A Jornada da Juventude Tridentina

Durante os dias da JMJ, a Antiga Sé do Rio de Janeiro ficou oficialmente sob os cuidados da Administração Apostólica São João Maria Vianney. A velha igreja se converteu, assim, em um cenáculo de espiritualidade católica tradicional, que pôde ser aproveitada pelos que lá passaram naqueles dias. Com missas diárias na Forma Extraordinária do Rito Romano (inclusive mais de uma ao mesmo tempo, nos altares laterais, como era costume antigamente) e catequeses ministradas por S. E. R. Dom Fernando Arêas Rifan, as atividades que lá se realizaram foram bastante proveitosas. E concorridas.

Pude estar presente em duas ocasiões. A primeira delas, na quarta-feira à noite, para participar do Pontifical que Dom Rifan celebrou. A igreja completamente abarrotada era uma coisa linda de se ver! Cheguei um pouco tarde e praticamente não havia mais espaço; inclusive um amigo desistiu de assisti-la ao ver como estava lotada a Antiga Sé. Entrando pelos corredores e salas internas, consegui sair lá na frente do lado esquerdo, próximo ao presbitério; a visão era péssima, mas havia lugar para ficar de pé e – principalmente – para ouvir com tranqüilidade.

Assisti ao Pontifical mesmo sem o ver. Participei do Santo Sacrifício sem contudo admirar os sinais externos tão ricos da cerimônia, castigado que fora por não ter chegado a tempo de conseguir um bom lugar. Mas foi espetacular mesmo assim. Não posso dizer que conheço em pormenores a celebração episcopal solene segundo os livros litúrgicos antigos: devo ter assistido somente a uns dois ou três pontificais na minha vida inteira. Naquela concorrida cerimônia da quarta-feira, contudo, aceitei contente que outras pessoas pudessem acompanhá-la com mais detalhes do que eu. Talvez tenha sido o primeiro Pontifical de alguém, e sabe-se lá quando aquelas pessoas terão a oportunidade de assistirem a outro novamente.

No dia seguinte eu voltei, e voltei de manhã cedo. Cheguei antes das nove, e Dom Rifan ainda não iniciara a sua catequese; tive tempo de encontrá-lo na sacristia e o cumprimentar. No interior da igreja, as músicas tradicionais animavam a multidão que já começava a se avolumar: provando que não é necessário fazer muito barulho para “acolher” a juventude, um órgão e um coral cantavam cânticos clássicos que eram alegremente acompanhados pelos que estavam presentes. Dessa vez, tendo chegado mais cedo, sentei mais confortavelmente num degrau que levava a uma capela lateral: os bancos já estavam todos ocupados.

Sua Excelência falou sobre o discipulado, explicando o étimo da palavra e dizendo que discípulos são aqueles que aprendem de alguém: a origem do termo é a mesma de “corpo discente”, o conjunto dos alunos de uma universidade. Um discípulo é portanto um aluno; um discípulo de Cristo, um aluno do Mestre. Vez por outra o bispo descia do presbitério para tocar alguma música no órgão, e era acompanhado animadamente e aplaudido com entusiasmo sempre que o fazia. Tudo acontecia em um clima suave e frutuoso: aqueles jovens recebiam doutrina sólida de uma forma leve, longe de ser cansativa.

Falando da SSma. Virgem, d’Aquela que soube aprender com perfeição do Seu Divino Filho, Dom Rifan nos instigava a recorrermos sempre à Sua maternal proteção. Guardei um ponto curioso da prédica. Lá pelas tantas, falando sobre a Virgindade Perpétua da Bem-Aventurada Virgem Maria, Sua Excelência lembrava que certas traduções antigas eram mais enfáticas sobre este assunto: elas, dizia ele, professavam a crença de que Cristo nascera “de Maria Virgem”, e isso era um pouco diferente (em ênfase, claro) de falar simplesmente que Ele nasceu “da Virgem Maria”. Porque a ordem das palavras às vezes importava. Afinal de contas, uma enxada cara era diferente de uma cara inchada. Escrito, o gracejo não tem o mesmo impacto de falado; mas dá para imaginar.

