A CNBB não irá se pronunciar sobre isso

A respeito da exposição — sedizente “cultural” e “artística” — que o Banco Santander havia patrocinado em Porto Alegre mas que, após protestos, terminou cancelada antes do tempo, há dois artigos que precisam ser lidos. Um deles mais longo, mais denso e mais teórico; o outro, curto, prático e certeiro.

Primeiro, o Carlos Ramalhete: «O que se está fazendo é um ataque sistemático às bases mesmas da sociedade e da civilização – de qualquer civilização; não estou falando simplesmente da civilização ocidental, em cujos subúrbios estamos. E quando eu digo que é às bases, não exagero: o ataque visa coisas tão básicas quanto o masculino e o feminino, necessários para a própria reprodução da espécie; a noção hierárquica de superior e inferior, necessária para qualquer reta ordenação social; a noção ético-moral de certo e errado, necessária para o juízo das ações que nós mesmos encetamos. É a destruição da possibilidade mesma de sociedade que esses processos irracionais almejam.»

Depois, o Jônatas Lima: «Este blogueiro pediu uma resposta da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a declaração recebida foi a de que… não. A CNBB não vai fazer nada, por que a arquidiocese de Porto Alegre já fez e “possui autonomia como Igreja local”.»

A recusa explícita da Conferência dos Bispos do Brasil de tomar uma posição institucional perante o fato local de provavelmente maior repercussão midiática nas últimas semanas é sintomática. Mais que isso até: é covarde, pusilânime, agoureira, e nos diz muito a respeito de com quem poderemos contar nestes tempos difíceis em que vivemos. A CNBB perde, mais uma vez!, a chance de se posicionar do lado correto da história e de cumprir o seu papel profético levantando a voz para protestar contra a blasfêmia e a imoralidade explícitas e deliberadas.

Penso, por um instante, que poderia ser pior, e que os senhores bispos — atenção, que isso não é inverossímil! — poderiam muito bem ter lançado uma nota em defesa da malfadada exposição. Quase ouço alguém dizer que deveríamos até dar graças a Deus pelo silêncio da Conferência — tão acostumada a falar o que não deve, a envergonhar a Igreja de Cristo e ofender Nosso Senhor. A argumentação, no entanto, não serve de consolo. Porque este silêncio — publicamente justificado! — já é indevido, vergonhoso e ofensivo. Já é um escândalo, um acinte.

Porque haveria muito o que se dizer. Seria preciso, somente à guisa de exemplificação, protestar contra a ofensa gratuita ao sentimento religioso dos brasileiros, questionar a exposição de crianças e adolescentes às mais grotescas formas de depravação sexual, defender da acusação de censura os brasileiros que, irritados, iniciaram uma exitosa campanha de boicote ao Santander que culminou com o encerramento prematuro do evento, censurar as posições contraditórias tomadas pelo banco a respeito do caso.

Todas e cada uma dessas coisas podiam e aliás precisavam ser ditas; é verdadeiramente chocante que nada disso possa ser encontrado no site da CNBB (a própria página com a notícia da nota de Arquidiocese de Porto Alegre não a reproduz nem parcialmente, simplesmente tem um link dizendo “Leia a Nota no site da arquidiocese”). Quem entra no site da Conferência pensa que nada aconteceu, que está tudo muito bem, que Cristo não foi ofendido e que os católicos não estão sendo atacados. Parece que está tudo na mais perfeita paz.

Diante da grande mídia em uníssono falando em censura e patrocinando o vilipêndio a símbolos religiosos há dias, é embaraçoso que a Conferência Episcopal não se demonstre minimamente interessada em defender a verdade, a bondade e a beleza.

Da conveniência de uma Liturgia Universal

Confesso ter certa dificuldade com uma coisa que, em tempos normais, não deveria ser capaz de angustiar católico algum: assistir a Santa Missa em um lugar distinto do habitual. Se a Igreja é Católica — i.e., Universal — e se a Liturgia é o serviço público da Igreja (“público” aqui tem o sentido de “oficial”), seria de se esperar que esta catolicidade se refletisse, também e talvez até principalmente, na maneira como a Igreja presta o Seu culto a Deus, independente do lugar em que se desse a celebração do Santo Sacrifício.

Eu entendo o argumento de que o Evangelho não é uma cultura pronta e acabada mas, ao contrário, uma força capaz de orientar para Cristo tudo aquilo que é verdadeiramente humano — e, portanto, tem em Si próprio a força de elevar a Deus qualquer cultura. Mas disso não me parece decorrer que o culto a Deus deva reproduzir as particularidades de cada povo, de cada grupo social, de cada costume local (ainda que legítimo). Ao contrário: penso que, no que diz respeito à Sagrada Liturgia, a catolicidade da Igreja deve se sobrepôr à legítima particularidade dos fiéis que do culto divino tomam parte em um momento histórico específico e em um lugar determinado do globo terrestre. Há, penso, diversas razões para que isto deva ser dessa maneira, das quais as três a seguir não são as menos importantes.

