Católicos e ateísmo

O Alien fez a seguinte pergunta em um comentário sobre outro texto cá do blog:

Não sei se a mídia não mostra, ou não temos acesso, mas alguma vez alguém da Igreja Católica já confrontou cara a cara os defensores do ateísmo? Em público?

Não sei a resposta completa à pergunta, pois não conheço todos os católicos que desenvolvem trabalho apologético nos meios de comunicação mundo afora. Historicamente, sei que muitos católicos já confrontaram abertamente os defensores de todos os erros e heresias (quanto ao agnosticismo em particular, não poderia deixar de mencionar o grande Chesterton), mas imagino que o Alien esteja perguntando com relação aos nossos tempos.

Não conheço muito sobre a apologética católica anti-ateísta contemporânea. Mas posso responder que sim, alguma vez alguém da Igreja Católica, alguém grande, já “confrontou cara a cara os defensores do ateísmo”. Em público, em um teatro, que lotou e foi necessária a colocação improvisada de alto-falantes, para que as pessoas que se aglomeravam do lado de fora pudessem acompanhar o debate.

Quem foi? O então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento XVI gloriosamente reinante. O seu adversário foi o filósofo ateu Paolo Flores d’Arcais. O debate está transcrito em um livro lançado no ano passado, “Deus existe?”, que ainda não li, mas está na minha lista.

Inclusive o ateu Marcelo Coelho, articulista da Folha, escreveu já por duas vezes sobre este debate. O texto que está disponível no seu blog pode ser lido aqui. E seu início não deixa de ser um elogio ao Papa: “Pode-se discordar muito de Bento 16 – e mesmo detestá-lo. Mas é, sem dúvida, um ótimo papa do ponto de vista intelectual”. Em um outro texto (aqui para assinantes), o ateu é forçado a reconhecer a vitória do cardeal católico:

Flores d’Arcais não sai vitorioso, entretanto, do debate com Joseph Ratzinger. Quando se trata de defender princípios universais e inalienáveis, como os direitos humanos, nosso ateu de plantão cai na armadilha do relativismo: muitas sociedades admitiram o homicídio, a antropofagia…

Ratzinger insiste, com razão, que se muitas sociedades fizeram coisas detestáveis, isso não torna casuais, contingentes, os direitos humanos. D’Arcais também não gostaria que isso acontecesse, mas se confunde no debate.

Debates assim são importantes e devem ser divulgados e incentivados. Pois a razão está do lado da Fé, e não do ateísmo. É importante fazer as pessoas compreenderem isso.

P.S.: Sobre este livro, vale a pena ler: ¿Dios existe?, tradução de um artigo do pe. Rodrigo Polanco, aqui publicado.

Craig e Atkins

Não conhecia o William Craig; descobri hoje, graças a um amigo, que ele é um apologeta cristão “especializado” em debates com ateus e agnósticos. Uma parte da sua obra encontra-se traduzida para o português aqui; outro tanto, entre registros de áudio e de vídeo, está disponível (em inglês) aqui.

O vídeo abaixo é um trecho – legendado – de um debate entre Craig e Atkins. “Dois argumentos falaciosos postos juntos não geram um argumento bom” – simples e verdadeiro. São somente três minutos, vale a pena assistir.

A trave e os ciscos

Na internet, nós encontramos coisas inacreditáveis. Um site de hereges chamado cristaos.com, que de cristão não tem nada, diz ter feito uma queixa à CNBB (!) com relação àquilo que ele chama de “sites católicos amadores que pregam ódio e intolerância para com os Cristãos”. Eis a mensagem que, até o presente momento, encontra-se na página principal do site:

Após denúncia feita pela equipe cristaos.com entramos em contato com a CNBB (Conferência nacional dos bispos católicos do Brasil) solicitando divulgação de uma  nota mostrando qual a posição oficial da religião Católica no Brasil em relação aos sites católicos amadores que pregam ódio e intolerância para com os Cristãos. Fomos atendidos pelo padre Elias Wolff que se prontificou a nos dar essa posição no final da semana que vem. Vamos aguardar e tão logo recebermos esse comunicado estaremos esclarecendo, tanto aos nossos visitantes evangélicos como os visitantes católicos que, muitas vezes, são vítimas dos sites “amadores católicos” como Veritatis, Lepanto, Montfort, Defesa Católica entre outros.

Então, a dar crédito àquilo que o site cristaos.com diz, antes do Natal vai sair uma nota da CNBB sobre os “sites católicos amadores”. Provavelmente, refere-se aos sites católicos leigos, entre os quais, então, encontra-se o Deus lo Vult! – o qualificativo “amadores” é meramente um epíteto depreciativo usado pelo site, aplicado a apostolados tão distintos quanto o VS e Lepanto de um lado e a Montfort e o Defesa Católica do outro.

Não há nada ainda no site da CNBB. Esta é uma nota que eu gostaria muito de ver – vai ser divertido. No entanto, já é para rir ver um site protestante do protestantismo mais chulo, agressivo e rasteiro reclamar das agressões católicas. Neste link, eles chamam a Igreja Católica de “Igreja”, entre aspas, o tempo inteiro. Neste link, são os bispos católicos que recebem aspas quando designados, e ainda são acusados de serem “contrários à pregação do evangelho” (!) – por um irônico ato falho, o “evangelho” deles vai em minúsculas mesmo. Neste longo e enfadonho texto com motivos pelos quais as pessoas não devem ser católicas, insinua-se que os católicos não são cristãos – afinal, o texto diz que vai “mostrar a total incompatibilidade que existe entre a cristã e a fé dos católicos” – e, neste outro, diz-se que o catolicismo é “uma das religiões mais demoníacas que existe”.

Verdadeira piada. E, ao final disso tudo, são os sites católicos que “pregam ódio e intolerância”. Se isso não for um absurdo cinismo, é uma deficiência intelectual gigantesca. Por que os “cristãos” do cristaos.com não olham para a trave em seus próprios olhos antes de fazerem queixas histéricas sobre os ciscos nos olhos alheios?

