senhora das Dores (dia 15).

Certo, o dia 14 é para celebrarmos o «o glorioso fato da reconquista da Santa Cruz das mãos dos Persas»; não obstante, é-nos impossível não pensar também na Crucificação em si, naquelas palavras de Cristo: «quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim» (Jo XII, 32). Ave Crux, Spes Unica: Salve, ó Cruz, única Esperança! Foi pela Paixão de Cristo que nós fomos salvos, assim aprendemos quando ainda éramos crianças. No entanto, esta verdade é sempre nova, e a cada vez que voltamos o nosso olhar para o Calvário nós entendemos um pouco melhor o que significa a nossa salvação. O tempo passa, e acumulamos pecados sobre pecados em nossas almas; o tempo passa, e temos o péssimo hábito de colecionar ofensas a Deus. Será possível que ainda poderemos ser perdoados, e de novo, e ainda mais uma vez, nós que já recebemos tanto a misericórdia do Altíssimo e, não obstante, temos retribuído a Ele com tanta mesquinhez?

Deus nunca Se cansa de nos perdoar, e olhando para a Sua Cruz temos a obrigação de amá-Lo cada vez mais, pois somos cada vez mais perdoados. A Cruz d’Ele é sempre nova e sempre que a olhamos, Ela se nos aparenta um pouco mais pesada, propter peccata nostra; cada vez que nos colocamos diante de um Crucifixo, constatamos envergonhados que há um pouco mais de sofrimento ali, colocado por nós. Pelos pecados de cada dia, com cuja malícia nós muitas vezes sequer nos importamos. Não sei se Oscar Wilde pensava nisso ao escrever o seu Retrato de Dorian Gray, mas o fato é que todos nós temos um retrato que fica cada vez mais disforme à força de nossas decrepitudes morais: a Crucificação é um pouco mais horrenda a cada dia, por culpa de nós. Se não percebemos a evolução deste sagrado sofrimento, é porque temos olhado com bem pouca atenção para Aquele que transpassamos.

E aos sofrimentos d’Ele sempre estiveram unidos os d’Ela, como bem o sabemos; a Virgem das Dores sempre acompanha a Paixão do Seu Divino Filho, e assim as nossas faltas não ofendem somente a Ele: também machucam o coração desta amabilíssima Mãe. Que, à semelhança do Seu Filho, não conhece limites para nos amar e volve o Seu olhar maternal para nós talvez com tanto mais fervor quanto mais veemência aplicamos em ofender-Lhe. Talvez não suportássemos a fealdade da Crucificação se a Santíssima Virgem não estivesse lá; talvez voltássemos o nosso rosto com horror e caíssemos no desespero, se a serena beleza d’Aquela Senhora não estivesse lá a nos insuflar coragem.

Somos pecadores, e volvendo o nosso olhar do Crucificado para a Virgem das Dores esta verdade nos salta aos olhos com uma aterradora clareza. No entanto, no alto da Cruz ou aos pés d’Ela, se olharmos com atenção, nós não encontramos senão misericórdia. É grande a nossa culpa, sim, e as dores do Gólgota não nos permitem esquecê-la; no entanto, maior é o amor d’Aquele que quis sofrer e morrer por nós quando ainda éramos pecadores. Maior é o amor d’Aquela que entregou o Seu Filho inocente a nós. Nas dores que infligimos a Cristo e à Santíssima Virgem, bem que poderíamos encontrar a nossa perdição; no entanto, se meditarmos compungidos e arrependidos nestes mistérios sagrados, descobriremos jubilosos que é do Calvário que se nos abrem as portas da nossa salvação.

Sexta-Feira Santa

É a Sexta-Feira. Se não quisermos contemplar os julgamentos injustos que sofreu Nosso Senhor; se não suportarmos acompanhar o Seu doloroso caminho até o Calvário; se não formos capazes de nos deter ouvindo aquele grito terrível que anunciou a consumação do Seu Sacrifício, e nem de fixarmos o nosso olhar no Cadáver pendente do madeiro da Cruz; enfim, se nos fosse possível deixar tudo isso de lado, olhar – ainda que de soslaio – para o Senhor Morto já nos seria tremendamente benéfico e já permitiria à nossa alma usufruir dos influxos benéficos da meditação piedosa da Paixão de Cristo. Porque muito do mistério do dia de hoje está condensado no Corpo sem vida de Nosso Senhor, que a Sua Mãe Santíssima recebeu dos braços da Cruz e em cuja honra saem hoje procissões de nossas igrejas, após a Celebração da Paixão do Senhor.