Meia hora antes da Missa, o senhor bispo franqueou a palavra aos presentes, abrindo uma sessão de perguntas e respostas. As perguntas, eram sobre assuntos os mais diversos, não necessariamente abordando o tema da catequese recém-findada. E perguntaram sobre a Missa e sobre interpretação bíblica, sobre a Presença Real de Cristo e sobre a possibilidade de se ser santo nos dias de hoje, sobre assuntos vários enfim. O bom bispo respondia com tranqüilidade: não era sempre possível proferir um tratado sobre aqueles temas, mas as sínteses que ele fazia eram preciosas. Penso que aqueles jovens devem ter saído satisfeitos. Não é sempre que os fiéis têm a oportunidade de interagir assim com o pastor.

Depois disso, a Santa Missa, dessa vez rezada: bem diferente do Pontifical da véspera, mas o mesmo Sacrifício de Cristo tornado presente de modo incruento sobre o altar. Findada a cerimônia, ainda me encontrei com Sua Excelência à porta da igreja, paramentado, cumprimentando os fiéis: despedi-me, agradecendo pela agradável manhã e dizendo-lhe não saber se conseguiria encontrá-lo ainda durante a Jornada.

De fato, não o encontrei mais, ocupado com o serviço de voluntário que a partir de então me deu pouca folga: mas aqueles dois dias foram muito bons. E quanto a tantas pessoas que puderam acompanhar com mais calma as atividades da Administração Apostólica na Antiga Sé do Rio de Janeiro… penso que devem ter sido muito edificadas. Rezo para que tenham sido.

Os que passaram naqueles dias por aquela velha igreja erigida em honra a Nossa Senhora do Carmo – nossa padroeira cá da Cidade do Recife – tiveram a oportunidade de presenciar atividades bem pouco usuais. Missas simultâneas, confissões, latim, órgão e coral, catequeses ministradas por um “bispo tridentino”, uma miríade de coisas antigas que muitos poderiam dizer já ultrapassadas, convivendo maravilhosa e harmoniosamente com os jovens peregrinos do século XXI que foram ao Rio de Janeiro para participar da Jornada Mundial da Juventude. Certas coisas antigas são sempre novas. Que aquela espiritualidade tradicional possa ter ajudado a alguns dos tantos – centenas! – de jovens que por lá passaram. Que a Santíssima Virgem do Carmo abençoe a cada peregrino que por lá passou naqueles dias. E que Ela olhe com maternal solicitude pela Administração Apostólica, por seu bispo, seu clero e seus fiéis. A todos os que dela fazem parte, nosso muito obrigado pela riqueza daqueles dias.

Miscelânea: Esquerda. Corrupção. Politicamente correto.

Três artigos muito oportunos e atuais.

– Cuidado com os pacatos!, escrito há mais de trinta anos. «Quero ser ainda mais concreto. Se a esquerda for açodada na efetivação das reivindicações “populares” e niveladoras com que subiu ao poder; – se se mostrar abespinhada e ácida ao receber as críticas da oposição; – se for persecutória através do mesquinho casuísmo legislativo, da picuinha administrativa ou da devastação policialesca dos adversários, o Brasil se sentirá frustrado na sua apetência de um regime “bon enfant” de uma vida distendida e despreocupada. Num primeiro momento, distanciar-se-á então da esquerda. Depois ficará ressentido. E, por fim, furioso. A esquerda terá perdido a partida da popularidade».

Abaixo a corrupção!, hoje publicado. «O Papa Francisco tem insistido sobre a diferença entre pecado e corrupção, entre o pecador e o corrupto. Segundo ele, pecadores somos todos nós, mas o corrupto é aquele que deu um passo a mais: perdeu a noção do bem e do mal. Já não tem mais o senso do pecado. Os corruptos fazem de si mesmos o único bem, o único sentido; negando-se a reconhecer a Deus, o sumo Bem, fazem para si um Deus especial: são Deus eles mesmos. O Papa lembrou que São Pedro foi pecador, mas não corrupto, ao passo que Judas, de pecador avarento, acabou na corrupção».

