Justificativas descabidas para a comunhão dos divorciados

O artigo de D. Víctor Manuel Fernández sobre o Capítulo VIII da Amoris Laetitia publicado na última edição da revista Medellín — a despeito do que alguém poderia pensar por conta da nome da revista — está, em linhas gerais, bastante sensato: não autoriza de nenhuma maneira a sanha sacrílega de se admitir os divorciados recasados à comunhão eucarística que vem tomando conta de certos setores eclesiásticos. Haveria no entanto alguns apontamentos necessários, que passo a fazer abaixo.

Em primeiro lugar (medellín 168, p. 453), não há diferença rigorosamente nenhuma entre assumir o compromisso de viver em plena continência (São João Paulo II na Familiaris Consortio, 84) e esforçar-se por viver como amigos (Bento XVI na Sacramentum Caritatis, 29b): uma expressão implica na outra sem solução de continuidade. Afinal de contas, o único compromisso exigível ao cristão é o de se esforçar para fazer a vontade de Deus, uma vez que ninguém pode garantir a priori que nunca mais vai tornar a pecar; e viver como amigos significa, exatamente, viver em plena continência, uma vez que aos amigos não é facultada a prática de atos conjugais próprios dos esposos. Não há nenhuma evolução entre os dois documentos, como se a Igreja estivesse ensaiando “um passo à frente” nessa matéria; por sua vez, a proposta dos liberais de se conferir a Sagrada Eucaristia para quem vive em relações adulterinas não guarda nenhuma compatibilidade ou gradação com os documentos apresentados.

O artigo dá a entender que, anteriormente, os que viviam em segundas núpcias não podiam receber os Sacramentos nem mesmo se estivessem vivendo em plena continência (medellín 168, p. 452), sendo a autorização para comungar nesta última hipótese uma novidade trazida por São João Paulo II. Não sei se isso é exato mas, em qualquer caso, vem ao encontro de tanto quanto já falei aqui sobre o assunto: para mim é claro que o sentido da norma é evitar por um lado que as pessoas em pecado mortal comam e bebam a própria condenação (cf. CCE §1385) e, por outro lado, afastar mesmo qualquer aparência de confusão acerca da Doutrina Católica sobre o Matrimônio e a Eucaristia. A contrario sensu, portanto, se (note-se bem, SE) não há responsabilidade subjetiva apta a configurar pecado mortal e não se produzem escândalos nem se induz a erro acerca da Doutrina, então a participação discreta nos Sacramentos é lícita. Isso vale desde sempre, mesmo antes da AL ou da FC. Isso é a própria lógica interna da Liturgia (enquanto culto público) e dos Sacramentos (enquanto canais da Graça).

Infelizmente, contudo, a situação atual é a de escândalo institucionalizado, praticamente inexistindo alguma hipótese onde a tal “novidade” do Cap. VIII da Amoris Laetitia possa ser licitamente aplicada. A situação atual, ao contrário, talvez exigisse mesmo um recrudescimento da disciplina, impondo maiores obstáculos mesmo à comunhão eucarística (pelo menos à pública) dos que vivem em segundas núpcias praticando a plena continência. A confusão é generalizada e, para não correr o risco de menoscabar os Santos Sacramentos, talvez fosse mais pastoral, em certas circunstâncias, negar a Sagrada Comunhão a quem, conquanto interiormente em estado de Graça, não estivesse em condições exteriores de A receber.

Voltando ao artigo de D. Fernandéz, as comparações feitas com o Quinto e o Sétimo Mandamentos (medellín 168, p. 454-455) não têm pé nem cabeça. Matar alguém em legítima defesa não viola o mandamento de “não matar”, nem se apropriar da comida alheia em estado de necessidade viola o de “não furtar”. Isso é arquiconhecido de todo mundo e nunca esteve em discussão, consta em qualquer catecismo ou manual de teologia moral. Em contrapartida, ninguém jamais cogitou que a convivência more uxorio com alguém que não o cônjuge legítimo pudesse ser coisa diferente de adultério ou fornicação!

E o motivo do descabimento da comparação é muito fácil de se ver. É lícito ao agredido tirar a vida do agressor injusto porque, se ele não o fizesse, seria morto: a legítima defesa se justifica porque é conditio sine qua non para a preservação da própria vida. Do mesmo modo o furto famélico é lícito porque, se a pessoa não comesse, iria morrer de fome, e a vida é um bem maior do que a propriedade; além do quê, no estado de necessidade que justifica o furto famélico há uma violação objetiva da destinação universal dos bens, há um uso desordenado da propriedade.

Ou seja, tanto um caso quanto o outro se justificam, por um lado, porque se está diante de uma injustiça em ato (uma agressão, no caso da legítima defesa; uma desordem na destinação universal dos bens, no caso do estado de necessidade) mantida por um ser humano concreto (o agressor ou o mau proprietário); e, por outro lado, porque quem repele com força a violência sofrida ou quem se apropria daquilo que não lhe pertence o fazem legitimamente apenas porque não lhes resta mais nada a fazer, porque esta é a ultima ratio, sem a qual morreriam.

Coisa completamente diferente ocorre no caso dos divorciados recasados: nem estão diante de um agressor injusto, uma vez que os fautores do adultério são eles próprios; nem estão ausentes as outras opções, uma vez que tanto a continência quanto até mesmo a própria separação permanecem como alternativas; nem, tampouco, se encontram diante de uma situação objetiva de injustiça, uma vez que a indissolubilidade é um mandamento de Deus e não uma desordem introduzida pelo homem. É claro, portanto, de uma clareza meridiana, que as diferentes situações nada guardam em comum uma com as outras. Não é possível, em absoluto, procurar uma justificativa para o adultério raciocinando a partir do estado de necessidade ou da legítima defesa!

No artigo de D. Fernandéz há, por fim, uma outra comparação, para dizer o mínimo, forçada. As “mudanças” da posição da Igreja a respeito da escravidão ou da salvação dos não-católicos (medellín 168, p. 460-461) não são, em absoluto, “mudanças de disciplina” (!) e nem se prestam a justificar a alegada permissão para que casais adulterinos possam receber a Comunhão Eucarística. Quanto à salvação dos não-católicos diga-se, simplesmente, que o Batismo de Desejo sempre foi reconhecido pela Igreja, recebendo inclusive consagração expressa em Trento. Mas a referência à escravidão é que faz o nonsense atingir níveis inimagináveis.

Ora, a escravidão jamais foi “ensinada”, sendo tão-somente tolerada quer como pena (no caso de Nicolau V e as guerras ibéricas), quer como mal menor (no caso do tráfico negreiro): o que mudou de lá para cá não foi o ensino da Igreja (nem “a compreensão da Igreja a respeito da Doutrina” nem nada do tipo), mas tão-somente as circunstâncias externas. O que acontece é que, hoje, por força da própria pregação do Cristianismo séculos afora, não há mais espaço — graças a Deus! — para a prática daquilo que a Doutrina Cristã sempre apontou como um mal. Isso é exatamente o oposto do que historicamente aconteceu com o divórcio, cuja maldade intrínseca a Igreja sempre sustentou com intransigência mesmo perante os poderosos do mundo. Na abolição da escravatura foi a Igreja que venceu e se impôs perante o mundo; admitir a comunhão dos divorciados recasados, ao contrário, seria a derrota da Doutrina Cristã, seria o mundo se impondo à Igreja. É evidente que semelhante interpretação não pode prosperar; contra ela é mister combater com todas as forças.

A entrevista do Superior Geral dos jesuítas: «reinterpretar» as palavras de Cristo?

A entrevista do novo superior geral dos jesuítas provocou estupor pela afirmação de que, no tocante ao acesso aos sacramentos dos divorciados recasados, seria necessário «reinterpretar Jesus». As perguntas do entrevistador são muito bem feitas e, as respostas, um verdadeiro show de horrores.

Primeiro o padre Arturo Sosa Abascal põe em dúvida a autoridade das Escrituras Sagradas ao afirmar que na época de Cristo “ninguém tinha um gravador” (!) para registrar o que Ele teria dito ou deixado de dizer. A afirmação é de uma grosseria sem tamanhos e esconde o pressuposto elíptico de que uma gravação poderia ser mais fidedigna que a infalível palavra de Deus, escrita pelos santos, reconhecida pelos doutores e chancelada pela Igreja ao longo dos séculos.

Que não existissem gravadores na Palestina da época de Cristo é de uma irrelevância sem tamanho e, a menção ao fato, de um materialismo que chega a assustar. A autoridade dos Evangelhos não repousa sobre o grau de confiabilidade do meio de registro (de modo que a gravação mediante um aparelho é sob certo aspecto mais exata que o relato feito de memória), mas sobre a chancela da Igreja de Cristo que é «coluna e sustentáculo da Verdade» (1Tm 3, 15). Nós não sabemos, é verdade, todas as palavras que foram proferidas por Nosso Senhor nesta terra; no entanto, as palavras que foram consignadas por escrito pelos Evangelistas, estas nós temos sim a certeza de que foram ditas — e uma certeza mais firme do que poderia ser proporcionada por qualquer extemporâneo meio de registro eletrônico.