Ó vós que passais, olhai e vede se há dor semelhante! Na imagem do Senhor morto está contida a via crucis e o Gólgota, a injustiça e a culpa, o sofrimento de um Inocente e a dor de uma Mãe. E tudo isso está lá presente precisamente porque não há mais nada: o Amor foi assassinado, o Deus foi expulso da Sua Criação, o Mestre foi silenciado, a Vida jaz no abraço frio da Morte. Tudo está perdido. Somente olhando para Ele morto nós podemos ter uma idéia da dimensão dessa nossa perda. Somente quando Ele não está mais entre nós é que, finalmente, tomamos consciência do quanto d’Ele precisávamos. E estamos novamente diante de uma Viúva chorando a morte do Seu Filho mas, dessa vez, ninguém tem coragem de ordenar-Lhe “levanta-Te!” como Ele costumava fazer. Dessa vez parece que o luto não vai ser interrompido, mas muito pelo contrário: parece que ele não vai deixar de se expandir até abarcar o mundo inteiro.

E o cortejo fúnebre segue pelas ruas da cidade. Os que desfilam com o Senhor Morto têm o Sangue d’Ele escorrendo pelas mãos e derramando-se sobre suas cabeças. E não há sequer um Deus para o Qual eles possam pedir perdão. O Único que os podia perdoar é justamente Este cujo cadáver está sendo levado em procissão. Levam-No, sem saber para onde; choram, sem saber o que fazer.

As agressões contra o islamismo e contra o Cristianismo

Em tempos onde fazer um filme amador ridicularizando a figura de Maomé provoca violentos protestos mundo afora, em cuja decorrência já foram mortas pelo menos 50 pessoas, é no mínimo curioso ver a recente capa da revista Placar onde uma imagem de um jogador de futebol pregado numa cruz faz uma debochante referência a Cristo Crucificado.

[A propósito, independente das minhas considerações abaixo, vale a pena seguir a recomendação do texto acima linkado: «[a]cessem a página da revista Placar em que se encontra a notícia da capa e deixem seu comentário. Divulguem para outras pessoas e peçam que façam o mesmo. Não deixem isso passar em branco. E vamos esperar para ver se nossos amigos politicamente corretos dedicarão suas excelsas atenções a esse fato».]

Vou até admitir que o autor da peça publicitária tenha querido apenas fazer uma simples jocosidade inocente. É possível. O que sem dúvidas não é possível, a menos que a capa tenha sido obra de um alienígena ou de alguém recém-saído de um coma profundo que não teve tempo de passar a vista pelos jornais mundiais, é imaginar que esta capa não tenha nenhuma relação com a “guerra santa” que os muçulmanos estão neste momento travando contra o Ocidente por conta do filme de Maomé.

É como se fosse uma tentativa infantil de auto-afirmação. Os [auto-intitulados] Iluminados da Razão gostam de debochar da fé alheia (isto, aliás, faz parte do plano deles de minar a influência religiosa nos povos por meio da dessacralização midiática das coisas sagradas, o que torna os homens menos susceptíveis a levá-las a sério; mas isto é um outro assunto) e, quando os muçulmanos gritaram mais alto e todo mundo começou a ficar pianinho, com medo e com o rabinho entre as pernas, eles se sentiram humilhados e não gostaram. E já que não têm cojones para peitar o fundamentalismo islâmico, vêm aliviar a sua consciência por meio destes pogrons pseudo-intelectuais contra o Cristianismo. Como se dissessem uns para os outros “viu, a gente não precisa se preocupar, a gente ainda pode fazer piada com a religião dos outros sim, está tudo sob controle”.

A cena me parece comicamente com aquela do início de “Procurando Nemo”, onde o peixe emburrado vai nadando em direção à âncora só porque seu pai lho proibiu, e toca-a com a barbatana unicamente para desobedecer ao pai que acabara de lhe dizer que não a tocasse. É como se alguns meninos tivessem sido atacados por lobos selvagens nos quais brincavam de atirar pedras, e aí voltam pra casa e vão chutar os cães de guarda dos seus pais para, por algum processo de substituição psicológica, vingar nestes a dor das mordidas que sofreram daqueles. Acontece que é uma péssima idéia maltratar os cães domésticos da casa quando há lobos raivosos à ronda. Mesmo que as crianças mimadas não percebam isso.

“Toda a criação ficou imersa nas trevas da dor” – Fulton Sheen

Eis a quarta palavra da Consagração da Missa do Calvário. As três primeiras palavras foram dirigidas aos homens. A quarta, porém, foi dirigida a Deus. Estamos agora na última fase do drama da Paixão. Na quarta Palavra, e em todo o Universo, só existem apenas Deus e Jesus. Esta é a hora das trevas.

Subitamente, o silêncio dessa escuridão é quebrado por um grito – tão terrível e tão inesquecível que até aqueles que não compreenderam a língua em que foi expresso hão de recordar-se sempre do tom estranho em que foi proferido: “Eli, Eli, lamma Sabcthany”.