Em primeiro lugar, por uma questão de, se é possível chamar assim, sacramentalidade. O sacramento é um sinal e isto significa que a Liturgia da Igreja é, ela toda, uma linguagem. Para além da graça eficaz que é inerente a todo Sacramento, há uma mensagem que a Liturgia precisa transmitir — e esta mensagem precisa falar à inteligência, à compreensão de cada fiel. Ora, esta mensagem é por definição extraordinária: a linguagem da qual ela se reveste, portanto, para ser proporcionada ao conteúdo que se presta a transmitir, precisa ser, ela também, extraordinária. Precisa se afastar do quotidiano, das coisas do dia-a-dia, dos símbolos usados ordinariamente para tratar das coisas da vida: a Liturgia precisa, assim, distanciar-se dos costumes e usos sociais legitimamente vigentes em cada sociedade. Isso é necessário para que o católico veja, na Liturgia, já ao primeiro vislumbre, algo diferente do comum dos dias: é a clássica distinção entre o sagrado e o profano, difícil de exprimir hoje em dia porque o segundo termo adquiriu um caráter pejorativo que não se pode ignorar. O que quero dizer é simplesmente o seguinte: nem tudo o que é humanamente legítimo é adequado à Sagrada Liturgia e nem tudo o que não cabe no Culto Divino é, por isso mesmo, pecaminoso ou indigno. Esta é uma compreensão que se precisa urgentemente resgatar: munidos dela, os católicos seriam mais comedidos em introduzir nas suas celebrações estes elementos estranhos ao espírito da Liturgia e que tanto atrapalham a frutuosa participação dos fiéis.

Em segundo lugar, porque todo legítimo processo de inculturação é mais passivo do que ativo: isto significa que os homens mais têm a sua cultura purificada pela Igreja e moldada ao vigor do Evangelho do que constroem, eles próprios, o seu contributo pessoal ao Catolicismo, o seu tijolo personalizado a integrar as muralhas da Cidade Santa de Deus. O contato transformador com o Evangelho não é um exercício imaginativo ou uma experiência inefável com um fantasma amorfo: se os primeiros cristãos encontraram-se com um Cristo verdadeiramente humano, com um rosto próprio e uma voz particular, é com uma Igreja concreta que se prolonga na História este encontro salvífico — e esta Igreja tem a Sua própria face e a voz que indistintamente é d’Ela. Tem Seus símbolos e Sua linguagem, que A identificam e sem os quais não é possível haver verdadeiro encontro entre os filhos de Deus e a Esposa de Cristo. Se é verdade que há muitas características distintas que cabem no conceito de “homem”, é igualmente verdade que no Verbo de Deus encarnado encontram-se características humanas específicas — uma dada cor de pele, um específico tom de voz, determinada cor de olhos e de cabelos etc. Ora, é claro que há incontáveis elementos humanos com os quais se poderia conceber uma instituição que anunciasse o Evangelho; mas a Igreja, que é o Corpo de Cristo, possui alguns elementos determinados e específicos que respondem por Sua individualidade histórica e por Sua natureza encarnada. E da mesma forma que todo ser humano encontra-se em Cristo Encarnado sem que Ele precise ter ao mesmo tempo todas as distintas características físicas de cada indivíduo, toda cultura humana encontra-se na Igreja de Cristo sem que Ela precise reproduzir em Si mesma todas as culturas — ou cultura nenhuma.

Em terceiro lugar, por fim, por uma questão de catolicidade. A unidade de rito faz com que todo católico, em qualquer parte do mundo em que se encontre, possa vivenciar a Liturgia do modo que está acostumado. Isso complementa admiravelmente o que se dizia acima: se por um lado o católico precisa sentir-se sempre um pouco estrangeiro ao adentrar na igreja da sua terra natal, por outro ele precisa experimentar sempre um ar de familiaridade ao ingressar na igreja de uma terra estranha. O rito católico, justamente por ser universal, não é de lugar algum e é simultaneamente de todos: não existe nenhum fiel capaz de pretender que aquele rito reflita exatamente os costumes particulares do seu povo ou do seu grupo, mas também ninguém pode dizer tratar-se de celebração alienígena que em tudo lhe é estranha. A Sagrada Liturgia é de todos exatamente por não ser de ninguém em particular; esta manifestação sensível de catolicidade fortalece a Igreja e contribui para que todo fiel possa viver melhor a sua Fé. Fazer diferente disso não é enriquecer a cultura particular do fiel, mas ao contrário: é sepultar a cultura universal de todo católico e, fechando-lhe o acesso ao fiel, privá-lo de uma dimensão de eclesialidade que não se pode satisfatoriamente substituir.

Eu pensava nessas coisas porque, em viagem, precisei recentemente assistir a Santa Missa em lugar que eu não conhecia. Mas os meus temores não se concretizaram: Deus foi misericordioso comigo, e me presenteou com uma Missa impecável, celebrada por um sacerdote zeloso cujos olhos estavam o tempo inteiro voltados para Deus. Que o Altíssimo abençoe e recompense aquele padre, que me proporcionou uma bela Missa. Uma Missa sóbria, reverente, comedida, sem invencionices, que poderia ter sido celebrada em qualquer lugar do mundo, por qualquer sacerdote — e, justamente por isso, uma Missa tão católica.

O massacre de Charlie Hebdo: combatemos por algo maior do que nós

Muito já se falou a respeito do horrível atentado que a redação da Charlie Hebdo sofreu ontem em Paris. No meio de uma infinidade de comentários (para dizer o mínimo) superficiais que inundaram os nossos meios de comunicação, gostaria de fazer um apanhado daquilo que considero mais relevante sobre o assunto.

A primeira coisa que acho importante desmistificar é essa necessidade doentia – socialmente exigida e, em alguns casos, até mesmo auto-imposta – de se “tomar partido”, de preferência o mais rápida e veementemente possível. Ora, não nos é necessário, absolutamente, escolher um lado entre os dois que se chocaram, ontem, na capital francesa! Sem dúvidas a comoção é enorme e, por conta disso, é razoável que o raciocínio se nos embote um pouco; contudo, é preciso resistir, e caminhar com bastante cuidado.

