Por quê, afinal de contas, um Deus amoroso criou o Inferno?

Recentemente, iniciou-se uma interessante discussão no Deus lo Vult! a respeito da existência real (e eterna) do Inferno, bem como da sua compatibilidade com a noção de um Deus justo e amoroso. Como o assunto vez por outra surge aqui e em outros lugares, vale talvez a pena buscar sistematizá-lo um pouco.

Basicamente, as objeções dos incréus são duas:

a) é totalmente desproporcional impôr uma punição infinita por uma ofensa finita; e

b) um Deus amoroso não poderia torturar eternamente um Seu filho no inferno.

É até possível respondê-las por via direta. Assim, parece-me que a apologética tradicional tem se esmerado por mostrar a) que uma ofensa à majestade infinita de Deus não é “finita” e sim infinita, uma vez que a gravidade da ofensa mede-se, também, pela dignidade do ofendido (e assim, v.g., um mesmo murro que eu desferisse contra três homens diferentes seria gradativamente mais grave conforme o esmurrado fosse um jovem colega de trabalho, um ancião ou o meu pai) – e a justiça exige alguma proporção entre crime e castigo. Do mesmo modo, b) Deus é amor mas é também, em igual – e infinita – medida, justiça, e é precisamente o amor d’Ele que permite aos Seus filhos optarem por O renegar; de modo que, rigorosamente falando, é possível dizer, em alternativa a “Deus condena as almas ao tormento eterno”, que “as almas rejeitam a Deus e se condenam, portanto, à separação definitiva d’Ele”.

Mas fica parecendo que essas coisas não se compreendem perfeitamente quando não se tem uma noção clara dos seus fundamentos: dito de outra maneira, as perguntas acima estão mal-formuladas. O que importa, na verdade, não é que Deus tenha criado o Inferno, e sim que Ele tenha feito homens livres e, portanto, capazes quer de mérito, quer de culpa. Quando se entende isso com todas as suas necessárias consequências, todo o resto do quebra-cabeça se encaixa sem maiores dificuldades intelectuais.

O que é ser «livre»? É poder ser responsabilizado por suas escolhas e, por conseguinte, ser por elas premiado ou castigado. É evidente que a liberdade humana não é “absoluta” porque o seu conhecimento é limitado e a sua vontade é fraca; isso não está em discussão. O fato é que existe alguma liberdade no homem e, portanto, em alguma medida ele é capaz de mérito ou demérito, de prêmio ou de castigo.

 «Mérito» e «culpa» estão aqui empregados no sentido mais direto de um prêmio devido por uma ação moralmente virtuosa e uma punição imposta em consequência de uma atitude moralmente condenável. As duas coisas estão em estreita relação de mútua dependência: uma vez que ambas dependem daquela liberdade fundamental de optar pelo bem ou pelo mal, não é possível haver mérito se não existir possibilidade de culpa (uma vez que a virtude de uma escolha reside precisamente na rejeição à possibilidade de se fazer a escolha oposta – caso contrário, não haveria liberdade verdadeira) e não é possível existir culpa se não houver possibilidade de mérito (vice-versa). Ambas emanam, direta e imediatamente, da liberdade humana: só há mérito/culpa porque há liberdade e, se há liberdade, há também e necessariamente mérito e culpa.

A raiz, portanto, do prêmio e da punição está na liberdade humana, é-lhe inerente e, aliás, faz parte da sua própria definição: ser livre é ser responsável por seus atos, e ser responsável por seus atos é ser capaz de receber, por eles, retribuições positivas ou negativas. Se qualquer um desses três termos – liberdade, mérito e culpa – deixasse de existir, os outros dois cessariam de haver no mesmo exato instante. Ou os três existem, ou não existe nenhum. Por definição. Não dá para ser diferente.

Ora, qual a característica central da Criação de Deus no que concerne ao ser humano? É que Ele nos fez à Sua imagem e semelhança, i.e., fez-nos dotados de inteligência e de vontade, de livre-arbítrio, fez-nos capazes de mérito e culpa. E a liberdade é um bem: por isso que Deus a criou. E é um dom precioso, preciosíssimo: por isso é que foi por amor a nós que Ele no-lo concedeu. E o livre-arbítrio nos foi concedido para que optássemos por Deus. Se há homens que optam livremente por O rejeitar, aí já é uma coisa cuja possibilidade – pela própria natureza da liberdade humana – não pode ser afastada.