– Amestrando proletários, de ontem. Não trata diretamente de política e corrupção, mas fustiga o politicamente correto hoje hegemônico – também (e principalmente) nos nossos governantes. Recomendo muitíssimo uma leitura na íntegra, uma vez que é até difícil escolher um excerto para o ilustrar. Correndo o risco de ser injusto para com o artigo inteiro, arrisco-me por este: «A caricatura do “proletário” como um jumento apedeuta diz mais sobre as patrulhas politicamente corretas do que sobre o proletariado que elas julgam defender. […] O conhecimento verdadeiro não tem cor, sexo ou classe. E, quando tem, então não é conhecimento verdadeiro».

A verdadeira Igreja dos pobres

Estão particularmente excepcionais os dois últimos artigos de D. Fernando Rifan sobre a Igreja e os pobres. Valem uma leitura na íntegra; à guisa de destaque, trago os seguintes excertos:

1. A Igreja dos pobres: «Jesus, nascendo e vivendo pobre, não discrimina ninguém: no seu presépio vemos pobres e ricos, pastores e reis. Todos são bem-vindos ao berço do “príncipe da paz”. Com seu exemplo, ele prega a humildade e não a soberba, a caridade e não a inveja, o desapego e não a ambição, a paz e não a luta de classes. A desigualdade, quando não é injusta, é natural e normal, podendo ser suavizada e superada pela prática das virtudes cristãs. Amemos e consolemos os pobres, os preferidos de Deus, sem lançarmos no coração deles a amargura da inveja e ambição».

2. A riqueza dos pobres: «A riqueza dos pobres é a Igreja, sua rica doutrina e sua liturgia. As igrejas, os templos sagrados, são a casa dos pobres. Lá eles podem entrar sem serem impedidos. Lá eles podem se sentir bem, contemplar belas pinturas e arquiteturas, vasos sagrados, esplêndidas imagens, como não poderiam fazer em nenhuma outra casa ou palácio. Ali eles podem, pois é a casa deles. […] [O então cardeal Ratzinger assim se expressava sobre a beleza da Liturgia:] A riqueza litúrgica não é riqueza de uma casta sacerdotal; é riqueza de todos, também dos pobres, que, com efeito, a desejam e não se escandalizam absolutamente com ela. Toda a história da piedade popular mostra que mesmo os mais desprovidos sempre estiveram dispostos instintiva e espontaneamente a privar-se até mesmo do necessário, a fim de honrar, com a beleza, sem nenhuma avareza, ao seu Senhor e Deus».

Nestes nossos tempos em que uma certa retórica já putrefata de pauperismo teológico parece querer se aproveitar de algumas peculiaridades do Papa Francisco para se insidiar até mesmo em meios católicos, convém esconjurar o fantasma decrépito com a clareza da Doutrina da Igreja e a solidez da realidade dos fatos. Sim, é possível amar e defender os que nada têm sem excomungar os que têm alguma coisa; sim, é possível honrar a Deus com o que temos de melhor sem espezinhar os pobres e os pequeninos no caminho. Isto, aliás, é o Cristianismo de vinte séculos. A luta de classes tão tagarelada nos nossos dias é apenas uma excrescência pseudo-intelectual de cento e poucos anos para cá, é somente (mais) uma ideologia falida que perdeu o bonde da história e cujos asseclas parecem ter certa dificuldade patológica em compreender que já passou, e já vai tarde.

“O Conclave e a Crise” – Dom Fernando Rifan

[Às vésperas do conclave, reproduzo na íntegra este interessantíssimo artigo de D. Fernando Rifan que, sem menosprezar a gravidade da crise atual, ao menos nos revigora com uma lufada de esperança. A Barca de Pedro é sacudida e faz água no mar agitado deste mundo, sim; mas podemos ter a certeza de que o Senhor do mundo – e dono da Igreja! – é mais forte do que o mar revolto. Lembremo-nos de que Ele um dia fez com o que o mar e o vento se calassem a uma ordem Sua; e penso que deve ter desta vez mostrado visivelmente o poder da Sua palavra para que acreditássemos n’Ele quando, de outra vez, sem grandes milagres visíveis, Ele dissesse que as portas do Inferno não prevaleceriam sobre a Sua Igreja.

