Santos em meio aos escombros

As notícias que nos chegam a respeito do recente acordo assinado entre a Santa Sé e a República Popular da China são assustadoras e preocupantes. O assunto, bastante nebuloso, talvez — infelizmente — permaneça assim ainda por bastante tempo, mas de qualquer modo existem algumas coisas que podem ser desde já pontuadas.

A respeito do acordo em si, são poucas as informações de que dispomos. Sabemos que ele foi assinado no último sábado; que os seus termos detalhados permanecem secretos; que é provisório e será periodicamente reavaliado; que inclui a revogação da excomunhão dos bispos “oficiais”, sagrados sem mandato pontifício; e que o seu principal objetivo é chegar a um delicado consenso, entre a Santa Sé e o Partido Comunista Chinês, acerca da nomeação de bispos para a Igreja Católica na China.

Ora, a Igreja de Roma, desde há muito, reserva para si a prerrogativa de nomear os seus bispos no mundo inteiro. O poder do Papa, absoluto, incontrastável, não pode rivalizar com o poder de César naquilo que diz respeito ao governo da Igreja. Não se pode admitir que questões seculares, locais, se sobreponham ao direito divino do Soberano Pontífice de pastorear a grei de Deus da maneira que melhor lhe aprouver — e isso é um poder que se exerce não apenas de modo geral e abstrato, mas também nas contingências da vida, na livre nomeação de um bispo específico, determinado, para uma diocese particular e concreta. Acontece que o Governo Chinês, Estado Totalitário que é, também se arvora o direito de nomear por si mesmo os seus próprios líderes religiosos. Neste caso, como ficam as coisas?

Até então ficavam como se houvesse “duas igrejas”, duas hierarquias eclesiásticas paralelas, uma oficial, ligada ao Governo Chinês, outra, clandestina, sujeita ao Papa. A Igreja Clandestina não é reconhecida pelo Partido Comunista Chinês como a Igreja Oficial não é reconhecida pela Igreja de Roma. O recente acordo procura oferecer remédio a esta lamentável situação.

Parece que o remédio encontrado, no entanto, foi muito mais amargo, humilhoso e aviltante do que mereceria o heroísmo dos católicos chineses que há décadas vivem na clandestinidade. A Santa Sé, ao que parece, cedeu em tudo exigindo pouco ou nada em troca: retirou as excomunhões que pesavam sobre os bispos ordenados à revelia do Papado e chegou a um acordo para a nomeação dos próximos bispos — que, ao que tudo indica, significa uma simples chancela papal aos nomes que forem indicados pelo Governo Chinês.

Veja-se, a questão canônica aqui está plenamente resolvida. Os bispos, para serem ordenados licitamente (porque a respeito da validade das ordenações episcopais da Igreja Oficial da China, em que pesem algumas dúvidas pontuais, parece nunca ter havido controvérsia generalizada), precisam de um mandato pontifício — é dizer, precisam de que o Papa autorize aquela sagração. Se o Papa simplesmente chancela aquele que foi nomeado pelo Partido Comunista Chinês, então o mandato está dado, a liceidade da cerimônia e a consequente licitude do Sacramento são incontestes.

Só que isso resolve apenas materialmente o problema, porque o mandato pontifício é expressão da autoridade petrina sobre todo o orbe terrestre; ora, se é o Governo Chinês quem na prática escolhe os candidatos ao episcopado, então isso significa que, na China, a autoridade da Igreja não é verdadeiramente respeitada. Trata-se meramente de um verniz de consenso, que esconde uma dolorosa submissão da Igreja ao comunismo chinês. Na prática, difícil negar que a Igreja saia humilhada da negociação.

O que dizer disso? É sem dúvidas possível contemporizar. Diz-se, e com bastante acerto, que a política é a arte do possível; quanto mais não se deverá dizer da diplomacia? Se na política interna é necessário fazer concessões mútuas, no trato com estados soberanos — algumas vezes totalitários — essas dificuldades chegam ao paroxismo. A política vaticana é proverbial; mas não se pode dizer que ela tenha sido sempre inquestionável. Para ficarmos só em tempos recentes, houve uma Reichskonkordat, houve uma Ostpolitik vaticana. E o que dizer da diplomacia de Pio XI durante a Cristiada?