Porque, no afã de condenar a chacina estúpida, corre-se o risco de chancelar o deboche religioso que era a marca registrada da revista francesa. Não, nós não defendemos uma liberdade de expressão absoluta e intocável – que inclua o direito de agredir, ofender, escarnecer. Por outro lado, ao repudiar o escárnio da Charlie Hebdo, arriscamo-nos a justificar o assassinato cometido pelos terroristas. Não, nós não defendemos um direito de exterminar os que nos desagradam – segundo o qual os ofendidos possam sentenciar à morte e executar por conta própria os seus ofensores.

Aquilo que a revista se notabilizou por fazer não é humor nem liberdade de expressão, e sim agressão gratuita. Aquilo que os criminosos fizeram ontem em Paris não foi justiça nem defesa legítima, e sim violência absurda. Não é preciso achar lindo o que faziam os cartunistas assassinados para condenar com ardor o seu assassinato. Não é preciso considerar heróis os terroristas para rechaçar com vigor as charges cretinas que a revista satírica veiculava. Não aceitamos a blasfêmia. Mas tampouco aceitemos que a blasfêmia seja punida por particulares – muito menos com a morte.

Evidentemente, também não aceitamos as retaliações ligeiras, com mesquitas anonimamente atacadas à noite por exemplo. A tragédia não pode servir de trampolim para discursos superficiais que, procurando ad hoc responsáveis sobre os quais lançar a culpa do massacre, terminem por cristalizar lugares-comuns como “religião é violenta mesmo”. É evidente que os responsáveis por este crime brutal precisam ser responsabilizados. Infelizmente, parece não ser tão evidente assim que a culpa não pode ser coletivizada para “os muçulmanos” como um todo e nem muito menos para “os religiosos” em geral. Tal expediente irreligioso cretino, de instrumentalização de uma tragédia para alavancar a própria concepção ideológica, precisa – também ele – ser repudiado com a máxima diligência.

Uma outra coisa que precisa ser pontuada é esta: a França não foi palco de um episódio de intolerância religiosa, e sim de um choque de culturas. E, neste sentido, o melhor texto que li sobre o assunto foi escrito no final da década passada. Chama-se «O Islã e o Ocidente», é da lavra de Roger Scruton, é longo e vale cada parágrafo.

Em tempos de multiculturalismo, é preciso ter suficientes pés no chão para reconhecer a existência, em diferentes culturas, de determinados valores completamente incompatíveis entre si. Uma cultura como a ocidental que julgue poder escarnecer das crenças religiosas dos outros não pode conviver com uma outra cultura – como a islâmica – que considere um mandato divino, imposto a todo e qualquer fiel, punir com a morte os que blasfemem contra o Islã. É bastante evidente que ambas tendem à aniquilação mútua; e que, se nenhuma das duas abrir mão de [ao menos parte dos] seus valores, episódios como o de ontem vão se tornar recorrentes.

E a proposta do Scruton é a de que defendamos, abertamente, o patrimônio cultural ocidental frente aos que o ameaçam. Sim, eu sei que isso é mal visto nos dias de hoje, sei que recebe o rótulo depreciativo de “etnocentrismo”, sei que fomos ensinados, de maneira repetida e consistente, desde crianças, a odiarmos aquilo que somos e a desprezarmos as nossas raízes. No entanto, essa atitude é suicida. Nas sociedades, como na natureza, não existe o vácuo. Se os homens não estiverem dispostos a moldar a sociedade de acordo com os seus valores próprios, então ela será moldada pelos valores dos que primeiro tiverem a ideia de os apresentar em praça pública. Se os súditos não forem ensinados a honrar os deuses dos seus antepassados, então eles serão levados a honrar os deuses dos estrangeiros. É assim que o mundo funciona. Já não é mais possível continuar se recusando obstinadamente a o reconhecer.

Tudo isso quer dizer, em suma, que nós estamos em guerra. Não é possível fingir que tudo está na mais perfeita paz e concórdia, porque não está. No entanto, há três coisas sobre esta «guerra» que é preciso deixar claro.

Primeiro, e antes de qualquer outra coisa, que se trata de uma guerra cultural a ser travada no campo das ideias. Isso é bastante evidente, e é preciso rejeitar com veemência todas as tentativas que surjam de estabelecer analogias, ainda que remotas, entre os atos de violência dos terroristas islâmicos e o dito «fundamentalismo» cristão – que geralmente outra coisa não é que «ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja», a propósito. Sim, queremos fazer prevalecer as nossas ideias. Isso não permite concluir, de nenhuma maneira, que queiramos exterminar fisicamente os que pensam diferente de nós.

Segundo, e no mesmo sentido, que discordância não é necessariamente sinônimo de agressão. E, em contrapartida, viver em sociedade não exige necessariamente que as pessoas guardem as suas convicções para si próprias. É lógico que a sociedade precisa caminhar em relativa ordem, mesmo com a presença de múltiplos sistemas de valores em seu interior: isso é óbvio. No entanto, é também evidente, e empiricamente verificável, que a maior parte das pessoas não joga bombas naqueles de quem discorda mesmo visceralmente. Inibir o debate público dos valores não é o mesmo que resguardar a convivência tolerante entre os diferentes, mas justamente o contrário: é deixar o espaço livre para os valores que não respeitem essa regra de auto-contenção. O islamismo é aqui somente o exemplo mais radical: traços dessa “publicização axiológica”, contudo, podem ser encontrados em menor grau também nos laicismos ocidentais.