Amanhã começa o conclave. Rezemos pela Igreja de Deus!]

chamine-capela

O Conclave e a Crise

 A Igreja aqui na terra chama-se militante, quer dizer, continuamente em guerra, contra inimigos internos e externos, ou seja, “em crise”. Mas isso já há dois mil anos! A paz completa só será na Igreja triunfante do Céu, quando a “Barca de Pedro”, após passar pelas ondas do mar bravio desse mundo, chegar ao porto da salvação eterna.

“Para levantar a Igreja do estado de relaxamento e de confusão em que se encontram universalmente todos os níveis, nem toda a ciência e prudência humana conseguem remediar, mas é preciso o braço onipotente de Deus. Entre os bispos, poucos são os que têm verdadeiro zelo pelas almas. As comunidades religiosas, quase todas e mesmo sem o quase, estão relaxadas, porque nas congregações, na presente confusão das coisas, falta a observância e a obediência se perdeu. No clero secular as coisas estão piores e, por isso, faz-se necessária aí uma reforma geral para todos os eclesiásticos, de maneira a reparar a grande corrupção dos costumes, que existe entre os seculares”.

“Por isso é preciso rezar a Jesus Cristo que nos dê um Chefe da Igreja que, mais do que de doutrina e de prudência humana, seja dotado de espírito e de zelo pela honra de Deus, e seja totalmente alheio a qualquer partido e respeito humano, porque se, por nossa desgraça, acontecesse um Papa que não tem apenas a glória de Deus diante dos olhos, o Senhor pouco o assistirá e as coisas, como estão nas presentes circunstâncias, irão de mal a pior”.

“As orações podem trazer remédio a tanto mal, ao obter de Deus que ele mesmo ponha a sua mão e conserte… eu desejaria ver reformados tantos desarranjos presentes… Em primeiro lugar, gostaria que o próximo Papa escolhesse, entre aqueles que lhe serão propostos, os mais doutos e zelosos pelo bem da Igreja… Que se usasse diligência ao escolher os bispos (dos quais, principalmente, depende o culto divino e a salvação das almas), solicitando informações a mais pessoas sobre a sua vida digna e doutrina necessária para governar as dioceses. E que, também para aqueles que já estão em suas igrejas, se exigisse dos metropolitanos e de outros, secretamente, a informação sobre aqueles bispos que pouco atendem o bem de suas ovelhas… Sobretudo, desejaria que o Papa reconduzisse universalmente todos os religiosos à observância do seu primeiro Instituto, pelo menos nas coisas principais… Nada podemos fazer, a não ser rezar ao Senhor, que nos dê um Pastor pleno do seu espírito, que saiba estabelecer estas coisas que acenei brevemente, conforme for mais conveniente à glória de Jesus Cristo”.

Essas considerações acima foram feitas em 24 de outubro de 1774 e são trecho de uma carta de Santo Afonso Maria de Ligório ao Cardeal Castelli, que lhe havia solicitado observações sobre a eleição do novo Papa e os principais abusos que deveriam ser extirpados da Igreja, pretendendo o Cardeal levar a carta ao Conclave próximo. Essa descrição de Santo Afonso nos mostra que as crises na Igreja não são de agora. A “barca de Pedro” já venceu outras tempestades.

“Peçamos com insistência ao Senhor que nos ofereça um pastor segundo o seu Coração, um pastor que nos guie ao conhecimento de Cristo, ao seu amor, à verdadeira alegria” (Cardeal Joseph Ratzinger, na preparação para o Conclave de 2005).

O sentido da vida e o pecado contra o Espírito Santo

Albert Camus afirmou uma vez: “Há um só problema verdadeiramente sério e é … estabelecer se vale ou não a pena viver…”. O grande problema, o grande causador das neuroses e depressões, é o vazio existencial.

Dom Fernando Rifan, “O sentido da vida”.

Eu já cansei de citar Santo Agostinho com o seu “Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós”. Feciste nos ad Te, Domine, et inquietum est cor nostrum donec requiescat in Te. A sentença é d’As Confissões, obra que li há uns dez anos. Sempre conservei na memória, contudo, algumas passagens para mim assustadoramente marcantes dessa grande obra do Santo de Hipona.

