Isto está além das cortes superiores

O revmo. padre Lodi, do Pró-Vida de Anápolis, foi recentemente condenado pelo Superior Tribunal de Justiça ao pagamento de uma indenização no valor de R$ 60.000,00. Não encontrei ainda o acórdão do REsp 1.467.888 (acho que o STJ ainda não o publicou), pelo qual tenho um particular interesse; no entanto, as notícias que estão sendo veiculadas — “Padre é condenado a pagar danos morais por impedir aborto legal” — possuem logo no título dois graves equívocos: nem o padre impediu nada, nem o aborto era legal!

Quem impediu o aborto foi o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. O padre, ao contrário do que a manchete dá a entender, não entrou no hospital ameaçando os médicos nem manteve a gestante em cárcere privado; ele ingressou com um habeas corpus que foi apreciado pelo Poder Judiciário e ao qual o desembargador Aluísio Ataídes de Sousa deu provimento. Por força de norma constitucional basilar, o Judiciário não pode se furtar a apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito (CF, 5º, XXXV). A atuação do padre — e, acrescentamos, do Tribunal — manteve-se, portanto, estritamente dentro legalidade, não se compreendendo como ele possa ser, por isso, agora punido.

abortogoiania

Depois, o aborto não foi legal. Não era legal à época (em 2005) e nem é legal agora em 2016. O julgamento da ADPF 54 autorizou o aborto eugênico não de qualquer criança deficiente, mas sim das crianças portadoras de uma deficiência específica: a anencefalia. O acórdão é claro: o que se permite é a «interrupção da gravidez de feto anencéfalo», e não de feto “portador de doença incompatível com a vida extra-uterina”. Por se tratar de norma que autoriza a violação de direito fundamental — o direito à vida do nascituro — não é admissível a interpretação analógica. Ora, a criança em favor da qual o pe. Lodi impetrou o HC em 2005 era portadora de síndrome de Body Stalk, não de anencefalia. À luz da Constituição Federal, do Pacto de San José da Costa Rica e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, impossível estender a (aliás já teratológica) interpretação da ADPF em prejuízo da criança por nascer.

Ainda considerando concesso non dato que a excludente criada pelo STF fosse aplicável ao caso, seria evidente não se tratar de aplicação direta da norma (afinal, as deficiências tratadas em um e em outro caso são distintas!) e, portanto, a divergência na interpretação seria, no mínimo, legítima — o que por si só bastaria para descaracterizar o abuso de direito. Se há divergência interpretativa legítima então a boa-fé é de se presumir; presumindo-se a boa-fé, não há que se falar em abuso de direito.

A decisão do STJ, assim, é toda de se lamentar. Mas como Deus não permite um mal de que não possa tirar um bem ainda maior, essa triste história nos proporcionou duas pequenas pérolas — que em certo sentido pertencem ao passado, é verdade, mas cuja lembrança hoje é um refrigério a nos animar.

Primeiro, o desfecho do caso. Tristíssimo — a mãe, que já havia iniciado o abortamento quando chegou a liminar do TJ-GO, voltou para casa e agonizou em dores de parto por mais de uma semana até que o seu organismo envenenado expulsasse prematuramente a sua filha que, deficiente, sobreviveu pouco menos de duas horas –, mas que tem um detalhe importante. É o próprio padre Lodi quem no-lo recorda: «[d]e qualquer forma, ela [a criança] recebeu um nome [Geovana Gomes Leneu] e foi sepultada, destino bem melhor que o de ser jogada fora e misturada ao lixo hospitalar». E dar um nome e uma sepultura a um ser humano precocemente falecido é coisa bastante digna, que resplandece com vigor no meio das trevas dessa história dolorosa.