Terceiro, e por fim, que a vitória nesta guerra é já humanamente impossível. Os valores ocidentais já estão moribundos por conta da longa guerra travada contra a Igreja ao longo dos últimos séculos, e a cultura judaico-cristã parece não encontrar mais uma massa crítica disposta a defendê-la. Os ocidentais envelhecem e morrem impondo-se um controle de natalidade anti-natural que os está conduzindo à extinção, enquanto os muçulmanos povoam o mundo a partir do ventre de suas mulheres. O futuro é sombrio. No entanto, nós mesmo assim precisamos lutar, porque não combatemos pela vitória e sim pela justiça da batalha. Não devemos nos preocupar com as adversidades que existem e nem devemos nos perturbar com os ventos que sopram contra nós: defendemos os nossos ideais por acreditarmos que eles estão corretos, e não porque eles tenham uma chance razoável de se tornarem hegemônicos dentro do horizonte de nossas vidas. Eles muito provavelmente não têm, mas mesmo assim cumpre defendê-los com valentia. Combatemos por algo maior do que nós, e esse é o diferencial que temos em nosso favor. Não é por nós, e sim ad majorem Dei gloriam.

Deus nos vê; combatemos por Ele e por Sua santa Religião, combatemos pela Igreja por Ele fundada, combatemos pelas glórias da Santíssima Virgem. Deus vê, e Ele é Senhor da história, e isso nos deve bastar. As guerras culturais não se vencem pelo poder das armas, e sim pela força das idéias. Talvez, se rezarmos bastante e trabalharmos com afinco, Deus torne o nosso apostolado fecundo. Talvez, se nos esforçarmos e n’Ele confiarmos, Ele conceda graças para que os homens O vejam e, abandonando as fábulas do mundo moderno, n’Ele creiam. Talvez Ele intervenha, e mude a nossa sorte.

Mas talvez não. Talvez só vejamos a Igreja em Seu esplendor na outra vida – quem sabe? Talvez tenhamos mesmo que atravessar tempos tenebrosos à nossa frente: não importa. A cada um cabe fazer a sua parte, e a nossa é defender, com todas as nossas forças, a Fé dos que nos precederam, a Fé que recebemos dos Apóstolos. Ainda que talvez não vejamos o resultado dos nossos esforços, nada que se faz por amor de Deus é em vão. Isso nos deve ser suficiente. No calor do campo de batalha, isso nos deve bastar.

Sobre a JMJ: bons frutos e traições

Com relação à notícia de que a organização da JMJ Rio2013 convidaria para fazer shows no evento cantores como a Ivete Sangalo e o Michel Teló (!), foi publicada ontem uma nota de esclarecimento do Comitê de Organização Local da Jornada dizendo simplesmente que tal participação «não está confirmada pela organização do evento». O desmentido tanto conforta quanto incomoda.

Conforta, porque ao menos esclarece que «as apresentações durante a JMJ Rio2013 são analisadas e devem ter o parecer final do Pontifício Conselho para os Leigos (PCL), que exerce a função de Comitê Organizador Central da JMJ e está ligado ao Vaticano». Incomoda, porque parece não achar que se deva rejeitar com veemência a insinuação de que o show de um artista conhecido por cantar “ai, se eu te pego!, ai, ai, se eu te pego!” pudesse encontrar lugar em um evento católico com a presença do Papa e de fiéis do mundo inteiro.

Sobre o financiamento desses supostos shows, o pe. Marcelo Tenório esclareceu recentemente que «o dinheiro do patrocínio [da JMJ] não será usado para pagar os artistas», cujo cachê ficará ao encargo das próprias gravadoras – «que poderão adquirir posteriormente o contrato para produzir o DVD do evento». Mas, sinceramente, os maiores problemas aqui não são de ordem financeira. A mera proposta parece um escárnio deliberado; alguém pode me explicar qual a relevância cultural do Michel Teló que justifique a sua inclusão – mesmo como possível candidato! – numa “agenda de atividades culturais” de um evento católico?

Eu tenho um particular apreço pela Jornada Mundial da Juventude, desde que fui a Madrid há dois anos e me impressionei muito positivamente com tudo o que vi por lá. Foi lá, por exemplo, que demos eloqüente testemunho público a favor do Deus Altíssimo contra a turba dos inimigos de Cristo que nos assaltava; foi lá a última vez em que vi presencialmente o querido Papa Bento XVI, e guardo carinhosa lembrança de quando, após literalmente um dia inteiro de espera nos arredores da Plaza de Cibeles, fomos recompensados com um olhar direto do Vigário de Cristo, que voltou a cabeça e sorriu para nós. Foi naqueles dias fantásticos que o Vargas Llosa – agnóstico – escreveu que “Deus parecia existir”. Enfim, estou convencido dos bons frutos que o evento vêm dando ao longo dos últimos anos, e acho que ele tem tudo para continuar assim.

Bastando para isso, é claro, que ele não seja sabotado. E não consigo deixar de ver essas tentativas de acabar com a credibilidade da Jornada (desde p.ex. a recente matéria tendenciosa do Globo Repórter até essa idéia de colocar o Michel Teló para cantar para os católicos) como um levante orquestrado das forças do Inferno contra um evento católico que está dando frutos para a glória de Deus e a salvação das almas. Não consigo me dissuadir da idéia de que a JMJ incomoda a muitos, sim, e é isso que motiva tantas tentativas de corrompê-la.

Mas o evento acontecerá. Com o apoio dos bons ou as traições dos maus, ele acontecerá; e para o seu êxito a nossa participação é fundamental. O campo de apostolado é vasto e promissor, e nós não temos o direito de abandoná-lo aos salteadores que não têm compromisso com Deus nem amor à Sua Igreja. À Organização da Jornada eu suplico que avalie – de joelhos diante do sacrário – se o que quer que ela esteja cogitando fazer vai de fato servir à glória de Deus ou se, ao contrário, é vaidade mundana insuflada por Satanás para macular um evento católico. E a todos os que aspiram à glória de Deus e à exaltação da Santa Igreja eu peço que dediquem um pouco do seu tempo à JMJ: com a sua participação ativa ou com as suas orações pelo bom êxito do evento. Que a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro sirva para levar almas a Deus, é o que suplico à Santíssima Virgem Aparecida que nos conceda, apesar dos nossos tantos pecados.

