Cristo, «o Salvador de todos, sobretudo dos fiéis»

Com relação à polêmica – no meu entender desnecessária, como expliquei – envolvendo a recente declaração do Papa Francisco de que Cristo morreu na Cruz do Calvário por todas as pessoas, incluindo os ateus, gostaria de indicar dois textos que o prof. Angueth colocou em seu blog desde a última vez que o mencionei aqui.

O primeiro é uma resposta ao meu texto anterior. Aqui há pouco a se discordar. Vale uma leitura, quando menos pela formulação elegante que o professor fez da tensão entre vontade salvífica de Deus e capacidade humana de rejeitá-Lo, que diz tudo o que eu gostaria de ter dito de um modo muito mais claro e conciso: «Evangelizar é acreditar no “pro omnibus”, mas apenas no sentido de aumentar o número dos “pro multis”». Lapidar.

Sobre o modo como o professor interpreta a referida homilia papal, alegando que ela causa confusão, sou partidário da idéia de que esta confusão é toda ou quase toda causada não pela homilia em si, mas pela repercussão que se faz dela e (principalmente) pela forma como se lhe repercute. Penso que é injusto exigir do Papa (ou mesmo de qualquer pessoa na face da terra!) que se expresse sempre de modo a não permitir aos seus inimigos a manipulação ideológica de suas palavras. E, portanto, penso que a causa católica mais precisa de quem desfaça as confusões do que de quem lhes engrosse o coro dos alardeadores.

O segundo texto é da autoria do pe. Anderson Alves, que os leitores do Deus lo Vult! certamente já conhecem. Traz excertos interessantes do Denzinger sobre o assunto que merecem ser conhecidos, dos quais traduzo só o primeiro:

(Concílio de Arles, 475. Denzinger 160b): «Confieso también que Cristo Dios y Salvador, por lo que toca a las riquezas de su bondad, ofreció por todos el precio de su muerte y no quiere que nadie se pierda, El, que es salvador de todos, sobre todo de los fieles, rico para con todos los que le invocan [Rom. 10, 12]…»

[(Concílio de Arles, 475. Denzinger 160b): «E confesso também que Cristo, Deus e Salvador, em razão das riquezas de Sua bondade, ofereceu por todos o preço de Sua morte e não quer que ninguém se perca. Ele, que é o Salvador de todos, sobretudo dos fiéis, rico para com todos os que O invocam [Rm 10, 12]…»]

Ora, então Cristo é Salvador «sobretudo dos fiéis»? Por que o «sobretudo»? Então é Ele também o Salvador dos infiéis?

Sim e não. Sim, se com isso entendemos que Ele padeceu e morreu também pelos que se perdem; e não, se interpretarmos que mesmo os infiéis se salvam pelo fato de terem um Salvador. A primeira interpretação é o ensino de sempre da Igreja; a segunda, uma heresia tresloucada. Eis aí um excelente exemplo de como é necessário que a Doutrina Católica seja interpretada organicamente. E isto, note-se, num Concílio Local, não numa homilia de cinco minutos improvisada.

Em resumo, não há elementos para sustentar que o Papa Francisco tenha uma visão heterodoxa da Doutrina Católica. Mesmo as acusações de imprudência e de propiciar a confusão por conta de imprecisões terminológicas carecem de razoabilidade. O mundo está contra o Papa, e isso se manifesta inclusive quando o louva e bajula por conta de coisas que ele não disse, não fez e não é. Coloquemo-nos ao lado dele. Rezemos por ele. Estejamos unidos a ele, para que estejamos unidos a Cristo.

A infalibilidade papal «foi, no princípio, uma heresia reprovada» (!)

Encontramos mais um didático exemplo de por que ninguém deve dar crédito à cobertura que grande parte da mídia laica faz sobre religião: este longo artigo de UOL Notícias, reproduzindo El País. O texto está repleto de sandices, mas lá pelas tantas é possível ler a seguinte barbaridade:

“O inventor [da doutrina da infalibilidade] é o excêntrico franciscano Petrus Olivi. O que ele queria era que os papas se submetessem a um decreto de Nicolau 3º favorável à corrente franciscana, que exigia a pobreza radical. Por isso, em 1324 João 22 condenou essa doutrina como obra do demônio, o pai da mentira. Consequência: o dogma da infalibilidade papal foi, no princípio, uma heresia reprovada!”

A informação vem assim, cuspida, sem fonte e sem nada, e os jornais a reproduzem com alegria sem se preocupar minimamente com o absurdo que está escrito.

Aí alguém que tem um mínimo de senso crítico olha para a alegação estapafúrdia, acha-a (no mínimo!) estranha e decide ir atrás. Em menos de um minuto no Google ele encontra o Denzinger, dá um ctrl + f e procura por “John XXII”. Começa a ler o Magistério deste Papa. Obviamente não encontra nada sequer remotamente parecido com o que estava na matéria do jornal. Mas encontra outra coisa:

Erros de Marsilius de Pádua e João de Jandun

(A Constituição da Igreja)

[Examinados e condenados no edito “Licet iuxta doctrinam”, 23 de Outubro de 1327]

[…]

496 (2) Que o Bem-Aventurado Apóstolo Pedro não tinha mais autoridade do que os outros Apóstolos, nem que foi a cabeça dos demais Apóstolos. Do mesmo modo, que Deus não estabeleceu nenhuma cabeça da [Sua] Igreja, nem constituiu ninguém Seu vigário.

[…]

498 (4) Que todos os sacerdotes, quer seja o Papa ou [um] Arcebispo ou um simples padre, são por instituição de Cristo iguais em autoridade e jurisdição.

[…]

500 Nós declaramos e sentenciamos que os artigos acima mencionados… são contrários às Escrituras Sagradas e inimigos da Fé Católica, hereges, ou heréticos e errôneos, e também que os supracitados Marsilius e João sejam hereges – ou melhor, sejam arqui-hereges manifestos e notórios.

Como é possível que o mesmo Papa tenha chamado a infalibilidade pontifícia de “obra do demônio” e depois tenha condenado com veemência os que queriam diminuir a autoridade do Romano Pontífice é um desses esotéricos arcanos da sabedoria midiática que não está ao alcance das pessoas comuns que lêem jornais. Ao que parece, estas últimas, segundo a concepção de alguns órgãos de imprensa, deveriam simplesmente aceitar qualquer informação – por evidentemente disparatada que seja – divulgada nos honestos e impolutos meios de comunicação em massa.

Infelizmente para eles, nós somos capazes de raciocinar. E a discrepância entre o que lemos nos jornais espanhóis e o que está registrado nos compêndios do Magistério da Igreja é verdadeiramente assombrosa. Para nossa sorte, destas últimas informações nós temos as fontes históricas bem detalhadas. Já sobre condenação da “infalibilidade papal”… bom, nós temos o artigo do Juan G. Bedoya (Juan-quem?) que El País publicou e a UOL traduziu!