Sim, embora alguns não pudessem compreender essas palavras da língua hebraica, o tom em que foram ditas não mais lhes esqueceu em toda a sua vida.

As trevas que cobriam a terra naquele momento representam apenas o símbolo exterior da noite escura da alma. O sol pode esconder a sua face perante o terrível crime dos deicidas, mas a verdadeira razão da noite que se estendeu sobre a terra foi a sombra da Cruz que se erguia no Calvário.

Toda a criação ficou imersa nas trevas da dor.

Qual foi, todavia, a razão do grito que partiu da escuridão?
“Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonastes?”

Esse foi o grito de espanto para o pecado, em que o homem abandonou Deus, em que a criatura esquece o Criador, em que a flor despreza o sol que lhe deu força e beleza. O pecado é uma separação, um divórcio da união com Deus, e do qual derivam todos os divórcios. Desde que Jesus veio a terra para remir os homens dos seus pecados, é certo que Ele sabia que havia de sentir esse abandono, esse apartamento, esse divórcio.

Ele sentiu-o, antes de mais, no íntimo da Sua alma, tal como a base da montanha, se fosse consciente, sentiria o abandono do sol quando uma nuvem descesse sobre ela, embora os seus cumes se conservassem radiosos, banhados de luz.

Não havia sombra de pecado na alma de Jesus, embora Ele quisesse sentir os efeitos do pecado, e a terrível sensação de isolamento e solidão – a solidão do afastamento de Deus.

Renunciando à divina consolação que poderia pertencer-Lhe, Ele quis mergulhar na tremenda solidão da alma que se extraviou de Deus pelo pecado, para expiar a solidão do ateu que nega a existência de Deus e deposita a sua fé nas coisas terrenas, a dor do coração despedaçado de todos os pecadores que sentem a amargura da ausência do seu Criador.

Jesus foi até ao ponto de remir todos aqueles que não crêem e que, na tristeza e na miséria, exclamam, blasfemando: “Por que é que a morte levou tal pessoa?”, “Por que é que perdi aos meus bens?”; “Por que é que hei de sofrer”.

O “Por que” que Jesus dirigiu a Seu Pai é uma expiação que abrange os “porquês” soltados por aqueles que blasfemam.

Para melhor revelar a sensação de tal abandono, Jesus exteriorizou-o. Porque o homem se apartara de Deus, Ele permitiu que o Seu sangue se separasse do Seu Corpo. O pecado entrara no sangue do homem e, como se os pecados do mundo recaíssem sobre Ele, Jesus deixou derramar o Seu precioso sangue, do cálice do Seu Corpo. Quase que podemos ouvi-Lo dizer:

“Pai, este é o Meu Corpo, este é o Meu Sangue. Eles estão separados um do outro, tal como a humanidade se separou de Ti. Esta é a Consagração da Minha Cruz”.

O que aconteceu então no Calvário acontece agora na Missa. Com uma diferença: Na Cruz, o Salvador estava só e, na Missa, está conosco. Nosso Senhor, agora, está no céu, à mão direita de Seu Pai, intercedendo por nós. Já não pode, portanto, sofrer na Sua natureza humana.

Como pode, pois, a Missa ser a renovação do drama da Cruz? Como é que Cristo pode renovar o drama da Cruz?

Ele não pode, realmente, voltar a padecer na Sua natureza, porque está no céu, gozando a divina bem-aventurança, mas pode ainda sofrer nas nossas naturezas humanas.

Ele não pode, de fato, reviver o Calvário no Seu Corpo físico, mas pode renovar os Seus sofrimentos no Seu Corpo Místico que é a Igreja.

O sacrifício da Cruz pode ser renovado, contanto que nós Lhe façamos a oferta do nosso corpo e do nosso sangue, em toda a plenitude. Jesus pode também oferecer-Se novamente a Seu Pai Celestial, pela redenção do Seu Corpo Místico – a Igreja.

Cristo anda no mundo juntando as almas que desejam ser outras tantos Cristos. Para que nos nossos sacrifícios, as nossas tristezas, os nossos calvários, as nossas crucificações, não fiquem isoladas, desunidas, a Igreja reúne-os, junta-os, e o agrupamento, a massa de todos esses sacrifícios humanos reúne-se ao grande sacrifício de Cristo na Cruz, durante a Missa.

Quando assistimos ao Santo Sacrifício da Missa, não somos precisamente apenas criaturas terrenas, nem indivíduos solitários, mas sim parcelas vivas de uma grande ordem espiritual, na qual o Infinito penetra e envolve o finito, e o Eterno penetra no ser temporário e passageiro, e o Espiritual reveste a materialidade.

Arcebispo Fulton Sheen, “O Calvário e a Missa”.
Extraído de “A Grande Guerra”.