Não existe esta divisão — de sabor kantiano — entre a palavra de Jesus e a interpretação da palavra de Jesus. Do jeito que o pe. Arturo fala, fica parecendo um formalismo inútil: é verdade que o que Jesus disse é verdadeiro, mas o que nós sabemos sobre o que Jesus disse pode estar errado… Ora, se não fosse possível a certeza a respeito da interpretação das palavras de Cristo então o Evangelho seria de todo inútil.

A Igreja existe precisamente para dizer qual a interpretação verdadeira das palavras de Cristo. É esta a Sua função precípua e espanta que um sacerdote — o superior de uma importantíssima ordem religiosa! — o pareça ignorar. É sem dúvidas necessário saber quais foram as palavras de Cristo, mas nós as sabemos e, além disso, sabemos qual a sua correta interpretação!

As palavras de Cristo são as que estão registradas na Vulgata: quod ergo Deus coniunxit homo non separet — o que Deus uniu, portanto, não separe o homem (Mt XIX, 6).

E a interpretação dessas palavras é a que está consignada, por exemplo, na XXIV sessão do Concílio de Trento:

977. Cân. 7. Se alguém disser que a Igreja erra quando ensinou e ensina que, segundo a doutrina evangélica e apostólica (Mc 10; l Cor 7), o vínculo do matrimonio não pode ser dissolvido pelo adultério dum dos cônjuges e que nenhum dos dois, nem mesmo o inocente que não deu motivo ao adultério, pode contrair outro matrimonio em vida do outro cônjuge, e que comete adultério tanto aquele que, repudiada a adúltera, casa com outra, como aquela que, abandonado o marido, casa com outro — seja excomungado.

Sim, o pe. Arturo tem total razão ao dizer que é preciso saber exatamente quais são as palavras de Cristo (que ninguém pode mudar), bem como o quê exatamente estas palavras significam. Isto é sem dúvidas muito necessário, e um sem-número de erros absurdos — como os que o próprio pe. Arturo insinua na sua entrevista — seriam evitados se se soubessem, com certeza, as palavras de Cristo e o que elas significam.

E a correta interpretação sobre qualquer ponto da Doutrina Católica — sobre as palavras do Evangelho inclusive — só a dá o Magistério da Igreja. E se é verdade que ninguém pode mudar a palavra de Cristo, é igualmente verdade, e pela mesma razão, que ninguém pode mudar o ensino do Magistérioqui vos audit me audit (Lc X, 16). «Quem vos ouve, a mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita; e quem me rejeita, rejeita aquele que me enviou». Absolutamente nada pode ser «reinterpretado» de modo a fugir disso.

A entrevista primeiro tentou lançar dúvidas sobre o registro escriturístico das palavras de Cristo; depois, procurou introduzir uma distinção entre as palavras de Cristo e a interpretação das palavras de Cristo. Tudo vão: nada disso tem lógica dentro do Catolicismo, porque i) a infalibilidade das Escrituras Sagradas nos garante que sabemos, sim, com certeza, o conteúdo do que Cristo disse e ii) a infalibilidade do Sagrado Magistério garante-nos saber, sem possibilidade de erro, o sentido do que Cristo quis dizer.

Resta, por fim, a questão do «discernimento». Acerta o sacerdote ao dizer — e ainda bem que o disse! — que «um verdadeiro discernimento não pode prescindir da doutrina». Repita-se isso quantas vezes forem necessárias: nenhum discernimento pode prescindir da doutrina da Igreja Católica e Apostólica: se o fizer será um falso discernimento! No entanto, ao final, o superior dos jesuítas afirma que o discernimento «pode chegar a conclusões distintas [das] da doutrina». Aqui é preciso ir com calma.

Pode, de ser metafisicamente possível, é claro que pode, porque o discernimento — como uma operação da razão prática — está sujeito ao erro. Agora, pode, de ser moralmente lícito, aí não, não pode, porque o verdadeiro discernimento é aquele que consiste em fazer a vontade de Deus. E a vontade de Deus não pode ser «distinta» do que está expresso na Doutrina que Ele próprio nos transmitiu, é evidente. A doutrina não é um substituto do discernimento como o bem moral não é sucedâneo do livre-arbítrio, mas da mesma forma que o livre-arbítrio só se exerce verdadeiramente na prática do bem, o discernimento só é legítimo estritamente dentro do espaço delimitado pela doutrina. Pecar não é exercitar a liberdade e, do mesmo modo, contrariar os ensinamentos de Deus não é discernir senão confundir.

Não faltou quem quisesse utilizar a entrevista do pe. Arturo Abascal como um subsídio para a interpretação da Amoris Laetitia — como se a Exortação Apostólica não dissesse, logo na primeira linha do célebre capítulo VIII, exatamente o contrário do que defende o pe. Abascal: «toda a ruptura do vínculo matrimonial «é contra a vontade de Deus (…)»» (AL 291)! Não há aqui nada que se «reinterpretar». Permanece válido — e não poderia ser diferente — o ensino católico em todo o seu fulgor: a homem algum é lícito tomar outra esposa, e a mulher nenhuma tomar outro marido, durante a vida do cônjuge verdadeiro. Qualquer «discernimento» possível de ser feito precisa levar isso em consideração, e ignorar esta verdade — sob o argumento de não se saber exatamente as palavras de Cristo, ou de haver dúvidas sobre o seu significado, ou ainda de que não se pode fazer a doutrina substituir a consciência moral, ou de qualquer outro — é servir ao Demônio e não a Deus.

As questões dos cardeais sobre a Amoris Laetitia

Foi hoje tornada pública uma carta ao Papa Francisco onde um grupo de cardeais interpela Sua Santidade a respeito de algumas interpretações contraditórias que estão circulando no orbe católico sobre o Cap. VIII da Amoris Laetitia. Trata-se de uma atitude duplamente excelente, no conteúdo e na forma. No conteúdo, porque o seu objetivo é pôr freios à loucura generalizada que se apossou de muitos ambientes católicos; na forma porque tudo se fez de maneira exemplar, com toda a deferência exigida ao Soberano Pontífice.

Um simples olhar sobre o caso mostra a diferença gritante, estratosférica, entre ele e a histeria virtual generalizada que, aqui no blog, tanto me censuram por combater.

Em primeiro lugar a carta é, toda, de uma elegância exemplar. No lugar dos xingamentos, os preitos de submissão; no lugar das acusações vagas, as questões formuladas com todo o rigor acadêmico. Em nenhum momento o Papa é diminuído em qualquer das suas prerrogativas, em nenhum parágrafo as suas intenções ocultas são perscrutadas e censuradas. Não se encontra na carta — nem mesmo! — uma afirmação taxativa de que tal ou qual passagem da exortação apostólica esteja em desacordo com a doutrina da Igreja; simplesmente se pergunta se as disposições antigas ainda estão válidas e, se sim, de que modo.

Depois: a carta foi redigida por quatro cardeais da Santa Igreja, não pelo Zé das Couves da esquina. Foi entregue ao Santo Padre e não divulgada no Facebook. É total a diferença entre os Príncipes da Igreja, membros da cúria pontifícia, e o leigo brasileiro que mal ajuda a sua paróquia territorial. É absoluta a dessemelhança entre o documento formal, cerimoniosamente entregue ao próprio Soberano Pontífice, e o panfleto passional espalhado aos quatro ventos internet afora e cuja leitura só provoca a indisposição dos espíritos para com o Cristo-na-terra.

Finalmente, o modo de proceder dos cardeais foi aquele estabelecido por Nosso Senhor nos Evangelhos: primeiro o Papa foi procurado privadamente, e somente depois — quando tomaram consciência de que a resposta pontifícia não viria — os autores da carta decidiram ampliar a discussão, tornando-a pública. Não está, portanto, em questão aqui a pessoa do Romano Pontífice, o juízo moral sobre as suas atitudes, nada disso: o que se objetiva é, tão-somente, o esclarecimento dos fiéis católicos a respeito de algumas questões morais surgidas a partir da leitura de um capítulo da última exortação apostólica publicada pelo Papa Francisco.

As dubia enviadas ao Santo Padre são as seguintes:

  1. Se é agora possível (AL 305 c/c nota 351) conferir a absolvição sacramental, e consequentemente a Comunhão Eucarística, a uma pessoa que, conquanto possua um anterior vínculo matrimonial válido, viva more uxorio com alguém que não é o(a) legítimo(a) esposo(a).

  2. Se, após o n. 304 da Amoris Laetitia, ainda existem normas morais absolutas que proíbem incondicionalmente atos intrinsecamente maus e que são obrigatórias a todos, sem exceções.

  3. Se após o n. 301 da Amoris Laetitia ainda é possível afirmar que uma pessoa que habitualmente viva em contradição com um mandamento da Lei de Deus (e.g. o que proíbe o adultério) encontra-se em uma situação objetiva de pecado grave habitual.