E quanto ao Inferno ser eterno? Ora, só há duas opções: ou a capacidade humana de ganhar méritos e acumular culpas – de ser premiado e castigado – cessa em algum momento, ou ela não cessa jamais, et tertium non datur. Se ela cessa em algum momento (v.g. com a morte – é a posição católica), então as pessoas que estão no Paraíso nele não podem mais pecar para o perder e, pela mesma razão, as que estão no Inferno não podem se arrepender para de lá sair. E, se ela não cessa em momento algum, então não deixará jamais de haver culpas a serem expiadas, posto que sempre haverá novos pecados em almas eternamente capazes de pecar. Em qualquer dos dois casos, portanto, o Inferno precisa ser eterno. A diferença é apenas se algumas pessoas ficarão lá de uma vez por todas ou se todas as pessoas ficarão eternamente entrando e saindo de lá. Olhadas as coisas por esse ângulo, não parece que a segunda hipótese seja melhor do que a primeira, não é verdade?

Vez por outra me perguntam por que raios Deus colocou a árvore do conhecimento do bem e do mal no meio do jardim do Éden, onde Adão poderia facilmente alcançar-lhe os frutos. Ora, os pais terrestres mantêm as facas de cozinha e os produtos químicos fora do alcance das suas crianças: por que motivo Deus, Pai Perfeitíssimo, fez exatamente o contrário disso com Adão e Eva? A resposta é que Adão e Eva não eram crianças sem uso da razão, e sim seres humanos inteligentíssimos e extremamente aptos, adultos capazes de auto-determinação. Eles não comeram do fruto proibido como uma criança que se machuca sem querer com uma tomada, mas exatamente ao contrário: o Pecado Original foi cometido livre e deliberadamente, com plena consciência e manifesta vontade. É exatamente por isso que é pecado.

E por quê, ainda, Deus permitiu que os nossos Primeiros Pais tivessem a possibilidade de cometer uma coisa tão horrenda como o Pecado? Por tudo o que já se disse até aqui, a resposta é imediata: porque Deus os amava e, amando-os, queria premiá-los com a participação na Sua Eterna Bem-Aventurança a título de mérito, e para que os homens merecessem (na medida contingente de sua natureza de criatura) a Vida Eterna era necessário que eles pudessem, ao mesmo tempo, rejeitar a oferta de Deus. Liberdade, mérito e culpa existem sempre e necessariamente os três juntos, lembremo-nos. Eis aqui, pois, nascidos ao mesmo tempo, de um mesmo gesto de liberalidade divina, o livre-arbítrio, o Céu e o Inferno.

Num dos primeiros cantos (o terceiro, se a memória não me falha) da Comédia de Dante, o poeta coloca no frontispício da porta que conduz às profundezas do Hades uma inscrição que diz ter sido o Amor Supremo quem criou o Inferno. E foi exatamente isso o que aconteceu: foi por Amor que Deus criou os homens livres, e é da liberdade humana que decorre a possibilidade de amar a Deus ou de O rejeitar, de ir ao Céu ou ao Inferno. O verso do poeta é perfeito, e não significa que um sadismo divino criou, para próprio capricho, arbitrariamente, um lugar para torturar os homens: não, nada disso. Significa, isso sim!, que o Amor queria premiar os homens com a Vida Eterna – e, para que tal fosse possível, por uma necessidade imperiosa daquilo mesmo que essas palavras significam, era necessária esta porta pela qual se pode chegar à morada das dores. Uma vez que se entenda isso, aquelas objeções iniciais deixam de fazer sentido; e, em contrapartida, sem que se compreenda a história completa, nenhuma explicação parcial da justiça do Inferno é capaz de convencer.

[OFF] Eu, com câncer (V): contratempos e imprevistos

Faz mais de uma semana que não escrevo nada. Há uma razão: faz mais de uma semana que estou internado no hospital, contra todos os prognósticos que eu tinha para esses dias. Dante já dissera com muita propriedade «ché saetta previsa vien più lenta» (Paradiso XVII) e, em contrapartida, as flechadas que nos chegam de supetão, pelas costas, são as piores. Mas a vida é feita de batalhas e lutar significa sobreviver às saraivadas que nos chegam de todos os lados, é claro. Se fosse de outra maneira, não poderíamos pretender estar lutando a sério.

No dia 26 de janeiro último, domingo, de alta recebida na noite da véspera, eu escrevi um relato aqui no Deus lo Vult! sobre a semana que passara. No dia 27 de janeiro, segunda-feira, pela manhã, eu voltava pra emergência do hospital. Meu braço direito doía bastante e estava inchado. O cirurgião vascular da emergência cardiológica nem precisou do exame para diagnosticar: “é uma trombose venosa profunda”. O ultrassom confirmou em seguida. Precisei me internar mais uma vez.

Inacreditável: uma trombose! Não tinha – ao menos não diretamente – a ver com o câncer ou com a quimioterapia, não tinha a ver com os meus problemas respiratórios que me haviam deixado quase uma semana no hospital, não tinha a ver com nada. Simplesmente acontece: meu corpo não reagiu bem ao port-a-cath que eu implantara para a QT. Um corpo estranho no organismo, mais o próprio câncer, mais tratamento quimioterápico… eram três fatores de risco, me disse o médico. Acontece.