¿Dios existe?

[Texto original: Humanitas
Tradução: Wagner Marchiori
]

DEUS EXISTE?

Por P. Rodrigo Polanco
Secretário Acadêmico da Faculdade de Teologia da PUC – Chile

O livro que apresentamos é fundamentalmente uma transcrição literal de um debate sobre a pergunta que dá título a esta obra: Deus existe?, cujos protagonistas foram o então Cardeal Joseph Ratzinger e o filósofo Paolo Flores d’Arcais. O diálogo ocorreu no teatro Quirino, em Roma, em 21 de fevereiro de 2000, dentro do contexto do Jubileu convocado por João Paulo II pela ocasião do segundo milênio da encarnação do Verbo de Deus.

O debate, como era de se esperar, suscitou muito interesse antes mesmo de sua realização: o teatro estava repleto de público e ficaram mais de duas mil pessoas do lado de fora que conseguiram acompanhar o diálogo com a ajuda de um amplificador improvisado.

O motivo do interesse? Em primeiro lugar os debatedores: o Cardeal Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Conhecido por sua competência em temas filosóficos e teológicos e, particularmente, porque um de seus maiores interesses foi precisamente poder penetrar e compreender melhor a cultura atual e suas dificuldades em aceitar a mensagem cristã; e, mais especificamente, são conhecidos seus numerosos trabalhos acerca da possibilidade e necessidade da fé em um Deus pessoal que possa fundamentar a cultura e a ética no mundo contemporâneo. Hoje é nosso Santo Padre Bento XVI, cujo magistério se viu claramente influenciado por estas preocupações. Esperavam-se, então, de suas reflexões bons aportes ao debate atual.

O outro debatedor era Paolo Flores d’Arcais, filósofo e jornalista, nascido em Udine, Itália, em 1944. Ele se reconhece como ateu e é, na atualidade, uma referência intelectual no âmbito da cultura européia contemporânea. É, além disso, fundador e diretor da revista “Micromega”, que publicou este diálogo (foi publicado também na França pela editora Payot et Rivage e, na Alemanha, pela Wagenbach Verlag). Flores d’Arcais é um decisivo impulsionador dos valores cívicos da democracia e da igualdade. Seu ateísmo significa, para ele, “simplesmente considerar que tudo se passa aqui, em nossa existência, finita e incerta. E, portanto, são importantes os valores que se elegem e a própria conduta” (pg 30). Pode-se perceber, de imediato, que entre esses dois expoentes há pontos em comum apesar de uma diferença fundamental, o que augurava um debate que não decepcionaria.

O diálogo – e esta é a segunda razão do interesse do livro – que foi muito bem moderado por Gard Lerner (um jornalista italiano judeu), se desenvolveu de maneira intensa, muito honesta, às vezes de forma incisiva, mas sempre com respeito à opinião do outro e em sincera busca pela verdade. Ao longo do debate foram saindo os clássicos argumentos contra a existência de Deus e que foram permitindo ao Cardeal Ratzinger colocar com muita claridade, não somente a realidade da existência de Deus, mas, também, o porquê é hoje necessário e, sobretudo, racional (isto é, adequado a uma razão moderna) crer em Deus.

O diálogo – transcrito integralmente no livro – é aberto, fundamentalmente, com uma colocação de Flores d’Arcais que se tornará o fio condutor do debate, pois é justamente o núcleo da discussão sobre a existência de Deus. Afirma Flores d’Arcais que a fé deve aceitar – seguindo a São Paulo em seu “escândalo para a razão” e àquilo que se atribui a Tertuliano, “credo ut absurdum” (creio porque é absurdo (o que creio)) – que é digna de respeito, tem direito a uma cidadania, mas não é exigível nem pode ter a pretensão de ser aceita pela razão, já que “suas verdades” não podem ser demonstradas pela razão e que, inclusive, isso não foi pretensão do cristianismo primitivo que se considerava uma religião à margem da razão. Esta é uma afirmação que talvez muitos cristãos, à primeira vista, subscreveriam.

Pois bem, a partir dessa mesma observação, o Cardeal Ratzinger começa sua exposição demonstrando, com dados históricos, exatamente o contrário. O cristianismo desde suas origens considerou-se como uma religião e uma fé que certamente não era absurda e que, além disso, devia dar “razão de sua esperança”. A primeira carta de São Pedro diz precisamente “estais sempre dispostos a todos os que vos pedem dar razão de vossa esperança” (1Pe 3,15). Os cristãos devem, então, estar em condições de demonstrar o sentido profundamente racional de suas convicções. De fato, o cristianismo primitivo triunfou sobre as religiões pagãs de seu entorno justamente por sua reivindicação de racionalidade. Apresentou-se, inclusive, como filosofia, isto é, como resposta à busca da verdade, do ‘logos’ do mundo. Já no ano 150, Justino, filósofo e mártir cristão, fundava em Roma uma escola de formação cristã, aonde se podia aprender a refletir a fé entendida como filosofia verdadeira. Sua conversão, longe de afastá-lo da filosofia, o fez verdadeiramente filósofo. Certamente, ao entender o cristianismo como a filosofia perfeita, a filosofia que leva à verdade, “não se entendia, então, como uma disciplina acadêmica puramente teórica, mas também, e antes de tudo, desde uma perspectiva prática, como a arte de viver e morrer retamente à qual só se pode chegar à luz da verdade”. Além disso, a pergunta pela verdade, pelo ‘logos’ das coisas, era a pergunta da filosofia e não das religiões pagãs da época.