Não estou dizendo que nada disso tenha sido bom nem que tenha sido mau, que tenha sido um acerto ou que tenha sido um erro. Eu não sei. A razão prática, quando desce aos meandros da experiência histórica concreta, não costuma refulgir com a mesma clareza dos exemplos teóricos dos manuais de Teologia Moral. Acho perfeitamente legítimo alguém defender que Pio XI deveria ter sido mais intransigente com a Alemanha do que com o México, ou vice-versa; o que acho difícil é afirmar que tal ou qual alternativa fosse “a opção correta”, ou — pior ainda! — que estes personagens históricos, premidos pelo fluxo dos acontecimentos, tivessem naquele momento condições de fazer “a escolha correta”, e somente não a tenham feito por algum vício indesculpável do seu caráter. E se aceitar os arreglos fosse a única alternativa viável ao Papa Ratti? E se o presente acordo com a China Comunista for o caminho possível para a superação do impasse católico no país? Quem há de o dizer?

Nenhuma diplomacia é incriticável, mas também — e pela mesma razão — nenhuma é absolutamente indefensável. É sempre legítimo dissentir das relações internacionais da Santa Sé, é possível até ressentir-se com a forma como são conduzidos esses negócios eclesiásticos que chegam quase a ser seculares. É possível protestar, decepcionar-se, chorar e rezar.

E é preciso também, e principalmente, resignar-se. E aqui se registre, por uma questão de justiça, o desabafo, pungente, heróico, do Card. Zen, arcebispo emérito de Hong Kong, que deu uma entrevista quando o acordo estava às vésperas de ser assinado. Sua Eminência, no ápice do desespero, dilacerado com o acordo, alardeia: «estão entregando o rebanho, abandonando-o na boca dos lobos. É uma traição incrível!». E, não obstante, ato contínuo, em um rompante de (santa!) resignação, acrescenta: «não sairei a lutar contra o Santo Padre. Não cruzarei esta linha.»

«Não cruzarei esta linha»! Ó vós que passais e ledes, aprendei o valor do sofrimento, vede a beleza da submissão! Notai, aqui, a diferença, a gritante, a gigantesca diferença, entre o ânimo resignado e o espírito revoltado, entre a têmpera que forja santos e o destempero que perde almas. Mesmo diante daquilo que ele considera uma traição vil e covarde, o ancião de Hong Kong se recusa a combater o Cristo-na-Terra. Isso, vindo de um baluarte da Igreja chinesa clandestina, mais do que qualquer outra coisa nos deveria servir de exemplo e de inspiração. É assim e somente assim que se combate o bom combate, é assim que se arrancam frutos ao coração de Deus! Que os defensores da Fé, nesta hora tão escura, possam ser cada vez mais como o Card. Zen, é o que não devemos cessar jamais de rogar ao Altíssimo. Que Ele tenha compaixão de nossas dores e venha em auxílio às nossas fraquezas. Que Ele, mesmo contra todas as humanas expectativas, faça florescer a terra arrasada, levante santos em meio aos escombros.

Histórica reconciliação entre Cuba e Estados Unidos: que seja bem-vinda!

Um leitor do blog pede-me que teça alguns comentários sobre a reabertura das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos, cujo anúncio ontem surpreendeu o mundo. Parece que não se fala de outra coisa. Não faltou quem comparasse o acontecimento com a queda do muro de Berlim; sou um pouco mais cético com relação às proporções que o dia de ontem é capaz de tomar, mas mesmo assim não me parece possível negar que este 17 de dezembro tenha sido histórico.

Meu ceticismo deriva de um sentimento de pouca consideração para com o cenário mundial contemporâneo: acho-o sofrível, mesquinho e decadente, com atores medíocres completamente incapazes dos arroubos de grandeza que marcaram as grandes personalidades mesmo do passado relativamente recente. Obama não está à altura de Bush pai, nem Raúl Castro tem um mínimo da envergadura de Mikhail Gorbachev; os Estados Unidos hoje em dia são indignos do país que Reagan entregou ao fim do segundo milênio, Cuba não chega aos pés do que foi a Alemanha Oriental e a Revolução Cubana precisa comer muito feijão com arroz para chegar perto da Guerra Fria.

Um pouco de senso de proporções, parece-me, é necessário: o que houve ontem foi uma mera constatação formal de que o regime cubano já havia caído de podre há muito tempo. Não fazia sentido continuar impondo a Cuba sanções que não se costuma aplicar a outros países comunistas do globo – maiores, mais relevantes e mais perigosos do que a pequena ilha dos Castro. A sucursal latino-americana do que foi a U.R.S.S. jamais conseguiu levantar-se muito acima das barras da saia da Mãe Rússia. Havia um quê de desproporcionalidade e incoerência no tratamento que lhe era dispensado, hoje feliz e finalmente revisto. Nada de excepcional.

No entanto, como no meio do descampado qualquer arbusto adquire imponência, assinale-se o fato: Obama e Castro deram-se as mãos e selaram o fim das hostilidades mútuas, e isso tem a sua importância. Penso, aliás, que é até digno de ser celebrado.