Uma versão embalada a vácuo da triste elite da Roma decadente – Carlos Ramalhete

Como de costume, está excelente o texto de hoje do Carlos Ramalhete na Gazeta do Povo. Leiam lá, comentem e compartilhem. Apenas um trecho:

São pulsões básicas e desordenadas, que tomam a frente nos interesses e deixam o cuidado da sociedade ao encargo de aventureiros. A CPI do momento passa por noticiário político, enquanto a população se dedica a palpitantes notícias sobre qual pintinho vai ou quer ir para qual buraquinho. É um tipo de pseudonotícia que só desperta interesse por ser uma forma de projeção dos próprios desejos, e sua onipresença acaba levando a que se confunda o desejo, que é algo de foro íntimo, com a própria identidade social. Daí termos uma presença crescente de quem se defina a partir do uso que faz ou quer fazer de pintinhos e buraquinhos; daí termos uma demanda crescente por meios de esconder e sufocar as consequências físicas e psicológicas desta fixação – do aborto aos remédios de tarja preta, passando pela contracepção e pela distribuição de camisinhas –; daí termos, em suma, uma sociedade que tenta ser, ela toda, uma versão industrializada e embalada a vácuo da triste elite da Roma decadente.

Um retrato triste, mas verdadeiro. Que Deus nos ajude particularmente nestes tempos terríveis, porque dos homens – muito menos dos homens dos dias que correm! – não podemos esperar senão uma alegre e irresponsável marcha rumo à barbárie.

Site da revista Vila Nova está no ar!

2012 começou bem! Já está no ar o site da Revista Vila Nova, sobre a qual eu já havia falado aqui e a cuja cerimônia de lançamento (com o príncipe Dom Bertrand) eu tive a honra de estar presente no final do ano passado. É uma revista cultural católica produzida em Campina Grande; será de circulação bimestral e, no presente momento, encontra-se em fase de estruturação logística para que possa no futuro ser assinada por leitores de todo o Brasil.

Hoje é possível adquiri-la em Campina Grande ou ler a edição digital que está disponível no site já indicado. Nesta primeira edição há matérias sobre política, saúde, arte e gastronomia, entre outros assuntos variados. Não deixem de ler.

Os nossos parabéns – mais uma vez – aos amigos campinenses que conceberam e realizaram este tão importante projeto. Que a Virgem Santíssima os faça perseverar nesta empreitada!

Dos soutiens às cachorras

Aviso aos leitores mais sensíveis que este post contém uma certa dose – maior do que a que eu me permito usualmente – de expressões chulas, maliciosas e de duplo sentido. Julgo necessário fazê-lo para tratar com mais propriedade do assunto que desejo comentar. Disclaimer feito, vamos ao texto.

Li hoje sobre um projeto de lei – “assinado por 11 deputadas do estado da Bahia” – contra a desvalorização da mulher na música (baiana, em particular, mas eu diria que isto se estende à música brasileira em geral). Trata-se do PL 19.203/2011, da Assembléia Legislativa da Bahia e da autoria da deputada petista Luiza Maia. Tal projeto “[d]ispõe sobre a proibição do uso de recursos públicos para contratação de artistas que em suas músicas, danças ou coreografias desvalorizem, incentivem a violência ou exponham as mulheres a situação de constrangimento”. Na sua justificativa, pode-se ler que

é mister atentar para os conteúdos ofensivos de alguns dos hits do momento, especialmente no que se refere ao reducionismo e desqualificação do ser feminino. Em algumas composições, a mulher é tratada como objeto sexual, como se fosse abreviada apenas a peito, bunda e genitália. Em outras, sob o perigoso pretexto de brincadeira momentânea, prega-se, mesmo que involuntariamente, a violência de gênero. É necessário ver essa situação como um problema. Afinal de contas, muitas pessoas internalizam o teor dessas canções no subconsciente. Ou pior ainda: banalizam o destrato contra a mulher

Eu acho que já comentei aqui outras vezes sobre o péssimo gosto da música contemporânea. Acho perfeitamente justo que o dinheiro público não seja empregado na contratação de “artistas” (!) de gosto tão duvidoso, como propõe o referido projeto de lei. Isto, no entanto, é só a ponta do iceberg. O problema estrutural é muito mais fundo e mais complexo.

O prof. Roberto Albergaria, citado na reportagem do Jornal do Commercio (reproduzida no primeiro link), critica este projeto de lei. E justifica: “É uma idéia estúpida e preconceituosa. A deputada não entendeu como essas músicas são recebidas pelo povo. Elas são machistas, como a sociedade também é. Mas as mulheres que ouvem pegam essas letras, retorcem e fazem uma leitura irônica delas”. Sinto-me na obrigação de discordar do senhor antropólogo da UFBA. Esta música – e outras parecidas que apresentam a mulher como um objeto sexual – não são nada machistas. Na verdade, são é feministas.

Sim, feministas. Quem não se lembra das clássicas queixas das incendiárias de soutiens? As mulheres eram forçadas a ficar em casa enquanto os seus maridos iam às ruas atrás de um rabo-de-saia. É contra este status quo que as mulheres (até aqui, justissimamente) se insurgem; no entanto, o que elas reivindicam não é uma maior moralidade masculina, mas sim o contrário: querem direitos iguais. Querem o seu quinhão de participação na imoralidade. E, aqui, a queixa perde toda a justiça e degenera fatalmente nesta depravação que encontramos por aí nos dias de hoje.