A convicção básica da Antiguidade – e creio que também nossa – era que no mundo existe uma racionalidade sobre a irracionalidade – o mundo, a vida, cada um de nós mesmos não somos um absurdo – e, por isso, uma religião, qualquer que seja, mostrar-se-á adequada e verdadeira na medida em que se apresente como “vera religio”, isto é, como verdade universal e fundante. E dessa verdade se deduz também a natureza do homem e, portanto, seu dever moral. De fato, “o que a lei supõe realmente, as exigências que o Deus único coloca para a vida do homem e que a fé cristã traz à luz, coincide com o que o homem, todo homem, leva escrito no coração, de maneira que o considera bom quando aparece diante dele. Coincide com o que é ‘bom por natureza’ (Rom 2,14)” (pág. 16-17). Na base dos direitos humanos universais – nascidos em contexto cristão e desde o cristianismo – está precisamente a convicção de uma verdade comum – o homem – e um fundamento último: Deus. Essa foi sempre a pretensão do cristianismo, que nasce não tão somente da Revelação, mas também da racionalidade das coisas que existem.

E o debate continua se desenvolvendo, sempre em forma de diálogo e com oportunas reflexões de Paolo Flores d’Arcais em que apresenta suas considerações, sejam factuais ou filosóficos, para não aceitar as verdades e a pretensão do cristianismo. Por exemplo: sendo Deus o “Totalmente Outro”, pode alguém pretender realmente conhece-Lo?  Não são todas as religiões aproximações igualmente válidas, já que não se pode nem sequer se aproximar por analogia àquilo que Deus é? Porque é necessário que haja “um” sentido para a vida? Não bastaria que cada um encontrasse um sentido particular para sua vida, ainda que seja absurdo para outro? Por que deve haver um único sentido?

Neste ponto do diálogo aparece um elemento crucial na exposição de Flores d’Arcais: se o cristianismo – diz ele – se visse a si mesmo como uma religião que é escândalo para a razão (ou seja, não racional), não haveria problemas, porque uma fé assim somente pediria à sociedade que a respeitasse e não tentaria se impor na sociedade, isto é, não seria missionária. O problema para Flores é se – ao contrário – a “fé católica pretende ser o sumário e o cume da razão, ser o sumário e o cume de tudo aquilo que é mais característico do homem”, ou em palavras do Concílio Vaticano II se “o mistério do homem somente se esclarece no mistério do Verbo Encarnado” (GS 22), então é essencial (ao cristianismo) seu interesse em propagar esta “Boa Nova” (já que o bem é difusivo por si próprio), mas, ao mesmo tempo, é inevitável o risco de que mais tarde caia na tentação de se impor. O Cardeal Ratzinger está, evidentemente, totalmente de acordo em que é preciso evitar o perigo de tentar se impor. A fé apela sempre à consciência e à razão, o ato de fé é necessariamente um ato que nasce da liberdade e de haver reconhecido a Deus que se revela e oferece a salvação, mas sempre é oferecimento livre.

Mas o motivo da missão e da evangelização, isto é, este elemento essencial da fé católica, “nasce do fato que nós, os crentes, cremos que temos algo que dizer ao mundo, a todos, que a questão de Deus não é uma questão privada…, pelo contrário, estamos convencidos de que o homem necessita conhecer a Deus, estamos convencidos de que em Jesus apareceu a verdade e a verdade não é propriedade privada de alguém, mas que tem de ser compartilhada, tem de ser conhecida”. Novamente o tema da verdade e da razão.

À continuação o tema se desenvolve em diversos matizes e se chega assim a um novo passo na reflexão de nosso atual Santo Padre. Havia dito que a fé católica é racional e que, como verdade, é necessário que todos a conheçam; passa, agora, a discutir com Flores a “novidade cristã de Deus”. A Bíblia nos apresenta um Deus que está além do Deus da filosofia, isto é, um Deus pessoal que é amor. O mundo vem da razão – logos – mas esta razão é pessoa, é amor – isto é o que o característico e próprio do cristianismo. Isso também não é absurdo, mas supera o alcance da razão por si mesma. Com esta afirmação – segundo o Cardeal Ratzinger quando ainda era um professor universitário – aparece o conceito de criação, tão próprio do cristianismo. O mundo é positivo, é bom e é fruto do amor. É, então, bom viver nele. Portanto, o mundo tem uma direção e medida porque é fruto do Criador que se expressa nele. E, se é fruto do amor, está transpassado pelo amor e a liberdade de acolher esse mesmo amor (cf. J. Ratzinger, Introdução ao Cristianismo). E de onde concluímos isso? Simplesmente de que Deus é como se manifesta. Deus não pode se manifestar como não é. Em termos filosóficos, estamos falando de ‘analogia entis’ e, mais em particular, da ‘analogia amoris’.

O que é a fé, então?  Não é simplesmente um saber, mas uma forma de se situar frente ao mundo, frente a toda a realidade, é a orientação de toda a vida humana, o que é somente possível em virtude de um sentido que a sustente. E esse sentido “não se pode construir, somente se pode receber” (ibid). Isso é a fé: aceitar o dom da revelação que fundamenta gratuitamente nossa vida, é o compreender a existência como resposta ao Logos que tudo sustenta. É aceitá-Lo e n’Ele confiar. E isso é totalmente contrário ao “irracional”. Efetivamente, é aproximar-se ao fundamento, ao sentido da vida e esse fundamento não pode ser – para o homem – outra coisa que não a verdade. Um sentido que não fosse verdade seria um sem-sentido. A fé, no fundo, nos faz compreender autenticamente o mundo, isto é, entendê-lo e fazê-lo próprio.

Mas esse compreender – e isso é essencial para o conceito de fé – é fundamentalmente um encontro com Deus-amor, é uma relação pessoal, é uma aceitação livre de Deus como Deus, é deixar a Deus ser Deus. A fé sustenta não somente que Deus é Logos, mas que, além disso, esse Logos, essa Razão, é liberdade, é amor criador e pessoa. E, portanto, “o supremo não é o mais geral, mas o particular; por isso a fé cristã é, antes de tudo, opção pelo homem como ser irredutível que aponta à infinitude” (ibid). Deus não só conhece, mas que também ama, é criador porque é amor. É um Deus para o qual nada é demasiadamente pequeno e, portanto, um Deus que entra em relação com todo ser humano de modo pessoal.