Segundo, um HC julgado pelo próprio STJ em 2004 (HC 32159/RJ). Na ocasião, a 5ª turma concedeu um habeas corpus em favor de uma criança anencéfala — eram tempos que não haviam sido ainda maculados pela barbárie da ADPF 54! Naquele seu relatório, a ministra Laurita Vaz reproduziu esta passagem preciosa, preciosíssima, da lavra do MPF:

Não é correto, como faz a il. Des. Gizelda Leitão Teixeira, dizer da invocação constitucional “como garantidora do direito à vida, nada mais”.

Ora, o direito à vida é tudo, por isso que nada mais se considera quando ele é questionado, caindo, então, no vazio tal questionamento.

Não são assim, “velhos e surrados argumentos de defesa pura e simples da vida” como estabeleceu a il. Desembargadora.

Qualquer argumento em favor da vida jamais será velho e surrado.

O que é preciso compreender-se – e agora sim surge a incidência do princípio da razoabilidade – é que vida intra-uterina existe.

É que, mesmo nesse estágio, sentimentos de acolhida, carinho, amor, passam por certo, do pai e da mãe, mormente desta para o feto.

Se ele está fisicamente deformado – por mais feio que possa parecer [–] isto jamais impedirá que a acolhida, o carinho, o amor flua à vida, que existe, e enquanto existir possa.

Isso, graças a Deus, está além da ciência.

Já se vão mais de dez anos! Mas estas palavras nos soam ainda atualíssimas e têm muito a nos dizer, a nós, nestes tristes anos em que o mundo é regido pelo utilitarismo mais doentio — que descarta vidas humanas como se fossem produtos defeituosos, sob a mais dolorosa indiferença da opinião pública. Hoje, como em 2004, a vida intra-uterina existe. E hoje, como então, e como sempre, ela deve ser protegida «enquanto existir possa». Isto está além da ciência e — acrescento eu — além das cortes superiores. Esta verdade é que deve ser guardada, defendida e divulgada, ainda que contra todos. Por esta causa valem quaisquer sacrifícios. É isso que nos torna merecedores de viver. É isso o que nos mantém humanos.

Bebê de Wanessa Camargo ganha ação judicial contra Rafinha Bastos – nascituro tem direito à honra!

Lembram-se do processo movido pelo #FetoDaWanessa contra o humorista Rafinha Bastos por conta das declarações de extremo mau gosto feitas pelo humorista? Soube recentemente que o bebê ganhou na Justiça. Os tribunais o disseram: tem-se direito à honra até mesmo quando se está dentro da barriga da sua mãe e não se tem consciência das ofensas que lhe são dirigidas. O nascituro tem direito à honra! E, se há direito à honra para o feto, é porque obviamente ele tem direito à vida. O direito secundário e derivado não pode prescindir do direito primário e original. Se há aquele, há necessariamente este.

Eu vi n’O Possível e O Extraordinário – leiam lá. Apenas dois destaques. Primeiro, a reviravolta do caso: após um juiz ter excluído o bebê como autor da ação, o Ministério Público emitiu um parecer em defesa do nascituro e o bebê foi re-incluído na lista dos que estavam movendo o processo:

“O Ministério Público intervém no feito em razão da presença do nascituro no pólo ativo da ação… Com efeito, ainda que não seja detentor de personalidade jurídica, os direitos do nascituro foram assegurados no atual Código Civil…vale dizer que devem-lhe ser assegurados o respeito e a observância aos seus direitos da personalidade, eis que se trata de pessoa em formação. Daí porque, considerando ofendida a sua honra por terceiros, podem os genitores ingressar em juízo, a ele representando, visando à obtenção da reparação por danos morais”, relata a Promotoria.

Segundo, a decisão do juz Beethoven Giffoni Ferreira (Processo nº 11.201838-5). Leiam-na! Humor é uma coisa e agressão é outra; liberdade de imprensa não é alvará para ofender; não é qualquer dano moral que deve ser indenizado, senão apenas aquele que é razoavelmente grave; é precisamente este o caso em litígio. Condene-se o réu. Destaque para o início da decisão:

(…) ficou patenteado o insulto, a linguagem vulgar e insultuosa, aniquilada em verdade a moral da família Autora com o gesto pretensamente humorístico do Reqdo., que na sua distorcida ótica acerca do gracejo atingiu até mesmo o nascituro; de todos os presentes que Deus proporcionou aos homens, nenhum é maior que uma criança – mas disso, lamentavelmente, nem sequer cuidou o irreverente Suplicado.