  4. Se, à luz das “circunstâncias que mitigam a responsabilidade moral” (AL 302), permanecem válidos os ensinamentos de S. João Paulo II de acordo com os quais as circunstâncias, ou as intenções, não podem jamais transformar um ato intrinsecamente mau em algo subjetivamente bom ou defensável como uma escolha.

  5. Se, após o n. 303 da Amoris Laetitia, permanece válido o ensinamento segundo o qual a consciência nunca pode legitimar exceções a normas morais absolutas que proíbem atos intrinsecamente maus em virtude do seu objeto.

O debate franco, aberto e desapaixonado a respeito dessas questões é da mais alta importância, e em muito boa hora os eminentíssimos cardeais as trazem a lume. Que a clareza das perguntas possa dar uma exata dimensão daquilo que atualmente se está discutindo; que elas propiciem respostas cada vez mais claras, a fim de fazer cessar a confusão instaurada no seio da Igreja Santa de Deus.

P.S.: Após escrever este texto descobri já haver uma tradução para o português no Sandro Magister do apelo feito pelos cardeais — leiam lá. As perguntas que transcrevi acima foram feitas em tradução livre por mim mesmo a partir do texto do Rorate Caeli.

Urgentes orientações do Sínodo da Família sobre os casais de segunda união

Nas últimas semanas a mídia católica — mesmo a mídia católica que se reputava mais fidedigna e confiável — irrompeu em um surto de loucura a respeito do que o Sínodo dos Bispos (que se encerrou no final do mês passado) teria falado a respeito da comunhão dos divorciados recasados. Perplexos, deparamo-nos com manchetes e reportagens o mais disparatadas possível, vindas de órgãos de imprensa que, até então, sempre ou quase sempre tinham primado pelo equilíbrio e pela sensatez.

A Rádio Vaticano diz que a “comunhão aos divorciados recasados” é “uma questão aberta”. No estilo “em cima do muro” que lembra o pior da politicagem tupiniquim, o Cardeal de São Paulo afirma que “há muita divergência” sobre isso, que “questões complexas não podem ser respondidas simplesmente com um sim ou não”, que “o Sínodo, que não é ainda a palavra do Papa, não decidiu nada sobre isso”, que o Papa pode dizer uma coisa ou outra. Ou seja, a questão estaria “aberta” porque o Sínodo não determinou nada.

Aleteia, em manchete ainda pior, vai mais fundo e diz que o “Sínodo dos bispos abre portas para integrar divorciados recasados”. Perdida lá no corpo da matéria está a afirmação — esta, sim, relevante — de que “[o] texto [do Sínodo] não especifica se [os divorciados recasados] poderão realizar a comunhão”.

Por fim, Zenit coloca como chamada principal da matéria que “o acesso à eucaristia [dos “casais em segunda união”] deverá ocorrer na própria paróquia onde reside o casal” (!). No exercício do wishful thinking mais grosseiro, o autor do texto justifica a manchete dizendo que “o documento normativo do Sínodo, a ser elaborado pelo papa Francisco, numa exortação apostólica, eventualmente poderá estimular a verificação de caso a caso, para se aferir a responsabilidade subjetiva”. Ou seja: um eventual documento que o Papa Francisco porventura publique, em data incerta e não sabida, poderá estimular a avaliação caso a caso dos divorciados recasados — o que pode potencialmente levar os casais em segunda união a terem acesso à Eucaristia na própria paróquia onde residem! Tantas condicionantes, possibilidades, eventualidades, incertezas, indeterminações… ora, acaso isso é notícia? Em que mundo?

O mais perturbador disso tudo: nenhuma notícia diz que o Sínodo autorizou a comunhão aos divorciados recasados (primeiro porque o Sínodo, órgão consultivo, não pode “autorizar” nada e, segundo, porque, de fato, os documentos do Sínodo não mencionam em nenhum momento a possibilidade de admitir à comunhão eucarística os divorciados recasados) e, portanto, a rigor, todas as reportagens são formalmente verdadeiras. Mas o modo como elas foram escritas conduz o leitor incauto a imaginar que foram, sim, “abertas portas”, que estas portas são para o “acesso à eucaristia” dos divorciados recasados, que esta questão, outrora fechada, agora foi “aberta” pelo Sínodo e se está somente esperando a formalização pontifícia — que virá a qualquer momento! — para que os casais em segunda união possam, enfim, receber Nosso Senhor na Eucaristia. E, para quem não vai ler o Relatio Synodi (que, parece, só há em italiano…) nem esperar a Exortação Apostólica Pós-Sinodal, a impressão que fica é esta induzida pela mídia católica mesmo.

Esforcemo-nos um pouco para nos elevar acima da mediocridade que contaminou até mesmo a boa mídia católica. O que importa saber sobre o tema é, em resumo, o seguinte: o sínodo tem marcos teóricos muito sólidos, explicitados no próprio Relatio (nn. 42 – 46), entre os quais se destaca — como não poderia deixar de ser — a Familiaris Consortio de S. João Paulo II. Uma (re)leitura desse documento é de enorme importância para se compreender a Igreja hoje. Em particular o seu n. 84. Tudo, tudo ali se explica.

Senão vejamos: há um clamor popular e midiático enorme para que a Igreja se debruce sobre a questão dos divorciados recasados? Sim, trata-se de mal que se vai alastrando mesmo pelos ambientes católicos, e portanto “o problema deve ser enfrentado com urgência inadiável”.

Importa fazer com que a Igreja esteja mais preocupada em acolher do que em condenar? Sem dúvidas, porque a Igreja, “instituída para conduzir à salvação todos os homens e sobretudo os baptizados, não pode abandonar aqueles que – unidos já pelo vínculo matrimonial sacramental – procuraram passar a novas núpcias”.

Então, o que fazer? Estariam porventura estes excomungados? Absolutamente não; é um dever de toda a Igreja, dos pastores como dos fiéis, “ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto baptizados, participar na sua vida”. É fundamental que eles sejam “exortados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus”.

Conceder-se-lhes-á, então, participar da Ceia Eucarística? Aí não. “Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e actuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimónio”.

Mas não existe nenhuma exceção? Sim, existe, uma exceção que precisa ser avaliada caso a caso: a daquelas pessoas que, não podendo, por justa causa, abandonar o cônjuge ilegítimo (digamos, por conta dos filhos pequenos que possuam), decidem, conquanto mantendo a habitação em comum, abster-se dos atos sexuais adulterinos. Assim, “[a] reconciliação pelo sacramento da penitência – que abriria o caminho ao sacramento eucarístico – pode ser concedida só àqueles que, arrependidos de ter violado o sinal da Aliança e da fidelidade a Cristo, estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimónio. Isto tem como consequência, concretamente, que quando o homem e a mulher, por motivos sérios – quais, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar, «assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos actos próprios dos cônjuges»”.

Pronto. Com isso, se responde perfeitamente às notícias acima referidas, sem margens para dúvidas ou más interpretações:

  • A questão da comunhão eucarística aos divorciados recasados está aberta? Não, não está aberta, porque São João Paulo II, em texto sobre o assunto ao qual o Sínodo contemporâneo faz expressa referência, já reafirmou a praxis eclesiástica, “fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união” — e não há necessidade de se ficar, a todo ano, a toda reunião, repetindo explicitamente as mesmas coisas (sob pena de elas “deixarem de valer”). Isso não faz sentido algum.
  • Mas então os divorciados recasados devem ser acolhidos na vida da Igreja? Sem dúvidas, como São João Paulo II já disse explicitamente, é dever de todos os católicos tudo fazer para que os divorciados recasados “não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto baptizados, participar na sua vida”.
  • E o que é que deve ser analisado caso a caso? Ora, deve-se analisar individualmente aquelas situações em que as pessoas, não podendo por razões graves abandonar o falso cônjuge, comprometem-se a tentar levar “uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimónio” — i.e., com a abstinência dos atos próprios dos casais.

Tudo isso é porventura novidade? Não, tudo isso consta em um texto do início da década de 80! Qual a razão do alvoroço, qual o motivo do alarde, como se S.S. o Papa Francisco estivesse fazendo alguma coisa inaudita em vinte séculos de Cristianismo? Todas essas coisas — de não estarem excomungados os divorciados recasados, da importância de os integrar à vida da Igreja, da inadmissibilidade de se conceder a Comunhão Eucarística aos que vivem maritalmente com alguém que não é o seu cônjuge legítimo e da necessidade de se avaliar, individualmente, os casos daquelas pessoas que quiserem abandonar as práticas conjugais mantendo, contudo, a habitação comum — já fazem parte das disposições normativas da Igreja Católica há mais tempo do que eu próprio tenho de vida! Se não são obedecidas, e se portanto precisam ser reforçadas, é uma outra história; mas não se diga que a Igreja não tem respostas ao problema do divórcio e nem que Ela está procurando, agora, do nada, soluções para estas questões.