Neste ponto as posições se aproximam. Para Flores d’Arcais, o ser humano, ainda na opção “desde o desencanto” – que é a opção do pensamento ateu (em contraposição à opção ‘desde a fé’) (*) – deve igualmente escolher entre uma vida com a primazia do EU – solitário – ou do TU – do encontro que soma – para orientar toda sua vida, ainda que seja sua efêmera vida. E aí, no amor ao próximo, há a possibilidade do encontro entre crentes e ateus. E isso é o que permite, desde a Antiguidade, a convivência pacífica na mesma ‘polis’ entre os que pensam diferente.

O diálogo não pode seguir além de duas horas e meia que já dura, mesmo ainda tendo deixado muitos temas e perguntas sem tratamento e, mais ainda, havendo deixado muitas questões colocadas no meio do debate que suscitaram novas perguntas e dão incentivos para pensar e aprofundar nas próprias convicções. Com que gosto haveríamos seguido escutando – ou lendo – este diálogo elevado! De qualquer maneira, o livro ainda nos agrega dois textos complementares ao debate e em torno dos mesmos temas. Um, do Cardeal Ratzinger, intitulado “A pretensão da verdade colocada em dúvida”. E outro, de Paolo Flores d’Arcais, chamado “Ateísmo e verdade”. Como se pode apreciar a partir destes títulos, o tema Deus é, no fundo, um tema sobre a verdade e, finalmente, um tema religioso, mas, ao mesmo tempo, metafísico. E religioso porque metafísico.

Em síntese, um interessante livro sobre um tema extremamente atual que mostra, uma vez mais, o amor à verdade de nosso Santo Padre Bento XVI, sua confiança no diálogo com o outro que pensa diferente e, também, seu respeito pelas opiniões contrárias; assim como sua amplíssima cultura e profundidade para tratar temas atuais. Por outro lado, Paolo Flores d’Arcais deixa uma grata impressão de homem inteligente, aberto e que advoga, de maneira muito aguda, as características e perguntas do ateísmo contemporâneo. Um livro que ajuda a pensar e a pensar também a própria fé, porque “todo o que crê, pensa; pensa crendo e crê pensando (…). Porque se o que se crê não se pensa, a fé é nula” (Sto Agostinho, “De praedestinatione sanctorum” 2, 5 em ‘Fides et Ratio’ 79).

(*) Para Flores d’Arcais a postura atéia considera que “tudo se joga aqui, em nossa existência, finita e incerta”, isto é, ser ateu consiste em ser o homem do desencanto e do finito. (N. T.)

Assassinatos impunes

O Percival Puggina escreveu um texto muito pertinente chamado “O Abortista”, cuja leitura, caso ainda não tenham feito, eu recomendo enfaticamente aos visitantes do Deus lo Vult!. Trata sobre um caso ocorrido há uns quinze dias atrás em Sapucaia do Sul, quando uma estudante universitária foi presa por tentativa de homicídio contra a própria filha recém-nascida.

O Puggina fala em aborto. As manchetes que encontrei – a própria do Zero Hora citada, esta d’O Globo, ou ainda esta do jornal NHfalam em parto. Como a criança nasceu prematura (com sete meses) e como a jovem obviamente não desejava a gravidez (dado que “escondeu o bebê dentro de uma bolsa, enrolado numa sacola plástica” após o seu nascimento!), acho a hipótese de aborto muito plausível. Até onde eu saiba, a recém-nascida está internada em estado de saúde grave; não encontrei notícias mais recentes sobre o ocorrido.

A afirmação do amigo do Puggina após saber que a mãe e o pai da criança haviam sido presos – “Estão presos, é? Que absurdo! Vê só o resultado dessas idéias de vocês! Tivessem feito esse mesmo aborto direitinho, num hospital, com assistência médica, nada disso teria ocorrido” – é a mais honesta expressão da mentalidade abortista. Qual a diferença entre a criança dentro da sacola plástica em Sapucaia do Sul e a criança dentro de um saco de lixo hospitalar após o aborto? Nenhuma – só a chance de sobrevivência do bebê que, fora do matadouro abortista, é um pouco maior -, e o interlocutor do Puggina sabe tão bem disso que não cora de vergonha ao dizer o que disse. Do aborto para o infanticídio a diferença é meramente o local onde é realizado o assassinato, se dentro do útero da mãe ou fora dele.

Uma mulher dessas deve ser punida? É óbvio que deve. Curiosamente, no entanto, não querem que sejam punidas as mulheres que assassinam os próprios filhos dentro do seu ventre. Tal irracional discrepância entre as posições tomadas diante de fatos que, em essência, são idênticos, é mais um sintoma da degeneração intelectual e moral que toma conta da nossa sociedade.

No debate sobre o aborto que assisti aqui em Recife, o advogado criminalista reclamava da exibição de fetos assassinados – produtos do aborto – cobertos de sangue que era feita à época dele nos debates sobre o aborto, alegando que não dava para debater o assunto com seriedade após o choque provocado por imagens tão fortes. Acontece que essas “imagens tão fortes” são exatamente o assunto que se está debatendo, de modo que não dá para debater sobre algo sem ter uma idéia clara do que está em discussão. Fosse num mundo mais afeito aos processos intelectuais – fosse na Idade Média -, provavelmente seria possível à enorme maioria das pessoas conceberem o que significa um aborto sem precisarem ver um. No nosso século desgraçado, contudo, onde as pessoas esqueceram como se pensa e só conseguem raciocinar sobre aquilo que vêem, mostrar o banho de sangue – pôr a descoberto o cadáver oculto – é fundamental.

No mesmo debate, a feminista da ONG pró-aborto dizia que a mulher pode ter “um projeto de vida” frustrado por uma gravidez indesejada, de modo que não seria justo que ela abdicasse dos seus sonhos por conta de um filho que ela não tinha então condições de criar. Citou até o exemplo de “terminar a faculdade”. Pois bem, esta jovem de Sapucaia do Sul era estudante universitária e certamente tinha “um projeto de vida” que viu ameaçado pela gravidez, de modo que decidiu abortar a filha e escondê-la, de pernas quebradas, dentro de uma bolsa. Não há “projetos de vida” que justifiquem a eliminação voluntária de uma vida inocente. A jovem de Sapucaia do Sul que encarna os sofismas da sra. Sílvia Regina está presa na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre. Querem os senhores abortistas discutir sobre o aborto? Discutam-no à luz deste triste caso ocorrido no Rio Grande do Sul!