Uma delas é essa frase a respeito do “vazio existencial” que existe no homem. Santo Agostinho escreveu-a em sua forma lapidar: Deus nos criou para Ele e, portanto, a nossa existência não está ainda tranqüila enquanto não Lhe estamos devotados integralmente. Falta-nos algo; ou melhor dizendo, falta-nos Alguém. Nos círculos da Renovação Carismática falava-se exatamente a mesma coisa, só que com outras palavras: no nosso coração existe um buraco infinito que só Deus, Infinito, é capaz de preencher. Enquanto Ele não o faz – ou, melhor dizendo, enquanto nós não O deixamos fazer -, a sensação de vazio interior é inevitável.

A menos, claro, que alguém tente enganar-se a si mesmo; esta, no meu entender, é a principal razão do crescimento do proselitismo ateu nos dias de hoje. A fanática sanha “apologética” dos Arautos da Irreligião sempre se me afigurou como uma tentativa desesperada de auto-negação, um mecanismo psicológico que leva os descrentes a tentarem sufocar a voz da própria consciência por meio da repetição frenética e desesperada, quase que em caricata oração, de um único versículo bíblico com a exclusão de todos os outros: non est Deus.

E volto às Confissões, com uma segunda passagem que eu nunca esqueci mesmo após todos esses anos: “Senti e experimentei não ser para saber que o pão, amável ao paladar sadio, é repugnante ao doente, e a luz, adorável aos olhos sãos, é odiosa aos [olhos] enfermos”. Perdoem-me qualquer imprecisão, pois cito tudo de memória. Mas se aplica perfeitamente: os que não querem que Deus exista (não lembro agora quem foi que disse que ninguém jamais falou “Deus não existe” sem ter antes desejado secretamente que Ele não existisse…) assustam-se com a mera possibilidade de dúvida acerca da Sua existência, fogem das evidências que apontam para Ele com a mesma devotada repugnância com que um estômago doente põe para fora o alimento que lhe seria salutar.

Há pecados que não têm perdão, os famosos “pecados contra o Espírito Santo” que a tradição católica enumerou e explicitou. Explica a Igreja que eles não são propriamente pecados imperdoáveis, mas sim aqueles pecados que, por sua própria natureza, repelem o perdão divino. Um deles é exatamente a negação da Verdade conhecida como tal: trata-se, p.ex., exatamente do orgulho de recusar-se a enxergar que Deus existe ou a achegar-se-Lhe suplicando a misericórdia da qual o homem tem a mais absoluta necessidade. O perdão de Deus é graça gratuita, claro está, mas não é exatamente um dom “incondicional”. Como tudo que está sob o império da economia da salvação, o perdão divino está condicionado ao livre-arbítrio humano, que precisa desejá-lo como conditio sine qua non para o receber.

Mas o orgulho é próprio da natureza humana decaída, e este vício – mormente o intelectual – é difícil de ser arrancado uma vez que finca as suas raízes no coração. Se o paladar enfermo rejeita o remédio, o que se pode fazer? Se a Anti-Fé atéia postula como o mais inquestionável dos dogmas que não há Deus, como aqueles que tiveram a infelicidade de abraçá-la um dia poderão se libertar de suas garras se não podem sequer suplicar ao Deus no Qual não crêem que Se digne conceder-lhes o dom da Fé?

A situação é sem dúvidas terrível, e é justamente por isso que ela mereceu ser chamada de “Pecado contra o Espírito Santo”, aquele que não será perdoado nem neste século e nem no vindouro: não, repitamos, porque não possa absolutamente ser perdoado, mas porque – na expressão do Catecismo Romano que cito também de memória – “só a muito custo se lhe obtém o perdão”, uma vez que este pecado específico (ao contrário de outros) fecha deliberadamente as portas do coração humano à ação santificante de Deus.