A Igreja é Mãe, e não é de hoje que Ela é Mãe. Os filhos da Igreja são rebeldes, e não é de hoje que esta rebeldia grassa entre aqueles pelos quais Cristo verteu o Seu Sangue na Cruz. Mas a Igreja, Esposa Fiel de Cristo, não vai trair jamais a confiança do Seu Divino Esposo, e isto significa duas coisas: que Ela não vai abandonar os homens por cuja salvação Cristo morreu, por um lado; mas que, pelo outro lado, tampouco vai abandonar a Doutrina por meio da qual somente aqueles homens se podem salvar. Eventuais tentativas de obscurecer qualquer dessas verdades desfigura o rosto da Igreja de Nosso Senhor, e devem portanto ser combatidas.

Encerrou-se a Assembléia Extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre a família. Mas, ao contrário do que a mídia insinua, não é necessário esperar para ver “o que o Papa vai fazer” com tudo isso. O documento normativo do Sínodo da Família, elaborado pelo Papa, já saiu em português: foi publicado aos 22 de novembro de 1981, e não há razões honestas para esperar nada diferente disso. Todas estas disposições aliás já podem — e devem — ser postas imediatamente em prática. Façamo-las conhecidas e efetivas. Não há tempo a perder.

Reforma do processo de nulidade matrimonial I – O que é nulidade?

Foram dois os motu proprios recentemente publicados pelo Papa Francisco “sobre a reforma do processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio”: Mitis et misericors Iesus e Mitis Iudex Dominus Iesus. Os dois têm a mesma data – 15 de agosto de 2015 – e o mesmo objeto – as mudanças no processo de nulidade matrimonial. São dois porque o primeiro deles altera os cânones do Código das Igrejas Orientais e, o segundo, os do Codex Iuris Canonici vigente na Igreja latina. Um só, portanto, é o propósito da dupla publicação, havendo dois documentos porque duplo é o regime jurídico da Igreja Católica: oriental e ocidental.

Os documentos se propõem a facilitar o processo pelo qual se obtém a declaração de nulidade matrimonial. Atenção que as palavras são aqui importantes: processo, i.e., meio, procedimento, o que significa que não houve nenhuma modificação substantiva no tema, nenhuma (aliás impossível) alteração doutrinária, nenhuma mudança de posição da Igreja no que se refere ao assunto; declaração, i.e., um documento de natureza — como o próprio nome diz — meramente declaratória (e não constitutiva), que se limita a fazer uma afirmação a respeito da realidade sem a alterar de nenhuma maneira; e nulidade, e não anulação, ou seja, uma qualidade já desde o início presente no Matrimônio tentado, e não uma que se lhe confere ao fim do processo canônico.

Relembrando as aulas de teologia sacramental: todo Sacramento, para ser válido — i.e., para existir — precisa de três coisas: forma, matéria e ministro. Não é qualquer forma, senão apenas a forma adequada; nem qualquer matéria, mas somente a matéria válida; nem tampouco qualquer ministro, senão só o ministro capaz. Faltando uma dessas três coisas, então o Sacramento, por mais que exteriormente pareça, não é Sacramento de verdade.

O exemplo da Eucaristia é talvez o mais claro e ajude a enxergar o que se está querendo dizer aqui: todo mundo sabe que, para a Eucaristia ser válida — ou seja, para o pão e o vinho realmente se transformarem no Corpo e no Sangue de Cristo — é preciso que as palavras da Consagração sejam proferidas por um sacerdote validamente ordenado. Ou seja: se um sujeito que não é padre chegar numa igreja, paramentar-se corretamente, subir ao altar, proferir todas as orações e realizar todos os gestos previstos no Missal, pegar a hóstia e disser “isto é o Meu corpo”, o cálice e afirmar “este é o cálice do Meu sangue”, elevá-los, enfim, fizer tudo de modo exatamente igual a como um padre de verdade faria, ninguém que esteja observando “de fora” vai perceber, mas o pão vai continuar sendo pão e, o vinho, vinho. Não vai ocorrer a transubstanciação. Não vai ter havido o Sacramento.

O que se quer dizer é isto: todo sacramento é um sinal sensível de uma graça invisível, mas nem todo sinal sensível é um sacramento! A Hóstia, ainda que seja do tipo com o qual estamos acostumados — o disco branco, de espessura fina, geralmente ornado com símbolos cristãos –, ainda que esteja sobre o altar, ainda que seja elevada por um homem paramentado como sacerdote católico, ainda assim, se o homem não for um sacerdote validamente ordenado então ela vai continuar sendo apenas pão. Não é porque a coisa parece um sacramento que ela é um sacramento de verdade. E isto, que é fácil ver no Sacramento da Eucaristia, vale para todo Sacramento da Igreja Católica.

Até para o Matrimônio, e aqui chegamos ao ponto. Assim como é possível que uma hóstia não seja o Corpo de Cristo mesmo que, externamente, ela pareça ter sido consagrada, da mesma maneira é possível que um casal vivendo maritalmente não forme um Matrimônio Católico ainda que, externamente, os dois pareçam ter se casado. Da mesma forma como é possível que a Hóstia não tenha sido validamente consagrada, é possível que o Matrimônio não tenha sido validamente contraído — e ao Matrimônio inválido nós chamamos nulo. E ao procedimento que a Igreja emprega para investigar se, de fato, aquela situação que parece um casamento é realmente um Matrimônio Sacramental chama-se comumente de processo de nulidade, e foi isto que o Papa Francisco alterou recentemente.

Há somente algumas poucas razões pelas quais se pode imaginar que a Eucaristia tenha sido nula: ou o padre era um falso sacerdote, ou a hóstia era feita de alguma coisa outra que trigo (digamos, mandioca), ou o sacerdote queria não consagrar no momento em que proferiu as palavras da Consagração; além dessas hipóteses é difícil imaginar outras muito diferentes. O Matrimônio, por ser um contrato jurídico, é um pouco mais complicado. A partir do cânon 1073 do Código de Direito Canônico encontra-se uma longa lista de razões pelas quais um Matrimônio pode ser invalidamente contraído — i.e., não existir. À guisa de exemplificação:

  • não podem contrair matrimônio válido os homens antes dos dezesseis anos completos nem a mulher antes dos catorze também completos (Cân.1083);
  • os que tenham recebido ordens sacras também não conseguem casar (Cân. 1087);
  • não podem casar os que possuem parentesco em linha reta, em qualquer grau (Cân. 1092);
  • aqueles que “por causas de natureza psíquica não podem assumir as obrigações essenciais do matrimônio” também são incapazes de o contrair (Cân. 1095);
  • quem é enganado acerca de “qualidade da outra parte que, por sua natureza, possa perturbar gravemente o consórcio da vida conjugal” também não casa validamente (Cân. 1098);
  • é também “inválido o matrimônio celebrado por violência ou por medo grave (…) para se libertar do qual alguém se veja obrigado a contrair matrimônio” (Cân. 1103);
  • se o sacerdote que vai assistir o Matrimônio não é o pároco, então precisa de delegação, sob pena de o matrimônio não ser validamente contraído (Cân. 1108);
  • etc.

Qualquer uma dessas situações, presentes no momento em que se celebrava o Matrimônio, são capazes de fazer com que ele tenha sido inválido; há que se verificar, por exemplo, se o impedimento estava presente, se podia ser dispensado, se de fato o foi. É para responder a estas perguntas que existe o procedimento de investigação de nulidade matrimonial dentro da Igreja Católica. Ele não tem nada a ver com mudar a realidade do casamento — se o casamento foi válido então ele permanecerá válido para sempre e, se foi inválido, também nunca será um matrimônio até que os defeitos sejam sanados –, mas sim com conhecer a verdadeira natureza de uma união exteriormente parecida com um casamento católico (como, insista-se na comparação que parece elucidativa, uma hóstia não-consagrada é exteriormente parecida — indistinguível até — de uma que seja o Corpo do Senhor).

Em suma, à semelhança do que ocorre com a Eucaristia, também o Matrimônio pode ser inválido. Estes “casamentos” nunca foram casamentos antes da atual reforma do Papa Francisco, e continuariam sem o ser ainda que nada tivesse mudado nos processos de nulidade.

Portanto,

i) todo casamento validamente contraído é indissolúvel (há a exceção do privilégio petrino para os matrimônios ratos e não consumados, mas não cabe entrar em detalhes aqui; até porque os casos aos quais ele é aplicável — onde não houve consumação, i.e., conjunção carnal — são por si mesmos excepcionais);

ii) nem tudo o que externamente parece um casamento é um casamento de verdade;

iii) é através do “processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio” que a Igreja se pronuncia a respeito da validade ou nulidade de um Matrimônio;

iv) um casamento que tenha sido nulo jamais existiu;

v) a existência ou inexistência do vínculo matrimonial é independente do processo pelo qual a sua nulidade é conhecida (i.e., um casamento nulo é nulo ainda que nunca venha a receber uma sentença de nulidade, e inversamente um matrimônio verdadeiro é verdadeiro matrimônio ainda que o processo canônico afirme ter ele sido inválido).