Defender o aborto é ter um grave defeito intelectual e/ou moral. Não existe nenhuma condição de se tratar um abortista como se fosse uma pessoa na plena posse de suas faculdades mentais; ele não é. Todo abortista é capaz de “raciocinar” como o amigo do Puggina citado no artigo dele. E, diante de pessoas assim, às vezes a melhor coisa a fazer é mesmo mandá-las “para um lugar bem feio” e afastá-las das esferas de decisão da sociedade. É óbvio que quem defende que os assassinatos possam ficar impunes não tem nenhuma condição de legislar ou de julgar.

Debate sobre o aborto – próxima quarta

[Divulgando conforme email que recebi.]

Debate sobre o ABORTO

No Programa Jurídico News, na quarta-feira, dia 08/04/2009, às 22:00 horas.

O programa é exibido ao vivo e pode ser assistido pelos internautas (que podem enviar perguntas no ar), no site

www.justtv.com.br

Convidados:

Dr. Cicero Harada – advogado, conselheiro da OAB-SP, presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia da OAB-SP, foi Procurador do Estado de São Paulo. (cicero.harada@terra.com.br; http://tamarmatar.wordpress.com/)

Dra. Elizabeth Kipman Cerqueira – Médica ginecologista-Obstétrica; integrante da Comissão de Ética e Coordenadora do Depto. de Bioética do Hospital São Francisco, em Jacareí, São Paulo, Diretora do Centro Interdisciplinar de Bioética da Associação “Casa Fonte da Vida”; especialista em Logoterapia e Logoteoria aplicada à Educação.

Dr. Luiz Riccetto Neto – entrevistador.

Debate sobre o aborto – Facvldade de Direito

Ontem à noite, estive presente em um debate sobre o aborto realizado na centenária Facvldade de Direito do Recife. Um amigo ia defender a posição de absoluto repúdio ao aborto, contra “uns abortistas”, conforme ele me havia dito. Fui ver o espetáculo.

Na mesa, quatro pessoas: uma moderadora e três debatedores. O Thiago Moraes, meu amigo, defendendo a posição “da Igreja”; uma mulher da ONG abortista SOS Corpo, chamada Sílvia Regina, e um advogado criminalista, chamado Paulo César. No início, uma exposição preliminar de cada um deles: primeiro o católico, depois a senhora da ONG, e por fim o criminalista.

A platéia era ofensiva à posição da Igreja; Thiago optou por um estilo agressivo, falando alto, com indignação, pondo ênfase nas palavras, elevando o tom de voz; até o final do debate, iriam dizer que ele estava “esbravejando”, “expondo as coisas de uma forma raivosa”, “impondo e não debatendo”, etc. Embora não saiba até onde foi proveitosa, acredito que tenha sido uma estratégia; ele queria indignar as pessoas, e conseguiu. Falou em Lei Natural e na importância de se defender a vida humana, pois a omissão nesta defesa solapa toda a ordem jurídica; falou que a posição contrária ao aborto é “racionalmente defensável”, e esforçou-se para desvinculá-la da “posição da Igreja” – termo que carrega uma conotação religiosa; falou na “mistificação” do aborto, nos ossos carcomidos de Comte, e falou que, no Brasil, não iria acontecer a mesma coisa que na Colômbia, porque esta aqui “é a Terra de Santa Cruz” e os abortistas iam encontrar resistência. Falou bem, e o estilo agressivo irritou a platéia.

Depois, veio a mulher da SOS Corpo. Cara feia, fala mansa: falou que o aborto “sempre foi praticado” desde que o mundo é mundo, que só passou a ser crime no Brasil “na década de 40”, que a culpa era das “sociedades patriarcais”, que “as nossas mães também abortam”, que “as freiras abortam”, que um “embrião de ser humano” não era um ser humano porque, para ser “um ser humano”, era necessário ter “um projeto de vida”, falou na luta das mulheres, nas conquistas do feminismo, que as mulheres têm direito a abortar porque têm o direito de escolher o seu futuro, porque os métodos contraceptivos falham, porque quando uma “porcaria de gravidez” vem na hora errada e a mulher está cheia de problemas, a vida “é o que menos importa”, e falou que uma sociedade que liberasse o aborto seria “mais humana”, e blá-blá-blá-blá-blá… como muito argutamente comentou uma amiga à saída, o tom de voz manso dela “escondia” as barbaridades faladas. Se a gente fosse prestar atenção à quantidade de besteiras proferidas no meio da fala suave, iria ficar impressionado.

Depois, o advogado. Possuía um tique no olho esquerdo, mas falava bem, e prendia a atenção: o cerne do seu discurso era o fato de que “nós não poderíamos responder a uma mulher que aborta com o Direito Penal”, porque o drama por ela vivido já lhe era sofrimento o bastante. No meio das besteiras [o sujeito era relativista e pragmático até a medula], pelo menos duas informações trazidas por ele são relevantes:

– a maior parte dos doutrinadores ensina que o art. 128 do Código Penal consiste em uma exclusão de ilicitude [? ou “de tipicidade”? Não conheço os termos jurídicos…], e não de punibilidade (trocando em miúdos, que o aborto provocado em caso de estupro e quando não há outra forma de salvar a vida da mãe não simplesmente “não é punido”, mas sim “não é crime” mesmo – sobre este assunto, talvez valha a pena a leitura deste documento que encontrei – não li ainda – no site do padre Lodi).

– a porcentagem de absolvição para mulheres que cometem aborto e são levadas a julgamento, pelo menos nas capitais, é próxima dos 100%, de modo que, segundo ele, se o Legislativo não tiver a coragem de retirar o aborto do Código Penal, a própria sociedade vai se encarregar de fazer com que a lei vire “letra morta” por simples desuso.