Convém lembrar que o bebê nasceu no início do ano: “José Marcus nasceu às 16h16, na maternidade Pro Matre, em São Paulo, pesando 3,60kg”. E, com poucos dias de vida, ganhou a ação judicial que ele perpetrara ainda no ventre de sua mãe, tendo-a por representante. Um feliz acerto do sistema judiciário, uma vitória da família brasileira, um importante marco estabelecido. Nascituro tem direitos sim. É importante que se desfaça a mistificação sobre este tema, nestes tempos em que querem coisificar o ser humano e negar-lhe direitos básicos em seus estados iniciais de desenvolvimento. Para isto, são extremamente louváveis decisões como esta recente do Tribunal de São Paulo, que reconhecem os seres humanos como detentores de direito independente do tempo de vida que possuam ou do lugar em que se encontrem. Mesmo que não tenham ainda nascido, que estejam ainda no ventre materno.

Arcebispo condenado a pagar indenização milionária

Vejam esta matéria. Ela contém a íntegra de uma carta de Dom Dadeus Grings, arcebispo de Porto Alegre, a respeito de uma condenação judicial sofrida por ele e que o obriga a pagar quase um milhão de reais a título de indenização para «uma família de São João da Boa Vista, em São Paulo, por danos morais». E esta indenização milionária não é por conta de supostos abusos sexuais cometidos ou acobertados, nem por uma campanha massiva de difamação perpetrada por Sua Excelência, nem nada do tipo. Nas palavras do arcebispo:

Eis o fato: Na década de 90, no Município de Mogi Guaçu, SP, concluiu-se um clamoroso processo judiciário que, por razões que chamei de falta de lisura, demorou mais de 10 anos. Sob ameaça de intervenção, foi decretada uma indenização milionária, dez vezes acima do real.

Diante da calamidade pública, alguns cidadãos recorreram a mim, como Bispo da região. – Lembre-se o provérbio que, diante de problemas insolúveis, se manda queixar-se ao Bispo – Trouxeram-me o volumoso processo, que li estarrecido. Escrevi, em conseqüência, diversos artigos, fazendo ponderações em defesa do Município. Não agi em causa própria. Em reconhecimento o Município outorgou-me, solenemente, o título de Cidadão. A sociedade aplaudiu minha intervenção. A família envolvida, porém, me entregou pessoalmente, na Igreja da Imaculada, uma carta, declarando-se atingida, mesmo que não a tivesse nomeado. Respondi, em carta particular, reconhecendo ser justo reivindicar o que de direito, mas não dez vezes mais. Tinha em mãos o relatório das dificuldades das negociações. Adverti que seus advogados, com suas invectivas, “não me deixavam a impressão de lisura”. Por esta expressão, nesta carta não publicada, sou condenado a pagar R$ 940.000,00, a título de danos morais. É justo?

Ou seja: aparentemente não é só xingar muito no Twitter que está com os dias contados. Ao que parece, não se pode mais nem lançar em privado dúvidas sobre a lisura de advogados, sob pena de se receber condenações milionárias.

O Arcebispo é taxativo: «Se me quiserem prender – conforme o Advogado querelante há 14 anos preconizava, – estou às ordens. Só assim o mundo saberá quanto nosso Judiciário é corrupto e arbitrário.» Não creio que o assunto vá tão longe. Mas só o fato de existir uma decisão dessas já revela, de per si, o nível do nosso Judiciário. Que Deus nos proteja.