Não há lugar para a dissolução do vínculo conjugal por poder terreno algum: isto a Igreja sabe muito bem. Desde Cristo até os tempos de Henrique VIII, e de lá até os dias de hoje, e até a consumação dos séculos. Mas há, sim, espaço para a investigação honesta e sincera a respeito da verdade das coisas. Não cabe falar em “dissolver” se o vínculo já não existe em primeiro lugar. As mudanças recentes feitas pelo Papa Francisco dizem respeito aos meios de investigação daquela nulidade capaz de fazer com que nunca tenha havido Matrimônio de verdade. Nem todo mundo que vive junto está realmente casado; e reconhecê-lo em nada atinge a indissolubilidade do casamento verdadeiro.

Eu posso comungar?

Uma leitora do blog faz a seguinte pergunta:

Sou divorciada,moro sozinha embora tenho um “namorado” mas não moro com ele. Eu posso comungar?

Acho que vale uma resposta mais geral, uma vez que o questionamento deixa entrever uma certa incompreensão a respeito das condições exigidas para se receber a Santíssima Eucaristia.

Quem pode comungar é o católico que está em estado de graça, e somente este. O estado de graça é a condição de amizade com Deus adquirida originalmente por meio do Batismo e, caso seja perdida pelo pecado mortal, recuperada mediante o Sacramento da Confissão. Ou seja,

  1. quem não é batizado não pode comungar; e
  2. quem cometeu um pecado mortal após o Batismo não pode comungar enquanto não o tiver confessado.

É simples. Enquanto não se é batizado, não se pode comungar. Depois de batizado, pode comungar. Uma vez que tenha cometido um pecado mortal — qualquer que seja ele –, não pode comungar. Depois de se arrepender e confessar o pecado, pode voltar a comungar. Se cometer o pecado novamente, de novo fica sem poder comungar (até se confessar de novo) etc. Não existem pessoas que não podem comungar. Existem situações nas quais não se pode comungar.

Pecado mortal é a violação voluntária e consciente da lei de Deus em matéria grave. Existem incontáveis pecados mortais: é pecado mortal faltar Missa aos domingos e dias santos, é pecado mortal cometer aborto, é pecado mortal bater na esposa, é pecado mortal gritar com a mãe, é pecado mortal masturbar-se ou consumir pornografia, é pecado mortal ter relações sexuais com uma pessoa com a qual não se é casado na Igreja, é pecado mortal testemunhar falsamente contra alguém… a lista é longa e, mais importante!, não é exaustiva. Pode até fazer sentido debruçar-se esmiuçadamente sobre todas as maneiras possíveis de se violar cada um dos preceitos do Decálogo, mas isso é tarefa dos moralistas. Aos católicos ordinários, basta saberem que cometem pecado mortal — e, portanto, precisam confessar-se — ao não observarem os Dez Mandamentos da Lei de Deus — um deles que seja. Quais são os Mandamentos?

  1. Amar a Deus sobre todas as coisas.
  2. Não tomar o Nome de Deus em vão.
  3. Guardar domingos e festas.
  4. Honrar pai e mãe.
  5. Não matar.
  6. Não pecar contra a castidade.
  7. Não furtar.
  8. Não levantar falso testemunho.
  9. Não desejar a mulher do próximo.
  10. Não cobiçar as coisas alheias.

Todo Catecismo tem uma seção específica sobre “Os Mandamentos”, onde cada um desses preceitos é esmiuçado e onde se discute, argumenta e ensina exatamente o que o viola. Assim, por exemplo, no Catecismo, na parte onde se fala sobre o Primeiro Mandamento, é possível ler:

2116. Todas as formas de adivinhação devem ser rejeitadas: recurso a Satanás ou aos demónios, evocação dos mortos ou outras práticas supostamente «reveladoras» do futuro. A consulta dos horóscopos, a astrologia, a quiromancia, a interpretação de presságios e de sortes, os fenómenos de vidência, o recurso aos “médiuns”, tudo isso encerra uma vontade de dominar o tempo, a história e, finalmente, os homens, ao mesmo tempo que é um desejo de conluio com os poderes ocultos. Todas essas práticas estão em contradição com a honra e o respeito, penetrados de temor amoroso, que devemos a Deus e só a Ele.

Ou seja: comete pecado contra o Primeiro Mandamento — e, portanto, perde o estado de graça; e, portanto, precisa recorrer à Confissão Sacramental; e, portanto, não pode comungar — o católico que, deliberada e conscientemente, freqüenta centros espíritas para se comunicar com pessoas mortas, por exemplo. Isso é desconfiar de Deus e da Providência, isso é agir de modo frontalmente contrário à Sã Doutrina do Evangelho, isso é fazer pouco caso da Fé Católica e Apostólica, isso é, em suma, um pecado mortal que — como todo pecado mortal — impede quem o comete de comungar.

Parece haver uma certa mistificação a respeito da comunhão eucarística; pelo que se ouve, fica parecendo que todo mundo pode comungar, à exceção de um subconjunto de pessoas às quais, em razão do que são, é vedado o acesso à Mesa Eucarística. Assim, quem é divorciado não pode comungar, e não pode porque é divorciado; homossexual também não pode comungar, e não pode porque é gay; e assim sucessivamente. Esta visão é completamente equivocada, por duas razões muito claras. Primeiro, não existe propriamente um direito — ou pelo menos não um direito inato, inerente — à comunhão eucarística, que é graça; no geral, naturalmente falando, por aquilo que são (humanos feridos pelo Pecado Original), a verdade é que as pessoas não podem comungar, somente adquirindo este direito por conta daquele estado de graça sobre o qual se falava acima. Perdendo-se o estado de graça, deixa-se de poder comungar. Segundo, e mais importante, porque o estado de graça — ao contrário do que acredita certa teologia protestante — não é uma realidade dada de uma vez e para sempre, mas sim uma condição que, em situações normais, perde-se e se readquire incontáveis vezes ao longo do vale de Lágrimas pelo qual se caminha nesta vida. O ponto não é o que se é. O ponto é o que se faz.

Os homossexuais não podem comungar, é verdade, mas não por “serem homossexuais” — i.e., por serem portadores de uma disfunção da libido que os faz sentirem-se sexualmente atraídos por pessoas do mesmo sexo –, e sim por praticarem atos de sodomia. Isso tanto é verdade que as pessoas que possuam tendências homossexuais, mesmo profundamente arraigadas, podem perfeitamente levar uma vida cristã santa e sadia — o que inclui comungar — desde que se abstenham da prática de atos sexuais contra a natureza. O mesmo vale com relação aos divorciados recasados: não é por “serem recasados” — i.e., por dividirem apartamento com uma pessoa do sexo oposto que, na declaração de Imposto de Renda, figura como sua dependente — que eles não podem comungar, mas sim por praticarem atos sexuais com alguém que não é o seu cônjuge legítimo. Ou seja: o problema nunca é o que as pessoas “são”, mas sim aquilo que as pessoas “fazem”. Isso é de fundamental importância e precisa ser entendido com clareza por todas as pessoas, para que elas, mais do que “se”, saibam “quando” podem ou não podem comungar. E mais: para que saibam como podem voltar a comungar!

Voltando à pergunta que motivou toda essa digressão: pode comungar quem, sendo divorciada, tem um namorado? À luz do que foi visto até aqui, creio que o leitor já possa responder à pergunta.

Primeiro, tem-se relações sexuais com este namorado? Em caso positivo, então não, não pode comungar, mas — atenção! — não por ser divorciada, e sim pela prática de atos sexuais com uma pessoa que não é o seu cônjuge legítimo. Em mesmíssima situação estaria a pessoa que, sendo solteira e morando sozinha, tivesse um “namorado” com o qual praticasse atos sexuais: também não poderia comungar.

[Na verdade, a situação não é rigorosamente a mesma porque os pecados são diferentes — em um caso, fornicação e, no outro, adultério; no entanto, ambos são pecados mortais contra o Sexto Mandamento, os quais, cometidos, acarretam a perda do estado de graça e a consequente proibição de receber a comunhão eucarística enquanto eles não forem confessados. No que concerne a poder ou não poder comungar, portanto, a situação de ambas as mulheres é a mesma: nem uma nem outra pode se aproximar da Mesa Eucarística antes de se confessar.]

Segundo, se não se tem relações sexuais com este namorado, então é preciso investigar o propósito do “namoro” — se ele visa um casamento futuro, se é um mero companheirismo (e por isso as aspas, sei lá…) –, uma vez que pode haver, na situação, pecados outros que os contra a castidade: é falta de sinceridade com o companheiro ocultar-lhe a circunstância de que é verdadeiramente casada na Igreja Católica, por exemplo, e portanto não pode casar com ele futuramente; ou, por outra, é grave imprudência colocar-se em situação de pecado em um namoro perpétuo, incapaz de evoluir para um Matrimônio. Em suma, se a situação não for muito simples, é preciso analisar criteriosamente o caso concreto, de preferência junto a um diretor espiritual douto e santo, não sendo possível encontrar respostas definitivas e aplicáveis a todos os casos na internet.