Pronto. Após a primeira fala de cada um dos debatedores (e – na minha opinião erroneamente – sem tempo para as réplicas e tréplicas), seguiram-se blocos de perguntas, com três em cada bloco (só houve tempo para dois blocos). Obviamente, os debatedores aproveitaram-se deste tempo concedido para fazerem as réplicas que cabiam (principalmente o Thiago, que havia sido o primeiro a falar). Como o tempo era curto, ele foi lacônico: “o assassinato [como o aborto] também sempre existiu e a gente não vai legalizá-lo por causa disso”; “se você é católico, se você é hinduísta, budista, ateu ou o que seja, você deve ser contra o aborto”; “um embrião é um ser humano, e não ‘um projeto’ de ser humano”; e outras sentenças proferidas com a concisão exigida pelo tempo e a agressividade adotada como estratégia. Do fundo do auditório ensaiaram algumas vaias. Ele conseguiu realmente incomodar.

Daqui em diante, pouco ou quase nada é digno de menção, porque a palhaçada atingiu o apogeu. A sra. Sílvia falou do patriarcalismo da Igreja, o sr. Paulo falou no respeito às opiniões dos outros, ambos iluminaram o auditório com incontáveis alusões às fogueiras da Inquisição, rejubilaram-se com o fim da Idade Média que já passou e não volta mais, enforcaram o último rei nas tripas do último padre com as loas ao Iluminismo, falaram mal de Dom José com a atitude “que envergonhou Recife” diante do mundo, e foram completamente vãos todos os esforços do Thiago para arrancar o debate da esfera do preconceito e trazê-lo para a da argumentação racional. Não adiantou.

No fim, o povo já não ouvia o que Thiago falava, pois o burburinho crescia, os pedidos de silêncio aumentavam, as perguntas começaram a ficar [ainda mais] estúpidas [“se sua mulher fosse estuprada, o que você faria?”], e quase ninguém percebeu a leitura de um texto sobre Moloch no final – texto muito bom, diga-se de passagem. Fim de noite, saí do debate com duas sensações: frustrado, porque são pessoas como aquelas que estavam no auditório que serão os futuros formadores de opiniões e fazedores de leis; e atônito, porque os abortistas não são capazes de apresentar um único argumento e, contudo, defendem as suas barbaridades assim mesmo e encontram quem lhes dê ouvidos! Mas um outro amigo que lá estudava disse-me que foi muito bom: afinal, as pessoas estariam nos próximos dias comentando sobre o assunto, criando assim um território fértil para se fazer apostolado.

Tomara que elas discutam, sim, e discutam com sinceridade, sem paixões, sem preconceitos, sem irracionalismos; tomara que os pró-vida daquela faculdade – entre os quais conto alguns bons amigos – tenham as oportunidades de que precisam para defender as crianças por nascer. E que a Virgem da Conceição Aparecida, Padroeira do Brasil, seja em seu favor; e  que Ela livre o Brasil da maldição do aborto.

As armas na defesa da Verdade

Recebi aqui no blog alguns comentários referentes à forma segundo a qual é lícito ao cristão travar os seus debates em defesa da Verdade. Em particular, foi atacada uma característica que sempre esteve presente na história da Igreja, que é a ironia direcionada contra os inimigos de Deus. Cabe, portanto, perguntar se é lícito ao cristão utilizar-se de ironia para defender a Deus e a Santa Igreja. A questão precisa ser analisada com um pouco de atenção.

Comecemos pelo Catecismo da Igreja Católica; o único momento em que ele fala sobre “ironia” é no parágrafo seguinte:

2481. A jactância ou vanglória constitui um pecado contra a verdade. O mesmo se diga da ironia que visa depreciar alguém, caricaturando, de modo malévolo, um ou outro aspecto do seu comportamento.

A ironia é, portanto, um pecado contra a Verdade. Mas cabe-nos ainda perguntar: isto se aplica a toda espécie de ironia? Ou ainda: a quê, exatamente, refere-se o catecismo quando coloca a ironia como sendo um pecado contra a Verdade?

Santo Tomás de Aquino também fala sobre a ironia na Suma Teológica (Secunda Secundae, q. 113). Para o Doutor Angélico, no entanto, a ironia é aquela coisa “pela qual alguém finge ser menos do que é na realidade”. E ele distingue a ironia que respeita a Verdade daquela que A falseia; esta última é sempre pecado mas, a primeira, não é pecado em si. Parece-nos, todavia, que ainda não é bem este o sentido da palavra que nós estamos buscando.

Sejamos um pouco mais insistentes e mergulhemos com mais afinco nos escritos do Aquinate. Em outro lugar da Summa, falando sobre a “burla” (Secunda Secundae, q.75) e principalmente sobre a “contumélia” (Secunda Secundae, q. 72), encontramos Santo Tomás falando de algo que se assemelha mais àquilo sobre o qual estamos tratando; esta última, aliás, refere-se justamente às injúrias verbais e, salvo melhor juízo, a “ironia” que nós estamos procurando encaixa-se justamente aqui. Santo Tomás nos ensina que “nos pecados de palavras parece que deve considerar-se, sobretudo, com que intenção se pronunciam as palavras. (…) [S]e alguém pronuncia palavras de insulto ou de contumélia contra outro, mas sem intenção de desonrá-lo, e sim para corrigi-lo ou por outro motivo similar, não profere um insulto ou contumélia formal e diretamente, senão acidental e materialmente. (…) Por isso, isto pode ser algumas vezes pecado venial e outras vezes nem sequer haver pecado” (II-IIae, q.72, a.2).

Isso nos explica melhor o sentido do parágrafo 2481 do Catecismo; a ironia que é pecado contra a Verdade é aquela “que visa depreciar alguém”, que é feita “de modo malévolo”. Se, ao contrário, for usada no meio dos embates apologéticos, com o intuito de defender a Verdade e condenar o erro, para desmascarar os sofismas levantados contra Deus e expôr ao ridículo os inimigos da Santa Igreja, então a ironia pode ser não apenas lícita como também meritória. E, desta boa aplicação da ironia, há abundantes exemplos na História da Igreja.