Anticoagulantes de emergência – TVP causa embolia pulmonar, eu sei – e internamento para estragar a capacidade do meu sangue de coagular a contento. Há uma índice que mede essas coisas: INR, International Normalized Ratio, cujo valor padrão é – como o próprio nome diz – 1. O meu precisa ficar entre 2 e 3 para que seja seguro me deixar somente à base dos anticoagulantes orais: antes disso, uma injeçãozinha na barriga a cada 12 horas. Antes disso, cuidados hospitalares. Antes disso, fico ainda um pouco por aqui.

Aproveitei a estadia no hospital para verificar os pulmões. Cheios ambos, o direito mais do que o esquerdo. O raio-x, aliás, estava muito parecido com o que tirei no dia em que fiz a segunda sessão de quimioterapia. Estremeço. Não sei dizer se eles voltaram a encher ou se simplesmente não diminuíram: não bati uma radiografia torácica na alta da semana passada e, portanto, não sei dizer exatamente em quais condições meus pulmões saíram do hospital. De uma forma ou de outra, parece-me indiscutível que este derrame pleural não está melhorando, ou só o está fazendo a conta-gotas.

Volto à máscara do Jason: meus pneumologistas estão aproveitando a minha estadia no hospital para tentar fazer o derrame ceder à força de fisioterapia respiratória. A julgar pelas três ou quatro chapas de raio-x que bati em seqüência da semana passada pra cá, não está resolvendo: mas pelo menos o derrame também não está aumentando, e isso talvez já seja motivo mais do que suficiente para que eu dê graças a Deus. Ainda respiro; não tão bem como em situações normais, mas muito melhor do que na semana em que subi às pressas para a Semi-Intensiva. Ainda respiro, e daqui a pouco – menos de uma semana – eu vou receber quimioterapia de novo…

[Um parêntese. Aqui as coisas começam a ficar complicadas. Era esperado que esse derrame começasse a ceder já no primeiro ciclo de QT, no máximo no segundo; estamos a seis dias do terceiro, e ele continua tão forte que a minha pneumologista não hesitou em descrevê-lo como um «derrame pleural bilateral recidivante e não responsivo a QT» num laudo médico em que pede mais fisioterapia.

Meu cirurgião torácico acha que meu caso é cirúrgico: uma decorticação (ou coisa assim) resolveria em definitivo este problema. Acontece que a tal decorticação consiste – grosso modo – em arrancar [um pedaço d]a pleura e, aderindo o pulmão diretamente à parede torácica, destruir a cavidade pleural, impedindo assim (de uma vez por todas, óbvio) o acúmulo de líquido nela. Soa-me mais ou menos como arrancar um dedo fora e depois dizer, com ares de eureka, que com isso ele definitivamente vai deixar de doer.

Não fiquei muito animado com a cirurgia. Sou cioso da minha pleura: por alguma razão Deus há-de a ter colocado lá. Gostaria sinceramente de preservá-la, e por isso estou apostando na fisioterapia respiratória e no combate à doença de base, ainda que isso seja lento e ainda que me obrigue a respirar mal a maior parte do tempo.]

Ontem fiz uma tomografia de controle, para comparar com a que realizei antes de iniciar o tratamento. Não tenho acesso às imagens (e nem sei se saberia interpretá-las), mas pela internet consigo olhar os laudos; a julgar pelas descrições, as coisas parecem ter melhorado. Preciso esperar ainda – é claro – o parecer médico, mas esses resultados preliminares são já animadores. Deo Gratias, e obrigado a todos os que estiveram e ainda estão rezando por mim.

Já estou há mais de uma semana aqui no hospital. O meu braço trombosado melhorou substancialmente: dói muito menos, e já está quase tão fino quanto o outro. A contagem de glóbulos brancos (esqueci de dizer: cheguei aqui com eles quase zerados, tive que ser colocado em isolamento reverso nos primeiros dias) está de novo em níveis normais. O derrame pleural está sob controle. Devo ter alta nos próximos dias.

Quase escrevo “espero não ter que voltar de novo”… Mas aprendi que essa vida de paciente é uma caixinha de surpresas, nem sempre agradáveis. É muito difícil fazer planos mesmo a curto prazo! Só uma coisa não pode faltar: que Deus me conceda sempre a fortaleza necessária para viver esses dias o melhor possível. Como mais de uma pessoa já me disse, é tempo da oração do Horto das Oliveiras. Preciso de humildade para repetir o si possibile est, transeat a me calix iste; e preciso da coragem para acrescentar, sempre, o verumtamen non sicut ego volo, sed sicut tu.