O que dá para fazer aqui é expôr os princípios e, explicando a Doutrina Católica, tentar fazer entender o critério — aplicável a todas as pessoas — para poder ou não poder comungar. Tal, repita-se, não é uma característica concedida (ou negada) de uma vez e para sempre, mas sim uma circunstância profundamente dinâmica que deve ser constantemente avaliada por todos aqueles que se aproximam do Santíssimo Sacramento do Corpo do Senhor. Todos precisam comungar, é verdade. Mas também todos precisam se confessar; e é desconcertante que esta verdade não seja dita com tanta frequência quanto a primeira. O problema não é a pessoa “não poder comungar”, o problema é a pessoa estar em pecado mortal — que é o motivo pelo qual não pode comungar. É de uma tragicidade incomensurável que isto seja tão negligenciado.

Soluções concretas para as famílias não-tradicionais

Recebi por WhatsApp de um amigo uma manchete jornalística, em tom eufórico, segundo a qual o Papa Francisco conclamava a uma solução concreta para as famílias não-tradicionais. A frase verdadeira, proferida na homilia em Guayaquil, é a seguinte:

Pouco antes de começar o Ano Jubilar da Misericórdia, a Igreja vai celebrar o Sínodo Ordinário dedicado às famílias para amadurecer um verdadeiro discernimento espiritual e encontrar soluções concretas para as inúmeras dificuldades e importantes desafios que a família deve enfrentar nos nossos dias. Convido vocês a intensificar a oração por essa intenção: para que, mesmo aquilo que nos pareça impuro, nos escandalize ou espante, Deus – fazendo-o passar pela sua “hora” – possa milagrosamente transformá-lo. Hoje a família precisa desse milagre.

Desta vez, contudo, eu nem precisei recorrer ao texto original. Disse-lhe, sem pestanejar: ora, é claro que a dita “família não-tradicional” precisa de uma solução, e uma solução urgente, porque é um escândalo que seres humanos – muitos dos quais católicos! – vivam os mais horrendos pecados como se não fossem nada!

Não existe “família não-tradicional” e nem “família tradicional”. Existe família, ponto. Família é o pai, a mãe e os filhos. Isso não é a família “tradicional”, isso é a família verdadeira e perfeita, a arquetípica, a família por antonomásia em referência à qual todos os outros agrupamentos sociais se definem. Por vezes, decerto, as coisas não acontecem de maneira tão perfeita; por vezes, sem dúvidas, faltam alguns desses elementos. Às vezes os filhos não vêm, às vezes a morte vem colher precocemente um dos cônjuges; dir-se-á, nestes casos, que não existe família?

Melhor se dirá que a família está ainda em projeto, em desenvolvimento, no caso dos filhos que ainda não vieram; ou que ela persiste, ainda, subsistindo, nos seus frutos, nas suas marcas, no caso em que um dos cônjuges já partiu para as moradas celestes. Mas, atenção! Isto, que materialmente pode ser igual a um divorciado ou a um casal que emprega anticoncepcionais para não ter filhos, é no entanto completamente diferente.

Porque uma coisa é a aceitação resignada das vicissitudes da vida, de uma eventualidade alheia às nossas vontades – contrária, até, às nossas vontades! – e que priva a família quer dos seus alicerces originais – no caso da morte -, quer de seu desenvolvimento natural – no caso dos filhos que não vêm. Uma outra coisa, completamente diferente, é, por conta própria, destruir o vínculo indissolúvel que só a morte é capaz de solver, ou ceifar os filhos que Deus quisera mandar ao mundo.

Não há comparação possível. Do fato de os fins da família poderem ser frustrados não segue que nós os possamos deliberada e conscientemente frustrar; assim como do fato de que possamos perder um membro na guerra (e les invalides são merecedores de todo o nosso respeito e consideração!) não segue que possamos, por conta própria, nos mutilar por acharmos que o corpo deficiente “nos cai” melhor que o corpo são – e nem muito menos sancionar socialmente esta loucura.

De volta à (dita) “família não tradicional”. Isso simplesmente não existe; o que existe, e que demanda urgente tratamento – e nisto o Papa está mais uma vez corretíssimo! – são arremedos familiares, frutos de uma loucura generalizada que faz a seres humanos julgarem que a desestabilização voluntária da própria família (quer na sua dissolução, quer no impedimento de seus desenvolvimentos naturais) pode lhes ser algo bom. E é um escândalo que pessoas civilizadas, sem nenhuma coação premente de situações excepcionais (tal seria o exemplo, digamos, de uma mulher espancada diariamente pelo marido), aceitem com naturalidade viver em adultério continuado, traindo as promessas feitas um dia diante de Deus; ou tomando diariamente veneno para impedir que seus órgãos funcionem da maneira que foram feitos para funcionar, rejeitando os filhos que também prometeram um dia receber e educar. Isto choca e escandaliza, é socialmente deletério, individualmente degradante. E tal se vê não entre ímpios e pagãos, mas muitas vezes entre os que se dizem católicos praticantes…! Claro que provoca perplexidade; claro que demanda, sim, enfrentamento corajoso e urgente.

No WhatsApp, eu dizia que o maior sintoma dessa degenerescência era o fato de as pessoas não aceitarem o próprio erro mas, ao contrário, ficarem sempre repetindo para si próprias que estavam certas e errados eram os Papas, os santos, a Igreja, o próprio Cristo! Que os outros que mudassem, pois elas próprias não iriam mudar. Isto é o mais grave pecado que pode haver, porque é o pecado que já não se reconhece como pecado, é – para usar a expressão que Bento XVI consagrou – a própria perda de sentido do pecado.

O Papa sabe que é preciso «soluções concretas» para estes casos. Ora, que soluções? As que o mundo demanda? As que estas pessoas querem? De maneira alguma: a que deseja a Igreja! A solução para estes indivíduos é, nas palavras do próprio Papa!, que Deus «possa milagrosamente transformá-lo[s]». Sim, é um milagre; furar a barreira erguida pela impiedade de quem não é mais capaz de reconhecer o pecado em que vive imerso é um verdadeiro milagre. Mas é um milagre necessário, e pelo qual o Papa nos convida a rezar mais intensamente. Hoje a família precisa dele. Não nos é lícito fingir que não temos nada com isso.

Vilipendiado o Sacramento da Confissão. Duas vezes.

Foi somente hoje que tomei conhecimento de que uma jornalista italiana, fingindo-se de penitente católica, frequentou confessionários, contou histórias inventadas, gravou tudo e depois publicou as conversas que teve com os sacerdotes católicos que a atenderam. A história se reveste de uma malícia assustadora por algumas razões.

É de uma falta de respeito desmedida para com um ritual que os católicos têm por sagrado, antes do mais. Ninguém precisa da Fé Católica e Apostólica para entender o seguinte: para se aproximar de um sacramento, ao qual os católicos atribuem o poder de perdoar os pecados, contando premeditada e deliberadamente uma mentira – i.e., uma coisa que a Doutrina Católica classifica como «pecado» – com o intuito de redigir uma matéria sensacionalista, é preciso um profundo desprezo pela sensibilidade religiosa alheia.

Isso não é uma coisa, insista-se, que para se evitar seria necessário possuir convicções religiosas profundas. É questão de capacidade básica de convivência social, onde um mínimo respeito às convicções dos outros é exigido para evitar a multiplicação de conflitos desnecessários. Que ninguém invente, aqui, de dizer que os católicos são uns intolerantes que estão a exigir de todo mundo que se comporte em conformidade com as suas – dos católicos – crenças! Porque o que se percebe com clareza é que o anticlericalismo moderno – do qual o caso aqui em análise é paradigmático – atingiu assustadores limites de falta de noção.

Porque – é outra coisa que salta aos olhos quando tomamos contato com a matéria – parece que a sra. Alari não vê o menor problema nem com o sacrilégio bárbaro que cometeu, nem com as ulteriores reações que se lhe seguiram. Ela age como se não tivesse feito nada demais e como se as críticas enérgicas de personagens tão díspares quanto o Arcebispo de Bologna e a Ordem Profissional Italiana de Jornalistas não fossem dirigidas a ela, não lhe dissessem respeito. Um sociopata não demonstraria mais desdenhosa indiferença pelo seu entorno.

Se a maneira de obter a matéria já enoja, o seu conteúdo é de estarrecer. O único texto primário sobre o tema que encontrei foi esta postagem (da semana passada) do blog di Laura Alari. Aqui não há a história completa; trata-se, simplesmente, de um texto que trata – é o título – sobre a ida ao confessionário no papel de uma divorciada recasada que pede para receber a Comunhão Eucarística. O post é somente a transcrição do diálogo, particularmente macabro, entre Don Marco e a personagem que a Laura interpreta.

“Eu comungo sempre que vou à Missa. O senhor julga que cometo um pecado assim tão terrível?”. O padre, de início, não o nega taxativamente; mas a sua tergiversação quase equivale a uma negativa tácita, como que preparando o terreno para o que virá à frente: “Você faz uma coisa que a Igreja diz para não fazer”.