Uma das passagens bíblicas que melhor ilustra isso encontra-se no Primeiro Livro dos Reis. Elias fez um desafio aos profetas de Baal: tanto um quanto outros colocariam um novilho sobre uma pilha de lenha, e invocariam, estes Baal, aquele o Senhor. O Deus que respondesse seria o verdadeiro Deus. Os sacerdotes de Baal foram os primeiros a fazer a prova. Após gritarem pelo ídolo pagão durante a manhã inteira sem obterem resposta, Elias começou a zombar deles:

Sendo já meio-dia, Elias escarnecia-os, dizendo: Gritai com mais força, pois (seguramente!) ele é deus; mas estará entretido em alguma conversa, ou ocupado, ou em viagem, ou estará dormindo… e isso o acordará. [1Rs 18, 27]

E eles gritaram. “Mas não houve voz, nem resposta, nem sinal algum de atenção” (v. 29). Foi quando Elias preparou um altar, e invocou o nome do Senhor, e então “o fogo do Senhor baixou do céu e consumiu o holocausto, a lenha, as pedras, a poeira e até mesmo a água da valeta” (v. 38). Elias debochou duramente dos seguidores de Baal, expondo-os ao ridículo diante do povo de Israel; depois disso, clamou ao Senhor e foi escutado.

E os santos que se envolveram em polêmicas foram por muitas vezes ácidos e irônicos. Existe um escrito de São Jerônimo que, na minha opinião, todos os católicos deveriam ler e reler: trata-se do Tratado da Virgindade Perpétua da Santíssima Virgem. Foi uma polêmica que o santo travou com um herege chamado Helvídio, que negava a Virgindade de Maria Santíssima. Já nas primeiras linhas da obra, São Jerônimo deixa claro qual é o seu estilo:

1. Há algum tempo, recebi o pedido de alguns irmãos para responder a um panfleto escrito por um tal Helvídio. Demorei para fazê-lo, não porque fosse tarefa difícil defender a verdade e refutar um ignorante sem cultura, que dificilmente tomou contato com os primeiros graus do saber, mas porque fiquei preocupado em oferecer uma resposta digna, que desmoronasse os seus argumentos.

Havia ainda a preocupação de que um discípulo confuso (o único sujeito do mundo que se considera clérigo e leigo; único também, como se diz, que pensa que a eloquência consiste na tagarelice, e que falar mal de alguém torna o testemunho de boa fé) poderia passar a blasfemar ainda mais, caso lhe fosse dada outra oportunidade para discutir. Ele, então, como se estivesse sobre um pedestal, passaria a espalhar suas opiniões em todos os lugares.

Também temia que, quando caísse na realidade, passasse a atacar seus adversários de forma ainda mais ofensiva.

Mas, mesmo que eu achasse justos todos esses motivos para guardar silêncio, muito mais justamente deixaram de me influenciar a partir do instante em que um escândalo foi instaurado entre os irmãos, que passaram a acreditar nesse falatório. O machado do Evangelho deve agora cortar pela raiz essa árvore estéril, e tanto ela quanto suas folhagens sem frutos devem ser atiradas no fogo, de tal maneira que Helvídio – que jamais aprendeu a falar – possa aprender, finalmente, a controlar a sua língua.

Não é um exemplo isolado. De muitos que poderiam ser citados, também Santo Ireneu, quando atacava os gnósticos do seu tempo, não tinha melindres sentimentalistas e lançava-se com ardor à batalha que precisava travar para defender a Sã Doutrina:

Vejamos agora as inconstantes doutrinas deles [dos gnósticos]. São duas ou três, e como falam de forma diferente sobre as mesmas coisas e, servindo-se de nomes iguais, indicam objetos diferentes.

[…]

Outro ilustre mestre deles, dotado de gnose mais sublime e profunda, expõe assim a primeira Tétrada: existe, antes de todas as coisas, um Pró-princípio pró-ininteligível, inexprimível e inominável que chamo Unicidade. Com ele está uma Potência que chamo Unidade. Estas, Unicidade e Unidade, que são uma coisa só, emitiram, sem emitir, um Princípio inteligível, ingênito e invisível, ao qual dou o nome de Mônada. Com esta Mônada está uma Potência da mesma substância, que chamo Um. Estas Potências, isto é, Unicidade e Unidade, Mônada e Um emitiram os restantes Eões.

Ha! he! ah! ah! Valem estas exclamações trágicas diante desta audácia em inventar nomes e aplicá-los despudoradamente a esta mentirosa invenção. Com efeito, quando diz: Existe antes de todas as coisas um Pró-princípio pró-ininteligível que chamo Unicidade e com ele está uma Potência que chamo Unidade, mostra claramente que são ficção todas as palavras que pronunciou e que deu a estas ficções nomes que ninguém antes dele lhes deu. Se não tivesse esta ousadia, segundo ele, ainda hoje a verdade estaria sem nome. Por isso, nada impede que outro qualquer, ao tratar deste assunto, use estes nomes: Existe certo Pró-princípio soberano pró-esvaziado-de-inteligibilidade, pró-esvaziado-de-substância e Potência pró-pró-dotada-de-esfericidade, que chamo Abóbora. Junto com esta Abóbora coexiste uma Potência que chamo Super-vacuidade. A Abóbora e a Super-Vacuidade, sendo um só, emitiram sem emitir um Fruto visível de qualquer lugar, comestível e saboroso, ao qual dou o nome de Pepino. Junto com este Pepino existe uma Potência da mesma substância, que chamo Melão. Estas Potências, isto é, Abóbora e Super-vacuidade, Pepino e Melão emitiram a multidão restante dos Melões delirantes de Valentim. Com efeito, se é necessário ajustar a fala comum à primeira Tétrada e se cada um escolhe os nomes que quer, o que impede usar estes nomes muito mais inteligíveis, usuais e conhecidos de todos?
[Santo Ireneu, Contra as Heresias, Livro I, Parte II, 11,1-11,4]

