O dia de Finados e o cuidado com os mortos

O cuidado com os mortos é uma nota marcante da natureza humana e que, como tudo o que é humano, o Cristianismo soube elevar de maneira extraordinária. Os nossos cemitérios, os túmulos, os enfeites, as orações populares, as exéquias — todas essas coisas fazem parte do dia a dia cristão (não era Santo Agostinho quem dizia algo como “vemos funerais diariamente, enterramos nossos mortos todos os dias e, no entanto, continuamos a nos prometer longos anos de vida”?) mas, no dia de Finados, é como se todas elas atingissem o seu ápice. Neste 2 de novembro, dedicado aos fiéis defuntos, é como se tudo nos interpelasse ao mesmo tempo: a morte, o juízo, o purgatório, o Céu, o Inferno, a saudade dos entes queridos, a esperança da Ressurreição. Se temos a obrigação de pensar constantemente nos Novíssimos, poucas vezes o memento mori ressoa com tanta clareza nas nossas igrejas quanto no dia de Finados.

Não se trata de nenhum mórbido culto à morte. A morte, dentro da cosmovisão cristã, é a última inimiga, é o estipêndio do pecado. A morte restou derrotada na Cruz do Calvário — onde está, ó morte, a tua vitória, onde o teu aguilhão? — e, a partir de então, toda a Liturgia dos Defuntos é uma celebração desta vitória. Não cultuamos a morte, mas a vida, uma vez que o nosso Deus não é Deus de mortos, senão de vivos.

Na formulação lapidar que alguém divulgou nas redes sociais: é o dia em que a Igreja Militante presta auxílio à Igreja Padecente para que ingresse logo na Igreja Triunfante. Nós oferecemos sufrágios aos mortos para que eles expiem as suas penas e, purificados de toda mácula do pecado, possam ingressar no Santo dos Santos, ascender à face de Deus. E, neste mister, estamos diante talvez das preces mais eloquentes que já foram compostas.

Entre todas assoma a sequência da Missa, o Dies Irae. É o momento terrível em que toda criatura é convocada à presença de Deus para o julgamento; diante do Justo Juiz, a alma, conhecedora das suas misérias, vê-se aterrorizada. Sem dispor de méritos em que se apoiar, ela recorre a Cristo: recordare, Iesu pie, quod sum causa tuae viae: ne me perdas illa die. “Recordai, ó bom Jesus, [que] fui causa de vossa cruz: não me percais nesse dia”. Somente assim o homem pode suportar este Dia de Ira.

Tal sentimento religioso não é apenas litúrgico, mas universal. Lembro-me do barroco brasileiro, do nosso Gregório de Matos, e do soneto escrito a Cristo Nosso Senhor Crucificado estando o poeta na última hora de vida, que se encerra assim: “Mui grande é Vosso amor e meu delito, / porém pode ter fim todo o pecar / e não o Vosso amor, que é infinito. / Essa razão me obriga a confiar / que, por mais que pequei nesse conflito, / espero em Vosso amor de me salvar”. Diga-se o mesmo de outros famosos tercetos do mesmo autor: “se uma ovelha perdida, e já cobrada, / glória tal, e prazer tão repentino / Vos deu, como afirmais na Sacra História, / eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada! / Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino, / perder na Vossa ovelha a Vossa glória”. É quase uma paráfrase do tantus labor non sit cassus das missas de Réquiem.

À época do segundo grau, lembro que alguém comentou que assim era fácil, que o eu-lírico jogava toda a responsabilidade para Deus, e que era como se o Altíssimo ficasse obrigado, pela força argumentativa, a perdoar o pecador. Mas, depois, ano após ano, a cada dia eu enxergo menos presunção nos versos do Boca do Inferno. Porque, penso eu, diante dos Novíssimos não vai haver espaço para jogos de linguagem ou restrições mentais. Diante do Crucificado, no último instante de vida, só o que poderemos fazer é suplicar misericórdia. E não é a misericórdia superior ao pecado? Se a súplica for sincera — e, insisto, no juízo não haverá espaço para insinceridades –, ela não haverá de mover o coração de Deus ao perdão?

O Dia de Finados é, assim, apesar das imagens tétricas que apresenta, um grande dia de esperança. É uma festa que explora esta terrível tensão: por um lado, diante da Majestade de Deus nenhum de nós pode pretender se apresentar irrepreensível; por outro lado, Cristo veio ao mundo justamente padecer e sofrer pela salvação de nossas almas, e como esses divinos sofrimentos poderiam ser vãos?