“Xingar muito no Twitter” com os dias contados

Hoje pela manhã eu lia este longo texto do Geneton Moraes, e aquilo que era motivo de júbilo para o articulista era, para mim, um sinal de profunda desesperança com a sociedade moderna. Resumindo: o sujeito ganhou uma ação (na esfera civil, pelo que entendi) contra um outro repórter que, no Twitter, acusou-o de ter copiado de um trabalho de jornalismo as perguntas que fizera ao Geraldo Vandré em uma entrevista que foi ao ar em 2010.

Eu não sei quem é o Geneton Moraes e nem quem é o outro repórter anônimo cujo tweet ele cita. Não assisti a tal entrevista com o Geraldo Vandré nem muito menos li os comentários no site não-citado onde se acusava o sr. Moraes de copiar as perguntas de trabalhos de alunos de jornalismo. O que me chocou nesta história foi, por um lado, a profunda irrelevância da agressão sofrida e, pelo outro, a enormidade do peso do Estado lançada sobre um comentário de 140 caracteres. Em uma palavra, a absurda desproporcionalidade entre a ação e a reação.

Eu já expliquei outras vezes que, segundo penso, agressões irrelevantes devem ser tratadas no máximo com outras agressões irrelevantes. O cara quer xingar muito no Twitter? Deixa ele xingar muito no Twitter e ser feliz – no máximo, xinguemo-lo também! Bons tempos os da nossa infância, quando a gente aprendia a resolver os problemas da gente em total respeito ao princípio da subsidiariedade: primeiro a gente trocava tapas com os colegas, e só depois – quando a coisa ficava feia – chamávamos os amigos para nos ajudar; se ainda não resolvesse, íamos à professora, à diretora e aos pais. O respeito a esta cadeia hierárquica era sagrado: nunca íamos à diretora (muito menos aos pais!) antes de tentarmos resolver as coisas por nós próprios. Quanta sabedoria nos antigos colégios…

O princípio da subsidiariedade prega que os problemas devem ser resolvidos pelas instâncias mais próximas a ele e que são capazes de tratá-lo. Se alguém nos xinga, a gente xinga também e pronto – em 99% dos casos não há necessidade de envolver instâncias superiores desnecessárias para tratar deste problema (as mais das vezes) fútil, a menos que sejamos dotados de uma tal crise de megalomania que achemos ser o nosso próprio umbigo um assunto tão importante que é absolutamente imprescindível que toda a sociedade com ele se envolva. Somente quando os efeitos deletérios extrapolarem os limites dos envolvidos é que se deve chama o arbítrio de uma instância superior; e, francamente, quem é que dá a mínima para xingamentos do Twitter?

O próprio articulista sabe disso! «Preferi não prolongar o trabalho que estava dando à Justiça – que, como se sabe, já vive sobrecarregada. Dei-me por satisfeito». Tudo isto em nome de um precedente que ele queria estabelecer, que não apenas é inútil como também pode ser prejudicial: já pensou se a moda pega e ninguém pode escrever ou falar mais nada sob pena de ser processado por fulanos e sicranos que se sintam ofendido com o que leram ou ouviram?

Às vezes é sim fundamental que haja uma intervenção superior. Penso, por exemplo, em um caso que li há alguns anos quando a imprensa noticiou (falsamente) que uma escola primária abrigava casos de pedofilia e aí, naturalmente, todos os pais tiraram os seus alunos do colégio – provocando um prejuízo enorme ao dono do estabelecimento de ensino. Aqui, cabe reparação. No caso do sr. Moraes… o que aconteceu com ele? Ele perdeu o emprego, a sua mulher o deixou, ele foi espancado na rua por grupos de skinheads por ser um mau jornalista…? Danos morais não deveriam ser para apaziguar os brios ofendidos de ninguém, e sim para tratar de assuntos sérios e prejuízos verdadeiros. A “honra” de cada um, enquanto não há prejuízo objetivo certo, deveria ser lavada como fazíamos quando éramos crianças. E não com esta síndrome de “conta tudo pra tua mãe, Kiko”.