Primeiramente, porque é importante que Cuba tenha contato com o mundo: trata-se de um reconhecimento simbólico de que o regime da ilha-prisão fracassou e, agora, é necessário abrir as fronteiras, é necessário garantir certo livre trânsito de bens e pessoas entre o país e o resto do mundo. Nas últimas décadas, foram incontáveis os cubanos que perderam a vida tentando atravessar, em balsas improvisadas, os mares revoltos do Caribe a fim de aportar nas costas liberais dos Estados Unidos da América: reatando-se os laços diplomáticos entre os dois países, é de se esperar que esta aventura, doravante, passa a se realizar de modo mais tranquilo e civilizado.

Além disso, a abertura dos mercados vai ter o inegável efeito positivo de enriquecer a sociedade cubana com aquilo que o engenho humano foi capaz de produzir de melhor: e um pouco de opulência capitalista, nas circunstâncias, não há de reduzir o sofrido povo cubano a um estado pior do que aquele a que o degradou meio século de socialismo. Um pouco mais de livre fluxo de informações, por fim, tanto pode ajudar o resto do mundo a conhecer os horrores do regime dos Castro quanto alargar os horizontes daqueles que vivem isolados em Cuba. E talvez estes percebam que não estão sozinhos. E quiçá estes notem que há um mundo inteiro para além das viseiras que o regime, até ontem, impunha-lhes para que não olhassem para os lados.

Em segundo lugar, não se pode esquecer que se trata de um processo. O embargo econômico não foi levantado, uma vez que isso precisa ser ainda apreciado pelo Congresso dos Estados Unidos; e nem foram feitas concessões americanas unilaterais à ditadura caribenha, posto que a boa vontade dos EUA não prescinde da abertura democrática – ao menos em alguma medida – por parte de Cuba: o acordo é que esta venha pari passu àquela. Não há que se falar em fato consumado, e sim no primeiro passo de um caminho cujo destino não é daqui possível senão vislumbrar.

É ainda digna de nota a atuação (só ontem tornada pública) de um personagem oculto nesta trama: o Papa Francisco. Figura «crucial na mediação entre EUA e Cuba», o Sumo Pontífice tanto escreveu repetidas vezes aos dois países cobrando soluções para o impasse que já se arrastava por décadas quanto inclusive acolheu, no Vaticano, as representações diplomáticas de ambos, criando as situações favoráveis para que as negociações pudessem avançar. Felizes os que promovem a paz, diz a Bem-Aventurança; segue a Igreja de Cristo imiscuindo-se na política de Estados Soberanos e, sem se preocupar com as censuras que porventura Lhe atirem à face, continua fazendo o que é possível também no campo político para soprar no mundo o doce frescor do Evangelho de Cristo.

A este respeito, vale muito a pena a leitura deste texto do “Contos do Atrio”: «[o] papado tem a experiência da diplomacia e da solução de conflitos em praticamente toda a sua história». E é uma sensação assaz aprazível ver a Igreja continuar agindo como sempre agiu, mesmo quando o mundo se levanta contra Ela e Lhe exige que se recolha à insignificância da esfera subjetiva dos seus fiéis. Roma se ri, e não se curva às pretensões descabidas dos poderosos dos dias atuais! Vão longe os Dictatus Papae de Gregório VII e é hoje meio anacrônico dizer que ao Romano Pontífice «é lícito depor o imperador»: no entanto, o Vigário de Cristo, de facto, continua derrubando e reconciliando impérios ao longo da História.

Por fim, quanto aos desdobramentos futuros dessa reaproximação entre os dois países, parece-me cedo para falar o que quer que seja. Naquilo que me parece o pior cenário, é possível, sim, que o influxo de dólares americanos garanta uma sobrevida à ditadura castrista, e é possível que o alinhamento ideológico entre os democratas estadunidenses e os descendentes de Che Guevara imponha renovadas dificuldades práticas aos que lutamos contra o (já hegemônico) esquerdismo latino-americano: ora, que venham! Não nos encontrarão desprevenidos, uma vez que não temos esperanças ingênuas sobre o futuro próximo, e sabemos que não nos é lícito depôr as armas por grandes e poderosos que sejam os nossos inimigos. O cenário geopolítico, neste sentido, pode tornar-se-nos mais hostil, é verdade: mas, por um pouco mais de dignidade aos nossos irmãos cubanos, vale a pena a batalha talvez mais encarniçada e difícil. Para que o povo de Cuba possa respirar um pouco melhor, não nos pejamos de nos bater com um inimigo quiçá mais forte.