E saímos da igreja, assim, com este misto de terror e de alívio. Assustados com a dimensão dos nossos pecados e, simultaneamente, confortados com a misericórdia de Deus. Este é o resumo do Dies Irae e é a única maneira de se viver bem o Cristianismo — sem cair nem na presunção, nem no desespero. Os nossos entes queridos falecidos, nós os entregamos à misericórdia de Deus; e, neste grande mistério da comunhão dos santos, é a santificação de nossa própria vida, dos dias que ainda temos a viver nesta terra, que pode aproveitar àqueles por quem oferecemos sufrágio neste sábado. Sem nos esquecer, é claro, de rezar também pelos que não conhecemos, pelas almas esquecidas do Purgatório! Também a nossa hora haverá de chegar; e, quando houvermos partido dessa mundo, apraza a Deus que também nós tenhamos fiéis desconhecidos, a rezar por nós, diante dos nossos túmulos, em Finados futuros que somente da Eternidade haveremos de ver. Hoje cuidamos dos mortos; um dia, precisaremos ser cuidados.

Que as almas dos fiéis defuntos, pela misericórdia de Deus, descansem em paz. Amen.

Um dia seremos nós

Ontem foi o dia de Finados, a «comemoração dos fiéis defuntos» que a Igreja celebra anualmente. É um dia que fala muito mesmo ao homem contemporâneo, alheio que ele costuma ser a questões religiosas: afinal a morte, cedo ou tarde, nos atinge a todos indistintamente. Mesmo um católico não-praticante pode ter alguma dificuldade para entender, por exemplo, o que é a festividade de Corpus Christi; já o valor da recordação dos mortos, por sua vez, isso até um militante ateísta consegue perceber.

Nós não temos uma relação lá muito saudável com a morte: raramente pensamos nela, somos displicentes na preparação para a sua chegada e, no geral, vivemos os nossos dias como se ela nada tivesse a ver conosco. Aquelas palavras de Santo Agostinho têm uma aplicação que perpassa os séculos e dizem respeito a todos os homens desde que o mundo é mundo: enterramos os nossos parentes e amigos, vemos funerais todos os dias e, não obstante, continuamos a nos prometer longos anos de vida. Faz bem a Igreja em dedicar um dia aos finados; cuidando dos mortos, pensando neles, de certo modo é de nossa própria morte que cuidamos.

purgatory

A Liturgia dos defuntos sempre me impressionou. O negro dos paramentos, o tom grave da celebração, a essa fúnebre na nave central, o Dies Irae… tudo converge o pensamento para o Juízo, parece que as próprias paredes do templo exalam compunção. Alguém talvez critique o caráter mórbido da solenidade — “parece até que vamos morrer”. Bom, não parece, a verdade é que nós vamos morrer mesmo e quanto antes aceitarmos isso melhor. A vida é um piscar de olhos — é uma noite mal dormida em má pousada, como diz Sta. Teresa. Deixar de viver por conta da morte, aí sim é doentio, aí sim é morbidez; mas tal não tem nada a ver com ter consciência da própria morte e se comportar de acordo com isso.

Gosto da Liturgia dos defuntos; de uma certa maneira, enquanto nós rezamos por eles é como se estivéssemos rezando também por nós. Primeiro porque toda a Liturgia faz pensar na morte, como eu disse. E pensar nos novíssimos — não canso de o dizer aqui — é um exercício salutar e necessário à vida cristã: levaríamos uma vida mais perfeita se pensássemos na morte com mais frequência.

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Segundo porque naquela liturgia nós por diversas vezes nos pegamos rezando em primeira pessoa: por exemplo, ao longo da sequência é como se estivéssemos nós próprios perante o Juízo Final. Sou eu que, miserável, não sei o que dizer (quid sum miser tunc dicturus?); é o meu rosto que enrubesce de vergonha pelos meus pecados (culpa rubet vultus meus); são as minhas orações que não são dignas de chegar a Deus (preces meæ non sunt dignæ); é o meu fim que confio aos cuidados do Juiz (gere curam mei finis). E é bom recitar essas preces em nosso próprio nome enquanto tal nos é permitido: talvez a nossa voz ecoe até os umbrais da Vida Eterna e, um dia, diante do Justo Juiz, cheguem até ele as súplicas que Lhe fizemos enquanto ainda podíamos suplicar.