Convém, contudo, que não nos desesperemos. Na nossa recitação diária do Santo Rosário, nós acrescentamos a jaculatória de Fátima e pedimos que o bom Jesus possa socorrer “principalmente aqueles que mais precisarem”. “Da Vossa misericórdia”, em alguns lugares se costuma acrescentar. E a força de tantas orações pode aproveitar aos nossos queridos irmãos que não têm Fé; não nos esqueçamos de que Deus concede a todos os homens graças suficientes para que se salvem, e os misteriosos caminhos da liberdade humana são tais que, em princípio, até o último suspiro um homem pode decidir voltar-se para Deus. Rezemos, portanto, por aqueles que não querem ou não podem rezar por si próprios! Ó Deus, pedimo-Vos “por aqueles que não crêem, não adoram, não esperam e não Vos amam”. Orações são umas das pouquíssimas coisas (senão as únicas) das quais se pode com a mais absoluta certeza dizer que não são em vão.

Porque a apologética é sem dúvidas necessária, mas muito mais necessária é a oração, esta que é a alma de todo apostolado. A decisão de crer é uma decisão pessoal e interior, que pode perfeitamente (permita-o Deus!) ser ensejada à força de nossos arrazoados, mas que ninguém é capaz de produzir em si ou em outrem por virtude própria. São importantíssimas as discussões sobre Deus, sem dúvidas, mas o acumulado de todas elas levadas a cabo ao longo dos séculos pelas mais brilhantes mentes que já passaram pela Terra não é capaz, por si mesmo, de produzir a virtude da Fé em uma única alma. Mais do que ser convencido acerca de Deus, o homem precisa crer. E termino com uma terceira lembrança d’As Confissões que sempre me acompanhou ao longo dos anos, e que resume perfeitamente isto que estou querendo dizer, de um modo até muito melhor do que eu próprio consigo: “prefira [o homem] encontrar a Deus sem O conhecer a, conhecendo-O, não O encontrar”. Que Santo Agostinho possa rogar por todos nós.

Abertura do Ano da Fé

A Fé é aquela virtude teologal pela qual o indivíduo humano, movido pela graça divina, presta a adesão do seu intelecto e da sua vontade às verdades reveladas por Deus e propostas pela Igreja. A definição é talvez a mais clássica possível; no entanto, longe de se encontrar desgastada pelo uso ao longo dos séculos, reveste-se de uma – imperecível! – luminosa vitalidade também nos dias de hoje, somente à luz da qual o homem dos tempos modernos pode encontrar a Deus e, encontrando-O, descobrir o verdadeiro sentido da sua existência e realizar plenamente a sua vocação nesta terra.

Vivemos em uma terrível crise de Fé: imagino que ninguém o ignore. No entanto, o que eu percebo que muitas vezes se ignora é o significado mais profundo desta crise. Muitas vezes costuma-se percebê-la como a simples falta de clareza na expressão do Dogma católico, não raro com injustas e pouco reverentes acusações aos Legítimos Pastores da Igreja – o Sumo Pontífice em particular – e ao próprio Magistério Católico recente. Isto, no entanto, é perder de vista o essencial. Sem (absolutamente!) desprezar o valor das formulações dogmáticas históricas, é preciso ter sempre em mente que o Depositum Fidei não se confunde com elas. A Fé pressupõe esta colaboração entre dois elementos: por um lado o dogma católico (mediante a sua formulação) e, pelo outro, a razão humana que livremente lhe presta assentimento. Tenho a impressão de que hoje muitas vezes se insiste em demasia nas deficiências da formulação dogmática, sem no entanto prestar atenção à malícia humana que, por conta do pecado, insiste em rejeitar o conteúdo da Fé.

A mais perfeita e cristalina exposição da Doutrina Católica não seria capaz de, sozinha, produzir nas almas a virtude da Fé: este é um fato incontestável que decorre imediatamente da própria definição de “Fé” como resposta livre e pessoal ao Deus que Se revela e que convida a crer. Temos problemas com a exposição sistemática da Fé Católica? Sem dúvidas que sim! No entanto, temos também o problema – no meu entender ainda mais grave do que o anterior – de uma humanidade orgulhosa e fechada à transcendência, sem interesse algum pelo dogma católico (bem ou mal formulado).