O começo da conversa parece animador. “Se vocês vivem como irmãos e irmãs não há problema”, diz o padre. Corretíssimo. “Verifique se não há razões para que o seu primeiro matrimônio tenha sido nulo”. Perfeitamente. Poderia ter terminado por aqui – quantas graças o bom Deus não deve ter concedido ao padre para que ele calasse a boca neste instante trágico! Mas Don Marco, infelizmente, não conseguiu se conter. As graças atuais passaram. E o padre continuou por conta própria: “Estou lhe dizendo o que a Igreja pede, mas no final é você que deve escolher”.

Silêncio. O padre acrescenta: “Se duas pessoas divorciadas decidem passar juntas o resto de suas vidas, eu não vejo nada de mal; antes é uma coisa positiva. Ainda mais porque, no caso de vocês, estamos falando de pessoas maduras envolvidas em um relacionamento sério, fundado sobre sentimentos verdadeiros; quem já sofreu uma vez não torna a fazer as coisas com superficialidades”. Isso é serviço que preste um Sacerdote do Deus Altíssimo no Tribunal Sagrado da Penitência Sacramental?

“Se falamos de sacramentos, é claro que, na minha posição, eu não direi nunca que tu podes receber a comunhão, uma vez que a Igreja reconhece apenas um Matrimônio. Mas tampouco te direi, jamais, que não podes recebê-la”. “Por quê?”, pergunta a incrédula. “Porque quando a vida acaba nós não nos pomos diante da Igreja, mas sim de Deus, e é a Ele que prestaremos contas de nossas ações”.

O padre ainda pergunta o que aconteceria se, no próximo Sínodo da Família, as coisas mudassem. “Não acontecerá!”, ele garante em seguida. “Mas, ainda que acontecesse, todos nós continuaríamos sendo as mesmas pessoas, com a nossa história particular a colocar diante do Bom Deus”.

“Mas padre,” – insiste por fim a mulher – “isto é andar contra as regras da Igreja”. E a cereja do bolo: “Isso tudo que estou dizendo não significa infringir as regras nem diminuir o problema. Em vez disso, significa olhá-lo de frente e lidar com ele de outros pontos de vista, que é o que estou tentando fazer: oferecer a você outras perspectivas”. Fim de post. Cai o pano. La commedia è finita; la tragedia tuttavia sigue.

Vistas as coisas em seu conjunto, a insistência de Don Marco em dizer à falsa penitente que não comungue não passa de uma piada de mau gosto, de uma hipocrisia farisaica grosseira. Afinal, dizer que a Igreja lhe manda não comungar ao mesmo tempo em que tenta por todos os meios persuadir-lhe de que isso não tem tanta importância – não deve ser levado tão a sério assim… – uma vez que i) a situação dela é linda e maravilhosa, ii) cada um deve agir de acordo com a própria consciência, iii) no final não prestaremos contas a Igreja mas sim ao Bom Deus e iv) oferecer outras perspectivas para enfrentar o problema não significa ir contra as regras (?), outra coisa não significa que desdizer indiretamente o que, contudo, algum formalismo meramente protocolar ainda manda dizer com todas as letras. O que vale, o que fica, não é o que confessor diz, e sim o que ele insinua. Qualquer pecador reticente o perceberia sem nem mesmo precisar de que o padre falasse tanto.

Ao sacrilégio da jornalista segue-se, de maneira terrível, esta horrenda prevaricação de um sacerdote da Igreja…! Que o Altíssimo tenha misericórdia de nós. Sim, a sra. Alari não faz a menor idéia do que significa o Sacramento da Confissão para os católicos, como se dizia acima. É verdade. Contudo, a julgar pelo que acabou de se ver, nem o reverendíssimo pe. Marco o sabe – e este caso é muito, muito mais grave do que o primeiro.

Lutando contra meios-termos fraudulentos

Qualquer pessoa que tenha um mínimo de experiência política entende a estratégia de fazer “avançar” determinada agenda ideológica mediante um emprego trivial de dialética hegeliana. Consiste, basicamente, em forçar um meio-termo mediante a introdução, no cenário político, de uma posição propositalmente extremada. Assim, do embate entre a tese (o status quo) e a antítese (a nova proposta), emerge uma síntese que não chega a ser exatamente a novidade, mas tampouco continua sendo a situação anterior. Como a antítese era artificialmente extremada e nunca fora realmente levada a sério mesmo, os seus propagadores ficam felizes com qualquer espaço que consigam ganhar – para quem não tinha nada, o que vier é lucro. No extremo oposto, como a situação anteriormente estabelecida era de verdade, empírica e factual, qualquer espaço que ela perca é uma perda verdadeira. O emprego sistemático dessa estratégia simples – impondo antíteses sucessivamente mais alucinadas às sínteses (tornadas teses) que se forem conquistando – é capaz de conduzir, com bastante eficácia, os rumos de uma sociedade para uma direção que ela, em princípio, não estaria jamais disposta a tomar.

Como se defender disso? A maneira mais civilizada e racional é, lógico, simplesmente não levar a sério a propositura de uma demanda desonesta. Idealmente, as escolhas deveriam ser feitas entre diversas opções razoáveis, e não entre uma opção razoável e um extremo cujo objetivo é unicamente conseguir um resultado que se afaste da opção razoável. Um pacato frequentador de prostíbulos pode parecer um anjo de delicadeza perto de Jack, o Estripador; não significa, contudo, que o primeiro possa ser eleito modelo de como os homens devem tratar as mulheres! Condenar um desafeto político a vinte anos de trabalhos forçados pode parecer uma solução perfeitamente adequada quando existe alguém exigindo, aos berros, que ele seja fuzilado e esquartejado; mas quem disse que o esquartejamento deveria ser considerado uma opção em primeiro lugar? Coisa análoga pode ser vista na Igreja: a ideia de sancionar – mediante a administração do Sacramento da Eucaristia – segundas núpcias adulterinas após determinado transcurso de tempo pode parecer bastante razoável diante da demanda pelo divórcio amplo e irrestrito aos moldes do que existe na legislação civil; ora, mas esta última proposta não está e nem pode estar em discussão e, portanto, ela não pode ser considerada na hora de decidir que “tratamento pastoral” dispensar aos casais de segunda união!

Ignorar as demandas desonestas só funciona, contudo, quando existe suficiente massa crítica para reconhecer, logo ao primeiro golpe de vista, a canalhice da proposta. Se não houver quem se levante – e arraste os demais após si – contra a simples ideia de esquartejar o oponente político e depois espalhar os seus pedaços retalhados ao longo das quatro entradas da cidade, então o infeliz terá sorte se conseguir um degredo perpétuo. O ponto aqui, note-se, é que as pessoas em princípio não estariam dispostas a exilar o pobre-coitado; no entanto, apresentadas ao quadro tétrico da cabeça degolada e hasteada na ponta de uma lança, tornam-se mais receptivas ao exílio que antes repudiariam com veemência. Diante da possibilidade da chacina brutal, a injustiça do degredo adquire contornos de misericórdia. Do mesmo modo, no âmbito eclesiástico: diante da possibilidade de louvar os méritos espirituais da união homossexual, a simples retirada das censuras à legislação civil que a equipare ao casamento parece a coisa mais razoável do mundo, uma vitória até. Oras, mas quem disse que o “casamento religioso gay” deveria ser sequer posto em consideração, antes de qualquer coisa?

Quando não é possível rechaçar certas propostas in limine, e quando existe verdadeiro risco de que “meios-termos” fraudulentos sejam conquistados, eu penso que há duas coisas que precisam ser feitas, e uma terceira que, dentro dos limites da prudência, pode ser realizada.

Primeiro, é preciso recusar-se à comparação maliciosa e insistir na análise das coisas consideradas em si mesmas: quer-se saber se a doutor Fulano, que vez por outra tem o hábito de frequentar casas de tolerância, pode ser concedido um prêmio de cidadão virtuoso, e não se ele é melhor do que o Estripador britânico. Quer-se saber se a imposição de degredo (ou trabalhos forçados) a um oponente político é uma pena razoável, e não se fazer isso é mais justo do que matar e esquartejar o réu. Quer-se saber, por fim, se é doutrinariamente possível ministrar o Corpo de Cristo a quem se sabe encontrar-se em estado de pecado mortal objetivo, e não se isso é menos escandaloso do que abolir a indissolubilidade matrimonial que Cristo instituiu.

Segundo, é preciso denunciar a má-fé de quem procede dessa maneira. É preciso dizer, com clareza, que as ideias de esquartejar o desafeto político, homenagear um assassino de prostitutas ou instituir o casamento religioso gay são completamente absurdas. É preciso denunciar que os que as propõem na verdade não querem que elas sejam aceitas, mas sim anestesiar a assembleia para fazer passar como menos absurdas outras propostas – o degredo, a exaltação do libertino, o silêncio diante da iniquidade civil – que, em situações normais, seriam prontamente rechaçadas.