Ora, se os santos – que nos são propostos pela Igreja como modelos de virtude – souberam atacar virulentamente os inimigos da Igreja, como poderemos sustentar que a ironia seja algo de mau em si? Como pode a ironia ser contra a caridade, se tantas pessoas piedosas e tementes a Deus souberam utilizá-la tão bem? Na verdade, o bom católico não tem o sentimentalismo piegas que parece ser característica dos nossos dias. O verdadeiro católico é um soldado de Cristo, é uma alma corajosa, dotada de fibra e de zelo na defesa da Fé e na exaltação da Igreja de Nosso Senhor. O bom católico sabe – à imitação dos santos – agir com dureza quando estão em jogo coisas importantes. O bom católico, como no lema de São Bento, ora et labora: reza, como na Ladainha de todos os Santos, a fim de que os inimigos da Igreja sejam humilhados (ut inimicos Sanctae Ecclesiae humiliare digneris – Te rogamus, audi nos!) e trabalha, com afinco, para que a Verdade triunfe sobre os erros e sejam desmascarados os inimigos de Deus. Inclusive utilizando-se da ironia, se necessário for, ad Majorem Dei Gloriam. Note-se que ninguém está obrigado a ser irônico; mas aqueles que souberem, quiserem e puderem sê-lo, não precisam ficar com escrúpulos de consciência. A ironia não é condenável em si mesma.

Obviamente, é necessário haver parcimônia; claro que a ironia pode por vezes degenerar em deboche grosseiro, em agressão gratuita, e pode se transformar sim em falta de caridade. Além do mais, o tom irônico não dispensa os argumentos, como é óbvio, sob a gravíssima pena de ser contraproducente. Mas – e isso é o mais importante aqui – nem toda ironia é falta de caridade, e é lícito empregá-la na defesa de Nosso Senhor. Que a Virgem Santíssima nos faça católicos de fibra; e que os santos nos ensinem a fugir do “politicamente correto”, sabendo reconhecer o valor e a importância de dedicar-se com zelo ao Bom Combate que todos nós somos chamados a travar.

Os limites da tolerância

Hoje, a senhora Sandra Nunes – velha conhecida de tantos quanto estão acostumados a passear por este blog – foi colocada sob moderação. Os motivos são mais do que evidentes, e estão no comment acima linkado. Não foi sem relutância que tomei esta decisão; todos sabem – eu próprio já frisei aqui por outras vezes – o caráter combativo do Deus lo Vult!, que não apenas prevê mas também (e principalmente) pressupõe as intervenções dos leitores.

Já há algum tempo há moderação neste blog; desde o tristemente célebre ataque dos ateus estrebuchantes que eu percebi não ser possível manter as coisas completamente abertas. No entanto, sempre é de se lamentar quando um debate (ou um debatedor) ultrapassa a fronteira do razoável e passa a ser contraproducente.

A supracitada senhora – alguns poderão dizer – já há muito tempo (talvez até desde sempre) ultrapassou esta fronteira. Eu não discutiria contra esta afirmação. No entanto, se até o presente momento eu julguei ser possível aplicar uma política de tolerância, após sérias reflexões decidi tomar a decisão – não trivial – de suspender o beneplácito.

Tolera-se, por definição, aquilo que é um mal. Em qualquer âmbito da vida, um mal pode ser tolerado caso se tenha em vista um bem maior a ser obtido. Na lógica dos debates de internet, a exposição das posições errôneas é, evidentemente, tolerada para que as suas refutações possam brilhar, e o argumento vencedor possa, se não convencer o debatedor vencido, ao menos fortalecer a convicção dos espectadores. Nem sempre Deus concede a graça de que o inimigo vencido na arena se levante como irmão do vencedor; no entanto, o esplendor da verdade que irradia do argumento bem construído e bem aplicado é menos raro e, geralmente, compensa o mal que se tolera.

Digo apenas “geralmente”, porque há vezes em que o estertor desesperado daquele que não é capaz de manter racionalmente as suas posições termina por obscurecer aquilo que é realmente relevante. E, se isso pode ser tolerado uma, duas, cinco ou dez vezes, chega um ponto em que a tolerância indefinida já pouco ou nada traz de útil; os bens advindos são menores do que os males que estão gozando da tolerância. Aí, é chegada a hora de intervir… Não é o debate em si que se busca cercear, óbvio, porque este, se verdadeiro, não pode senão servir para a defesa da Verdade, de Deus, de Sua Santa Igreja. O que se corta e lança fora é uma deturpação do debate, um seu abuso, uma espécie de caricatura que se instala no lugar onde as pessoas deveriam debater e as impede de o fazerem. E eu não poderia, em consciência, permitir que este espaço por mim idealizado e construído a duras penas fosse de tal maneira pervertido a ponto de não ser mais possível que, nele, se fizesse aquilo mesmo a que ele se propõe. Tolerância tem limites.

Não foi uma atitude fácil nem incontroversa, mas estou convencido de que foi uma atitude necessária. É lamentável, mas não menos necessário. Que a Virgem Santíssima, Sedes Sapientiae, possa interceder por todos nós, e de maneira especial pela sra. Sandra Nunes, a quem – até além de onde foi possível – esforcei-me por manter aqui. Que Deus tenha misericórdia de nós todos.

Tamar vs. Matar

Há algum tempo, o dr. Cicero Harada escreveu um artigo no qual revelava o nonsense completo que os abortistas pretendem instaurar no Brasil, legalizando o aborto quando a destruição de ovos de tartarugas é crime inafiancável.

Não há nada de “intrinsecamente mau” na proteção às tartarugas, isto é evidente. O que é intrinsecamente absurdo é a legislação brasileira proteger os embriões dos animais e permitir o assassinato de seres humanos. A necessidade de se proteger a vida humana – mormente a mais indefesa – é tão óbvia que só os abortistas não enxergam.

O William Murat relembrou o debate que se seguiu a este artigo, à época. E criou um blog específico para a sua disponibilização. Vale muito a pena conferir. O site é o seguinte:

http://tamarmatar.wordpress.com/o-debate/