Hoje é a abertura do Ano da Fé. Sem dúvida, e isto provavelmente nunca será repetido tanto quanto necessário, é preciso insistir na clareza da exposição da Fé (acessível aos homens e livre de erros ou interpretações equivocadas); mas é também da mais alta importância cultivar a “sede de Deus” dos homens, aquela santa inquietação da qual Santo Agostinho fala tão maravilhosamente ao dizer que o coração dos homens – criados para Deus! – vive inquieto enquanto não repousa n’Ele. Hoje, os erros em matéria religiosa são muito mais básicos do que o foram historicamente: enquanto uma heresia é uma opção visceral – ex imo cordis – por uma doutrina errônea, o relativismo dos dias modernos é a negação da própria necessidade de se aderir a qualquer doutrina, errônea ou não. Um herege ao menos entende a importância de se crer em alguma coisa, e erra somente quanto ao objeto da sua crença; muitos dos homens de hoje em dia, ao contrário, não têm sequer este sentido da importância de crer em algo. É por isso que, para estes, debruçar-se sobre o conteúdo específico e detalhado da Fé é não apenas inútil como também maçante. Há, hoje em dia, a exigência de um trabalho (geralmente árduo e demorado) de, antes de dizer aos homens no que eles devem ter Fé, convencê-los simplesmente de que eles devem crer. É por isso que a questão da clareza do dogma é somente uma parte do problema atual: de nada adianta expôr perfeitamente uma doutrina a quem não se convenceu ainda de que precisa de uma. Ambas as questões merecem a nossa atenção.

No dia de hoje, vale ainda fazer referência a quatros textos que, embora bem diferentes entre si, guardam estreita relação com este Annus Fidei que hoje se inicia. São eles:

1. O motu proprio Porta Fidei, com o qual se proclama o Ano da Fé: «Como se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a vontade a quanto é proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico revelado por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se acredita, se aceita livremente todo o mistério da fé, porque o garante da sua verdade é o próprio Deus, que Se revela e permite conhecer o seu mistério de amor».

2. Este texto inédito de Bento XVI por ocasião do 50° aniversário do Concílio Vaticano II: «Os Padres conciliares não podiam nem queriam criar uma Igreja nova, diversa. Não tinham o mandato nem o encargo para o fazer: eram Padres do Concílio com uma voz e um direito de decisão só enquanto bispos, quer dizer em virtude do sacramento e na Igreja sacramental. Então não podiam nem queriam criar uma fé diversa ou uma Igreja nova, mas compreendê-las a ambas de modo mais profundo e, consequentemente, «renová-las» de verdade. Por isso, uma hermenêutica da ruptura é absurda, contrária ao espírito e à vontade dos Padres conciliares».

3. A homilia do Santo Padre na Missa de hoje da abertura do Ano da Fé: «É por isso que repetidamente tenho insistido na necessidade de retornar, por assim dizer, à «letra» do Concílio – ou seja, aos seus textos – para também encontrar o seu verdadeiro espírito; e tenho repetido que neles se encontra a verdadeira herança do Concílio Vaticano II. A referência aos documentos protege dos extremos tanto de nostalgias anacrônicas como de avanços excessivos, permitindo captar a novidade na continuidade. O Concílio não excogitou nada de novo em matéria de fé, nem quis substituir aquilo que existia antes. Pelo contrário, preocupou-se em fazer com que a mesma fé continue a ser vivida no presente, continue a ser uma fé viva em um mundo em mudança».

4. Este texto de Dom Fernando Rifan chamado “A Fé em perigo”. «Quando estava em Roma, no ano 2001, assisti admirado, na Praça de São Pedro, à chegada de milhares de fiéis do movimento Kolping, vindos da Alemanha, sobretudo homens, cantando com entusiasmo contagiante. Comentei então com um Cardeal alemão que estava ao meu lado: “Diante disso, Eminência, não se pode dizer que a Alemanha não seja um país católico!” Ele, porém, observou, acalmando um pouco o meu entusiasmo: “É, mas a Fé sempre corre perigo!”. Era o Cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé».

E que a Virgem Santíssima, Mãe de Deus e da Igreja, conceda-nos muitas graças ao longo deste ano que hoje se inicia. Que Ela nos faça crescer sempre em estatura, sabedoria e graça diante do Seu Divino Filho.