Para mim, todas essas músicas nas quais as mulheres são apresentadas como objetos sexuais – de “mulher não trai, mulher se vinga; mulher cansou de ser traída” a “eu não sou brinquedo não; / se não comer as duas / vai rolar a confusão” – têm um forte cheiro de lingerie queimada. Pra mim, está mais do que claro que este tipo de composição poética não poderia jamais encontrar lugar em uma sociedade “machista” nos moldes tão virulentamente atacados pelas feministas, e foi necessário que primeiro as mulheres passassem a se comportar como machos no cio para que, só depois, as músicas populares seguissem-lhes os passos e apresentassem um retrato de tão degradante espetáculo.

E a maior prova disso é que… não se encontram composições com este nível de imoralidade nas músicas legadas por nossos pais e avós. Vejam bem, o problema não é o sexo. Bem ou mal, sempre houve músicas de teor erótico (afinal, quer coisa mais erótica do que uma camisola de renda – de Sevilha! – ocultando o “divino conteúdo” do qual o eu-lírico se reclama dono?). O problema são as situações (sempre intrinsecamente imorais) nas quais o sexo é cantado e – muito pior – exaltado. Antigamente, até mesmo as prostitutas mereciam canções; mas elas recebiam um “eu vou tirar você deste lugar, / eu vou levar você para morar comigo”. Coisa totalmente diversa se encontra nos dias de hoje onde é… “só as cachorras”, e onde as mulheres claramente se orgulham de serem cantadas como se fossem objetos de prazer. Neste mundo de indigência musical, acaso é de se espantar que nos alegremos quando – com toda a desgraça! – encontremos uma menina cantando “se quiser me ter [sim, com total trocadilho aqui] / tem que ser só meu”?

As feministas julgaram por bem exigir os mesmos “direitos” dos homens, entendendo por isso também o “direito” à imoralidade, à promiscuidade, ao sexo casual, ao prazer venéreo buscado pelo próprio prazer venéreo. E esta mentalidade – claro – se reflete também nas músicas. Foi preciso que chegássemos ao fundo do poço para que passássemos a perceber que existem músicas denegrindo as mulheres! Mas isto não é de hoje: começou com os soutiens queimados. Neste caso, a música popular não “cria” cultura: ela reflete e expande uma cultura que já existe subjacente a ela.

Sim, há músicas que se referem às mulheres como um objeto sexual, mas isto não é o pior. O pior é haver mulheres apresentando-se como objeto sexual, em uma busca vazia por prazer venéreo como se isto fosse uma espécie de “libertação” da “opressão masculina” e onde o seu valor é aferido por meio da quantidade e da intensidade de excitações e fantasias que elas são capazes de proporcionar. Sim, eu tenho certeza de que é importante que se parem de cantar músicas nas quais as mulheres são tratadas como animais ou como objetos. Mas, para isto, parece-me ser de capital importância que sejam reconstruídos alguns soutiens.

Mais sobre infanticídio indígena

Que saudades do tempo em que os missionários se esforçavam por catequizar os índios, levando-lhes a palavra de Deus e conferindo-lhes, por meio dos Sacramentos, a Graça Divina! Hoje o Conselho Indigenista Missionário parece-se mais com uma sucursal do Inferno do que com uma entidade preocupada com a salvação das almas e a glória de Deus.

Faço referência ao texto do Contra o Aborto. Leiam lá. E faço coro ao desabafo do William: “Afinal de contas, o que o CIMI faz? Quantos são os convertidos? Quantos são os batizados, quantos os que abraçam a Fé Católica? Ou será que só ficam neste papo furadíssimo de que a cultura indígena deve ser preservada, mesmo que esta tal ‘cultura’ signifique matar recém-nascidos enterrados vivos ou a flechadas?”.

Faço referência, também, ao texto que o Erguei-Vos, Senhor reproduziu. “Esses antropólogos e missionários estão defendendo a teoria de que, para algumas sociedades, o ‘ser ainda em construção’ poderá ser morto e o fato não deve ser percebido como morte. Repetindo – caso a ‘coisa’ venha a ser assassinada nesse período, o processo não envolverá morte. Não é possível se matar uma coisa que não é gente. Para estes estudiosos, enterrar viva uma criança que ainda não esteja completamente socializada não envolveria morte”.

Na verdade, todo o celeuma gira em torno de uma reportagem publicada no amazonia.org.br, que chama – já no título – o infanticídio de “direito da mulher indígena”. O texto é simplesmente asqueroso. E, lá, encontramos o sr. Saulo Feitosa – secretário-adjunto do Cimi – falando sobre este “costume” indígena da seguinte forma singela:

Para ele, organizações contrárias ao infanticídio fazem uma campanha mentirosa de que a comunidade obriga a mãe indígena a tirar a vida de seu filho, quando não é verdade.  “No local do nascimento, só ficam a parturiente, a mãe e a avó.  Elas é que vão decidir se vão ou não deixar a criança viver.  Se o filho não volta com as mulheres indígenas, é porque elas decidiram não ter a criança”, afirma.

Sinceramente, o que este sujeito ainda está fazendo em “um organismo vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)”, conforme se pode ler no “Quem somos?” do site do Cimi? Por que raios este conselho indigenista dos infernos ainda existe? O que justifica a defesa velada – e, às vezes, nem tão velada assim… – do infanticídio vergonhosamente praticado por algumas tribos indígenas?

O que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tem a dizer sobre isso?