Terceiro, em certas situações, penso que pode ser legítimo usar as próprias técnicas dos bárbaros e demandar em público propostas extremadas no sentido oposto – a fim de desempenhar o ignóbil papel de boi de piranha, permitindo ao bom senso que tenha alguma chance de sobreviver. Quer-se exilar o desafeto político? Acorram às ruas, exigindo que ele seja condecorado com uma pensão milionária vitalícia, por ter tido a coragem de lutar por aquilo em que acreditava! Deseja-se enaltecer o homem lúbrico? Exija-se veementemente a sua responsabilização penal, draconiana, pela corrupção dos costumes, pela exploração das mulheres, pela degeneração social que ele perpetua e fomenta! Almejam os pastores não se indispôr com os poderes seculares? Exija-se-lhes que bradem pública, vigorosa e ininterruptamente contra o nefando pecado contra a natureza que clama aos céus vingança, que organizem imensas procissões penitenciais suplicando a Deus misericórdia pelas horrendas ofensas dos sodomitas, que instem os homens públicos e as regiões à desobediência civil – ameaçando estas com o interdito e aqueles com a excomunhão!

Sabe-se que a Igreja de Cristo é dotada de infalibilidade; logo, temos a certeza – dada por Deus mesmo – de que Ela não há, jamais, de ensinar o erro no lugar da verdade. O horizonte da infalibilidade, contudo, é restrito: abarca as declarações sobre Fé e Moral feitas ex cathedra, e pronto (*). Na imensa maior parte da atuação que a Igreja exerce no mundo, portanto, existem amplos espaços para as coisas darem errado, para as decisões terem resultados desastrosos, para os homens não terem acesso ao Evangelho e Deus Nosso Senhor perder valiosas almas pelas quais Ele verteu o Seu precioso sangue. É nesta seara que os inimigos da Igreja têm conquistado admiráveis vitórias com técnicas como a que expus acima. São estes os territórios, portanto, onde precisamos lutar – sem descanso! – a fim de os reconquistar para Cristo.

[Na verdade, como lembrou aqui o Felipe – a quem agradeço -, para ser exato é preciso dizer que o objeto da infalibilidade inclui também as verdades conexas com as de Fé e Moral (v.g. conclusões teológicas, fatos dogmáticos, canonizações etc.); o seu sujeito é não somente o Papa mas também o conjunto dos bispos; e o seu modo de exercício inclui o ordinário além do extraordinário. Cf., p.ex., OTT, Ludwig, Tratado acerca de la Iglesia, Cap. IV, §13, in Manual de Teologia Dogmática. Delimitada assim com mais detalhes a esfera de abrangência da infalibilidade católica, enfatize-se que os “amplos espaços para as coisas darem errado” supracitados evidentemente não incluem aqueles nos quais a Igreja é de qualquer modo infalível.]

Bento XVI desautoriza o professor Ratzinger a respeito da comunhão dos divorciados

Há alguns meses, o Card. Kasper começou a fazer alvoroço em público com as suas teses a respeito da admissibilidade dos divorciados recasados à comunhão eucarística. Conhecemos a história: em um seu artigo publicado no início do ano, o prelado apresentava as suas idéias e coligia os fundamentos que julgava possível apresentar na defesa delas.

O passo do prelado, contudo, foi maior do que as suas pernas. Ele poderia ter somente defendido a sua posição particular nesta seara; para angariar maior força de persuasão, contudo, julgou preferível trazer para junto de si a opinião abalizada de um dos maiores teólogos da atualidade. Resolveu defender «la práctica de la tolerancia pastoral, de la clemencia y de la indulgencia» baseando-se em ninguém mais, ninguém menos do que Joseph Ratzinger.

À época, Kasper desenterrou um artigo publicado em 1972 pelo então prof. Ratzinger, e o apresentou aos seus leitores da seguinte maneira:

A Igreja dos primórdios dá-nos uma indicação que pode servir como caminho para escapar a este dilema, ao qual o professor Joseph Ratzinger já fez menção em 1972. […] Nas Igrejas locais havia um direito consuetudinário, de acordo com o qual os cristãos que viviam um segundo vínculo [matrimonial], mesmo que o primeiro cônjuge ainda estivesse vivo, depois de um tempo de penitência tinham à sua disposição […] não um segundo matrimônio, mas – através da participação da comunhão [eucarística] – uma tábua de salvação. […]

[…]

J. Ratzinger sugeriu [em 1972] retomar de maneira nova essa posição de [São] Basílio. Pareceria uma solução apropriada, solução esta que está na base das minhas reflexões.

As conclusões agora apresentadas por Kasper apoiavam-se, de fato, em um nome vultoso. A solução que ele ressuscitava agora tinha o inegável mérito de ter sido já defendida, na década de 70, pelo acadêmico Joseph Ratzinger. O arranjo fora muito bem preparado. Kasper só não contava com um pequeno detalhe: Bento XVI ainda estava vivo, lúcido e não gostou nem um pouco da maneira como o seu artigo (de há mais de quatro décadas) fora citado.

A honestidade intelectual é uma virtude delicada; ela exige que não utilizemos as palavras de terceiros de modo a apresentar um retrato do seu pensamento com o qual eles próprios não concordariam. E, após ter já publicado – enquanto cardeal e enquanto Papa – diversos trabalhos nos quais concluía a respeito da inadmissibilidade da comunhão eucarística aos recasados, Bento XVI não se reconheceu nos textos que escrevera no início dos anos 70, agora requentados para defender uma bandeira com a qual, em absoluto, o antigo Papa não concorda.

E a resposta veio nos últimos dias [p.s.: ver abaixo]: o Bispo Emérito de Roma republicou o seu artigo de 1972, com uma retractatio em sua parte final redigida agora em 2014, onde revisa a sua posição anterior. A atitude me surpreendeu por diversos motivos.

Primeiro porque tal não seria a rigor necessário, uma vez que a posição de Bento XVI a respeito do tema era já suficientemente clara a partir dos seus textos posteriores (entre os quais merece menção, para ficar somente em um exemplo, esta carta assinada de próprio punho pelo Card. Ratzinger em 1994). Mas parece que o acadêmico sentiu-se particularmente ofendido com a mera possibilidade de ter o seu nome associado às teses de Kasper e, portanto, julgou oportuno fazer a retratação.

Segundo porque penso que o fato é inédito. Não me recordo de nenhuma outra ocasião em que Bento XVI tenha rechaçado explicitamente as posições que assumira nos anos anteriores ao cardinalato e à presidência da Congregação para a Doutrina da Fé; pelo contrário, já o ouvi até dizer que foi a revista Concilium (de cuja fundação o jovem Ratzinger participou e que se consagrou mais tarde como um famoso veículo de doutrinas pouco católicas) quem mudou de orientação, e não ele próprio. O gesto abre um importante precedente (que era óbvio, mas a respeito do qual não se pode mais, agora, alegar dúvidas): não é possível transpôr acriticamente os antigos escritos do teólogo Ratzinger para os dias atuais, passando por cima dos debates teológicos que se travaram ao longo das últimas décadas e em cujo cerne o autor – primeiro como prefeito do Santo Ofício e, depois, como Papa – ocupou muitas vezes um lugar de indiscutível proeminência.

Terceiro, por fim, porque a decisão de Bento XVI coloca o seu conterrâneo em uma verdadeira saia justa. Rompendo o silêncio do seu pontificado emérito, ele desautoriza simultaneamente as teses de Kasper e os expedientes do qual este lançou mão para as fazer valer: tomando importante partido nesta importantíssima discussão contemporânea, não faltou quem dissesse que Bento XVI, agora, provoca uma reviravolta e passa a pautar o Sínodo da Família. Não me parece que tenha sido a atitude mais deferente do mundo; contudo, parece que estamos em uma daquelas situações em que se exige que a defesa categórica da Fé seja colocada acima da polidez política. Que seja bem-vindo o auxílio do Pontífice do passado.

[P.S.: Na verdade, a retratação não é assim tão recente e, portanto, não pode ser associada diretamente aos acontecimentos do Sínodo. Em uma entrevista publicada no último domingo (07/12) por um jornal alemão, «[o] jornalista lhe perguntou [a Bento XVI] se desta maneira [com a revisão do artigo] quis adotar uma postura no Sínodo dos Bispos sobre a família, recentemente celebrado no Vaticano, e o Papa emérito qualificou esta afirmação como sendo um absurdo total, já que não interveio nem quis intervir nas questões tratadas no sínodo extraordinário sobre a família e a revisão do volume foi feita antes do Sínodo». Deve ser lida assim, penso eu, como uma resposta aos ensaios de Kasper a respeito da comunhão dos divorciados recasados (feitos já no começo do ano), mas não diretamente ao dissenso cardinalício que se instaurou imediatamente antes e durante o Sínodo recém-encerrado.]

E isso sem falar da humildade necessária para se fazer assim, já no fim da vida, uma retratação pública de repercussão tão ampla: Bento XVI é realmente uma personalidade assombrosa, cuja envergadura intelectual não pode ser posta em dúvida. Nem tampouco a sua dedicação à Igreja…! Nem tampouco o amor à Verdade que o levou a grafar aquele Cooperatores Veritatis em seu brasão episcopal. Sim, há homens para os quais a Verdade está acima de sua imagem e prestígio pessoais. Que as novas gerações o aprendam deste ancião admirável.