“Fé – Amor – Reparação” – D. Fernando Rifan

[Oportuníssimo o artigo semanal de D. Fernando Rifan, que reproduzo na íntegra abaixo, e que vem a lume no momento propício para reparar o estrago causado por certos divulgadores de opiniões heréticas cujas idéias costumam aparecer com mais destaque principalmente nos momentos em que é mais importante voltar-se para Deus. Afundar o mal na superabundância do bem é algo sábio; e depois de ter precisado descascar ontem as bobagens do sr. José Lisboa, poder oferecer aos meus leitores um pouco de catequese positiva a respeito da festa de Corpus Christi apresenta-se como um valoroso refrigério. Bendito seja Deus no Santíssimo Sacramento do Altar.]

FÉ – AMOR – REPARAÇÃO

 Dom Fernando Arêas Rifan*

Amanhã celebraremos com toda a Igreja a solene festa do Corpo de Deus, ou Corpus Christi, solenidade em honra do Corpo de Cristo, presente na Santíssima Eucaristia.

Por que tal festa? “Augustíssimo sacramento é a Santíssima Eucaristia, na qual se contém, se oferece e se recebe o próprio Cristo Senhor e pela qual continuamente vive e cresce a Igreja. O Sacrifício Eucarístico, memorial da morte e ressurreição do Senhor, em que se perpetua pelos séculos o Sacrifício da cruz, é o ápice e a fonte de todo o culto e da vida cristã, por ele é significada e se realiza a unidade do povo de Deus, e se completa a construção do Corpo de Cristo. Os outros sacramentos e todas as obras de apostolado da Igreja se relacionam intimamente com a santíssima Eucaristia e a ela se ordenam” (Direito Canônico cân. 897).

O mesmo nos ensina o Catecismo da Igreja Católica: “A Eucaristia é o coração e o ápice da vida da Igreja, pois nela Cristo associa sua Igreja e todos os seus membros a seu sacrifício de louvor e ação de graças oferecido uma vez por todas na cruz a seu Pai; por seu sacrifício ele derrama as graças da salvação sobre o seu corpo, que é a Igreja. A Eucaristia é o memorial da páscoa de Cristo: isto é, da obra da salvação realizada pela Vida, Morte e Ressurreição de Cristo, obra esta tornada presente pela ação litúrgica. Enquanto sacrifício, a Eucaristia é também oferecida em reparação dos pecados dos vivos e dos defuntos, e para obter de Deus benefícios espirituais ou temporais” (nn.1407, 1409 e 1414).

Esse tesouro de valor incalculável, a Santíssima Eucaristia, centro e o ponto culminante da vida da Igreja Católica, foi instituído por Jesus na Última Ceia, na Quinta-feira Santa. Mas, então, a Igreja estava ocupada com as dores da Paixão de Cristo e não podia dar largas à sua alegria por tão augusto testamento. Por isso, na primeira quinta-feira livre depois do tempo pascal, ou seja, amanhã, a Igreja festeja com toda a solenidade, com Missa e procissão solenes, Jesus Cristo, vivo e ressuscitado, presente sob as espécies de pão e vinho, na Hóstia Consagrada. Esta festa tem a finalidade de expressarmos publicamente a nossa e adoração para com Jesus Eucarístico e, ao mesmo tempo, nossa reparação pelos ultrajes, sacrilégios, profanações, e, até também, pelos abusos litúrgicos que infelizmente acontecem com relação à Santíssima Eucaristia.

O Papa João Paulo II, na sua Encíclica “Ecclesia de Eucharistia”, já nos advertia contra os “abusos que contribuem para obscurecer a reta fé e a doutrina católica acerca deste admirável sacramento” e lastimava que se tivesse reduzido a compreensão do mistério eucarístico, despojando-o do seu aspecto de sacrifício para ressaltar só o aspecto de encontro fraterno ao redor da mesa, concluindo: “A Eucaristia é um dom demasiado grande para suportar ambigüidades e reduções”.

Nessa festa de Corpus Christi, demonstremos, pois, a importância da Eucaristia na Igreja e a nossa fé, adoração, respeito, reparação e amor por Jesus Eucarístico.

 

*Bispo da Administração Apostólica
Pessoal São João Maria Vianney