A cultura atéia

[Texto anterior: O nascimento de um ateu]

A cultura atéia

Sem pretensão de oferecer uma análise exaustiva da descristianização da nossa cultura, aponto três aspectos dela em particular que, no meu entender, muito colaboram para a proliferação dos ateus no mundo contemporâneo: os ataques à Igreja Católica, o desprezo da boa filosofia e o crescente progresso científico dos últimos séculos.

A Igreja Católica é a Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, é – fora de quaisquer dúvidas – a maior e mais eloqüente testemunha de que existe, indubitavelmente, um Deus que Se deixa alcançar pelos seres humanos por Ele criados. Lembro-me de que, há alguns anos, um amigo meu – católico convicto, convertido do protestantismo – disse que, caso a Igreja Católica não fosse verdadeira, ele seria ateu, porque então nada existiria. Há muito de verdade nesta frase, porque a Igreja reúne em Si a totalidade de tudo aquilo que é verdadeiramente espiritual; ora, se até mesmo a Igreja Católica for falsa, então todo o resto é também falso. A Igreja é o verdadeiro alvo das campanhas que tentam banir Deus da nossa cultura, exatamente porque os que fazem isso sabem perfeitamente que, caindo a Igreja, cai toda a religião – dado que em todas as demais religiões nada existe de verdadeiro que não pertença, por direito, à Igreja Católica e Apostólica.

A mais eficaz maneira de conduzir as pessoas ao ateísmo é, portanto, desacreditar a Igreja Católica, maior prova da existência de Deus que pode ser encontrada no mundo visível, dado que é obra fundada pelo próprio Deus. É por isso que, num mundo onde o catolicismo é menosprezado, onde os mais variados rótulos odiosos são aplicados à Igreja, onde Ela é alvo constante de um tão grande número de ataques que se torna tremendamente difícil encontrá-La por debaixo da poeira levantada pelos projéteis contra Ela atirados, o ateísmo pode crescer. Se a Igreja é falsa, tudo o mais é falso: os ataques à Igreja fornecem, portanto, excelente matéria-prima para o nascimento dos ateus.

O desprezo à boa filosofia vem engrossar as fileiras dos que militam pela descristianização da cultura ocidental. Também aqui não tenho tempo e nem tampouco competência para uma análise profunda, mas desejo apenas dar uma pincelada sobre o assunto: é francamente de se espantar o desdém que a nossa cultura nutre pela metafísica, como se fosse coisa de pouca monta, ou como se se resumisse a devaneios de desocupados, ou como se estivesse no campo das meras opiniões particulares! Como se as grandes mentes da humanidade que ao longo dos séculos se tivessem debruçado sobre estes problemas tivessem apenas desperdiçado tempo e energia.

Quando acontece de alguém ler, p.ex., as Cinco Vias de Santo Tomás de Aquino e pretender ser capaz de “refutá-las” com meia dúzia de argumentos simplórios (como se ninguém tivesse sido capaz de pensá-los até o século XX!), uma pessoa dessas certamente não entende o que está em discussão. Ou ela não sabe a quê se propõe a metafísica – que não é a mesma coisa de um experimento de laboratório, vale salientar – ou não lhe concede valor. Tomemos um exemplo da primeira opção: demonstra-se a existência de um Criador a partir das coisas criadas. Quando se percorre a seqüência até o fim e se chega ao Não-Criado, e um dos “refutadores” de Santo Tomás aplica a Navalha de Ockham (!) para “eliminar um passo” e dizer que o próprio Universo [p.ex.] pode ser incriado… o que dizer? É óbvio que o Universo não pode ser “incriado”, não pode ser o Primeiro Motor Imóvel simplesmente porque… ele (é empiricamente constatável) se move, se transforma, é contingente! Se uma pessoa não percebe isso, então ela não entende o que está discutindo. Aristóteles e Santo Tomás revirar-se-iam no túmulo caso vissem a qualidade dos “filósofos” que os desafiam!

Pode-se também não conceder valor à metafísica por achar que todo conhecimento digno deste nome é o dito “científico”. A única realidade existente – ou pelo menos a única digna de atenção – seria aquela mensurável em laboratório e reprodutível in vitro. Tal ilusão é fruto do deslumbramento provocado pelo progresso da ciência e pelos benefícios dele advindos. Não que o progresso em si seja uma coisa ruim – de modo algum, é excelente. Mas a má-formação filosófica das pessoas, como foi dito acima, faz com que elas passem a idolatrá-lo! E isso, sim, é inaceitável. É como se elas ouvissem: “ouve, ó século XX! A Ciência é o único conhecimento, e fora d’Ela não há nenhum outro”. Comportam-se, então, como sacerdotes de um novo culto intolerante, e não aceitam que haja mais nada para além dos limites da Deusa-Ciência. A caricatura não é exagerada, pois muitos comportam-se [à parte a terminologia] exatamente assim.

Eis, pois, em linhas gerais (mais não exaustivas), a cultura que propicia e enseja o surgimento de ateus: privados da Igreja Católica, amputados da sã filosofia e deslumbrados com os avanços da ciência, os homens findam por cair na descrença. O progresso científico provocou um terrível fascínio nas almas daqueles que não conseguiam mais enxergar a Verdadeira Igreja nem sabiam mais a arte do bom pensar, fascínio semelhante àquele que os fenômenos naturais provocavam nos povos primitivos: um e outro degenerou em uma crença irracional.

Ao me referir ao ateísmo falo em “crença”, sim, porque existe uma passagem nada sutil entre o agnosticismo e o ateísmo, mas que no entanto quase todo mundo realiza sem lhe dar a menor importância. É sobre ela que pretendo falar um pouco agora.