Terceiro porque livrando almas do Purgatório nós conquistamos amigos no Céu. Pode-se lucrar uma indulgência plenária no Dia de Finados; diferente das outras, no entanto, essa indulgência, que se pode ganhar visitando uma igreja no dia 2 de novembro (ou visitando um cemitério entre o dia 1º e o dia 8 de novembro), é aplicável aos defuntos e não ao fiel que pratica a obra indulgenciada. Não é só um exercício particularmente desinteressado de caridade — conquistar uma coisa que vai servir totalmente para outrem e não para si; é a maior graça que um fiel falecido pode receber. Se um fiel vivo consegue em um determinado momento a remissão total das penas temporais devidas pelos pecados que ele já cometeu, nada impede que ele volte a delinquir e, até o fim da vida, acumule outras tantas penas sobre as que foram apagadas. Uma alma no Purgatório, no entanto, não peca mais, e recebendo uma indulgência plenária ela entra direto no Céu. Quer dizer, são as indulgências mais eficazes do mundo: aqui o tesouro de méritos da Igreja encontra a sua máxima realização. De um modo maravilhoso aqui se cumpre a prece do Dies Irae: «tantus labor non sit cassus». Estas indulgências — entre todas — não ficam em vão. Maravilhas da misericórdia de Deus.

É bela a Liturgia dos defuntos, com os seus cantos graves e seus paramentos negros. Não porque a morte seja uma coisa bela, mas por conta da esperança da Vida Eterna que perpassa toda a Fé Cristã e, no dia de ontem, resplandece com um fulgor todo especial: no 2 de novembro aplacam-se um pouco as chamas do Purgatório e, graças à atividade da Igreja Militante, muitas almas benditas deixam a Igreja Padecente e ingressam jubilosas nas fileiras da Igreja Triunfante. Nessa Missa nós não temos direito sequer à bênção final, dedicada que é aos mortos a celebração inteira; mas na absolvição do catafalco com a qual se encerra a cerimônia a nossa esperança é reavivada e o nosso papel neste mundo adquire um renovado sentido. Do féretro simbólico aspergido pelo sacerdote sobem almas para o Céu. Elas vão lá nos preceder, preparar-nos um lugar. Um dia seremos nós. E apraza a Deus que haja então ainda dias de Finados para nos valer.

Dies Irae

Não é propriamente uma composição litúrgica, mas é uma peça da qual gosto bastante com o texto – este, sim, litúrgico – da sequência da Missa de hoje, Dia de Finados. E esta versão de Mozart é provavelmente a mais conhecida do Dies Irae.

A execução litúrgica, em Gregoriano – belíssima! -, eu encontrei no Subsídio Litúrgico. Segue abaixo:

E, no dia de hoje, lembremo-nos de que havemos também nós de morrer. Lembremo-nos de que hoje celebramos os fiéis defuntos para que eles nos digam de que também a nossa hora há de chegar e, por isso, importa desde já – desde ontem! – viver com esta realidade diante dos olhos. A exortação é, se não me engano, de Santo Agostinho: enterramos com freqüência os nossos amigos e parentes, vemos funerais todos os dias e, não obstante, continuamos a nos prometer longos anos de vida. Insensata promessa que ninguém pode fazer para si!

Vivamos com a consciência de que estamos por aqui só de passagem. E que esta passagem pode ser bem curta e, aliás, geralmente é mais curta do que esperamos, não importa por quantos anos a Providência nos permita caminhar pelo mundo dos vivos. Vivamos à perspectiva de que iremos morrer, e em breve! Que o Todo-Poderoso possa Se compadecer das almas dos fiéis que padecem no Purgatório (hoje, a propósito, é dia de lucrar indulgência plenária para eles, em visitas a cemitérios ou igrejas, nas condições habituais: confissão, comunhão e oração pelas intenções do Santo Padre), e que eles ascendam o quanto antes à glória celeste para, de lá, interceder por nós. Que a Virgem Santíssima, Janua Coeli, receba-os o quanto antes no Reino do Seu Divino Filho.

Requiem aeternam dona eis, Domine,
et lux perpetua luceat eis.

Requiescant in Pacem.
Amen.

Dies Irae

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Hoje é dia de finados; rezemos pelas almas dos fiéis defuntos que padecem no Purgatório. A fim de que Deus Se compadeça delas e as conduza o quanto antes à Visão Beatífica pela qual anseiam.

Em português, há uma versão do Dies Irae na wikipedia. É uma seqüência belíssima, que bem vale ser meditada.

Et anime omnium fidelium defunctorum per misericordiam dei in pace requiescant. Amen.