O nascimento de um ateu

Inicio hoje uma pequena série de despretensiosas considerações sobre o ateísmo. Se é verdade que sempre, desde que o mundo é mundo, existiram pessoas que não acreditavam em Deus, é igualmente verdade que, hoje em dia, o número dos que abraçam semelhante tese é bem mais considerável do que já foi em outras épocas. Acredito que seja também verdade que nunca na história houve um – chamemo-lo assim – “ateísmo militante” tão violento como o que vemos hoje em dia. De onde vem semelhante descrença? Qual é, na verdade, o cerne da discussão entre ateus e teístas? Tais perguntas que se apresentam não possuem respostas triviais. De maneira alguma pretendo esgotar o assunto; o meu objetivo é tão-somente expôr algumas (em grande parte, particulares) opiniões sobre esta realidade.

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O nascimento de um ateu

Já ouvi por algumas vezes alguém dizer que o ateísmo é a “condição natural” do ser humano, porque ele nasce sem acreditar em Deus e, só depois, com a educação que recebe, com a influência da cultura onde vive, passa a abraçar tal ou qual religião. Não acredito que a tese possa ser subscrita assim, simpliciter, por uma razão bastante simples: se é óbvio que uma criança não tem nenhuma ciência da existência de Deus, ela igualmente não tem nenhuma ciência da Sua não-existência. Uma criança recém-nascida não é “atéia”; ela simplesmente ignora a existência de Deus, como ignora também uma série de outras coisas que só com o tempo vai passar a conhecer. O ateísmo não se apresenta, até onde eu saiba, como a “ignorância” de Deus (se bem que ele possa muito bem ser assim definido, mas deixemos isso para uma outra oportunidade), e sim, ao contrário, como o conhecimento de que Deus não existe. E este conhecimento, é óbvio que as crianças não possuem.

Deveriam, portanto, os ateus, que se vangloriam de serem racionais, pararem de equiparar a ignorância infantil à afirmação madura, consciente e deliberada de que Deus não existe. São duas coisas completamente diferentes. O ateísmo não se apresenta como “não saber que Deus existe”, e sim como “saber que Deus não existe”: a posição da partícula negativa na frase faz toda a diferença. Ninguém, portanto, “nasce” ateu; a pessoa passa a ser atéia quando, após atingir a idade da razão, após considerar por conta própria o problema da existência de Deus dentro da cultura na qual está inserida, opta por acreditar na Sua não-existência – exatamente como qualquer processo de “nascimento” de um religioso. O ateísmo não está imune à influência externa que ele tanto critica na formação da consciência religiosa. Também ele é construído, e não inato, como algumas vezes quer pretender.

Dizem-nos, por vezes, que “você é cristão porque nasceu no Ocidente; caso houvesse nascido em algum país do Oriente Médio, seria muçulmano e, portanto, a religião é meramente um produto cultural determinado pela aleatoriedade do lugar onde a pessoa nasceu e foi educada”. Se formos aceitar isso em suas linhas gerais [porque é óbvio que não existe este determinismo absoluto sentenciado, haja vista a existência, p.ex., de cristãos no Oriente Médio e de muçulmanos no Ocidente], poderemos igualmente dizer ao nosso interlocutor: você só é ateu porque nasceu no século XX do Ocidente descristianizado, e esta sentença não seria menos verdadeira do que a primeira. Alguns ateus gostam de pensar que, se tivessem nascido na Idade Média, seriam queimados nas fogueiras da Inquisição; eu julgo isso muitíssimo pouco provável, e tal erro é decorrente da mania que têm os ateus de analisarem-se a si próprios “isolados” da cultura onde nasceram. Se tivessem nascido na Idade Média, os ateus de hoje seriam, em sua grande maioria, cristãos e bons cristãos. Porque aí eles respirariam cristianismo desde a mais tenra infância, e não seriam envenenados pela triste cultura que hoje vivemos.

Parece-me fora de qualquer discussão que a cultura na qual vivemos propicia e enseja o surgimento de ateus, de um modo análogo àquele segundo o qual a cultura cristã da Europa Medieval propiciava e ensejava o surgimento de católicos. Se, no entanto, os ateus quiserem julgar o mundo inteiro com base em um modelo que não aceitam aplicar a si próprios, então eles não estão dispostos a discutirem seriamente – simples assim. Não é honesto utilizar dois pesos e duas medidas. Se os ateus querem enfatizar a importância da cultura no nascimento dos religiosos – coisa que, até onde eu saiba, é indiscutível -, devem também enfatizar a importância da mesma no nascimento de si próprios.

“Ah, mas se o meio cultural do Ocidente do século XX provocasse o surgimento de ateus, então estes seriam a maior parte da população, como os católicos o eram na Idade Média”, alguém pode dizer. Negativo, por três motivos. Em primeiro lugar, porque não existe determinismo na escolha religiosa [ou irreligiosa] dos indivíduos; influência, sim, mas necessidade, não. Em segundo lugar, porque hoje em dia existe ainda, embora em menor escala, a influência religiosa [principalmente – ainda! – no seio familiar], de modo que esta é capaz de oferecer uma opção [graças a Deus, ainda abraçada por muitos] à descrença. Em terceiro lugar, porque o ateísmo é – digamo-lo francamente – uma escolha que repugna a razão, de modo que são necessários grandes esforços para enfiá-la na cabeça das pessoas. Voltaremos a este último ponto mais adiante. Agora, falemos um pouco sobre o porquê da civilização ocidental descristianizada ser terra fértil para o aparecimento dos ateus, sem a qual o número destes não chegaria jamais a ser significante.