Visões sobre o aborto: a mesquinhez e a nobreza

Está muito pertinente a nota do “Brasil Sem Aborto” a respeito das propostas anti-vida do novo Código Penal. A denúncia que este texto faz é verdadeira e merece a nossa atenção: o projeto contém inúmeros pontos polêmicos – que, aliás, são taxativamente reprovados pela esmagadora maior parte da população brasileira – e está sendo conduzido a toque de caixa pelos nossos parlamentares, em uma tentativa de passar um verniz de legitimidade sobre a imposição de uma ideologia minoritária e estranha ao nosso povo e que, pelo conteúdo e pela forma, configura-se um verdadeiro atentado à democracia do Brasil.

Pelo conteúdo, uma vez que (como explicou de forma magistral o delegado de polícia Rafael Brodbeck na semana passada) muitas das propostas que ele contém estão longe de corresponder aos anseios da população brasileira: trata-se de «um Código ideológico, escrito por intelectuais em desconexão com a realidade brasileira e que não representam as mais profundas aspirações do nosso povo». Pela forma, porque (como disse a supracitada nota do Brasil Sem Aborto) está sendo realizado às escondidas e no apagar das luzes, conduzindo mudanças radicais em uma legislação importante de nosso ordenamento jurídico sem um debate público proporcionado: «Surpreende o fato do Presidente do Senado Federal, ainda que dentro de suas prerrogativas constitucionais e regimentais, apressar-se em transformar o polêmico ante-projeto em projeto de lei às vésperas do início do recesso parlamentar. Surpreende também que essa apresentação contrarie informação anteriormente divulgada, de que o ante-projeto seria analisado por uma sub-comissão da CCJ, presidida pelo senador Eunício Oliveira, antes de se transformar em projeto de lei».

Na contramão desta desastrosa tentativa política de implantar a vergonha abortista no país, é um refrigério ler esta notícia que o Estadão publicou no início do mês sobre uma mãe – brasileira! – que decidiu manter a gravidez apesar do câncer de mama. A história é emocionante:

Simone morava no Canadá quando recebeu o diagnóstico da gravidez praticamente ao mesmo tempo que o de câncer de mama. Para poder levar a gestação adiante, teve de comprar uma briga com médicos e recusar o protocolo de tratamento indicado, que preconizava o aborto terapêutico. O parto ocorreu junto com a mastectomia.

Não estamos falando de uma mãe superanimada com uma gravidez planejada e tranqüila, muito pelo contrário: foi uma gravidez inesperada (ela estava tomando anticoncepcionais) e de altíssimo risco para ela própria e para o bebê, uma vez que havia um câncer em estado avançado que, segundo os seus médicos, se agravava ainda mais por conta da gravidez. Ela não teve apoio médico algum para a sua tentativa de salvar a filha: ao contrário, os médicos se recusaram a lhe tratar se ela não abortasse (!). E ela estava em um dos melhores hospitais do Canadá, o que acabou com as suas esperanças de encontrar no país alguém que quisesse cuidar dela.

Ou seja, nós estamos falando de uma mulher gravemente doente, longe de casa, carregando no ventre um filho que não havia planejado e que lhe diziam estar piorando a sua doença, a qual se recusavam a tratar enquanto ela não consentisse no sacrifício da criança! É difícil até mesmo imaginar uma situação mais dramática do que essa. No entanto, ela procurou um médico na internet e pegou um vôo de volta para o Brasil, onde encontrou quem estivesse disposto a respeitar sua vontade e a tratar tanto a ela própria quanto ao seu filho por nascer.

Melissa nasceu saudável às 36 semanas de gestação. A mãe perdeu uma mama e vai precisar passar ainda por diversas sessões de quimioterapia, mas passa bem.

“O mais difícil já passou. A Melissa é um milagre, uma promessa que se cumpriu”, diz Simone, que atribui o milagre da vida da filha ao “anjo Waldemir Rezende”. Agora ela só tem três desejos: poder pegar a bebê no colo todos os dias, fazer sua mamadeira e trocar sua fralda. Como qualquer mãe.

Diante de uma história dessas, como defender – como pretendem os abortistas de todos os naipes – que uma mãe possa matar o seu filho ao próprio alvitre? Como consentir nesta covarde fuga ao sofrimento e à responsabilidade materna? O ser humano foi feito para as coisas elevadas e nobres, e não para a mesquinharia. Nobre é não fugir das próprias responsabilidades, ainda que isto signifique colocar a própria vida em risco: a enorme repercussão positiva que teve a notícia acima dá testemunho de que – como era de se esperar – as pessoas admiram a nobreza, dão valor ao heroísmo. Ora, são dignos de proteção exatamente os valores, e não os anti-valores; merecem ser promovidas as coisas que são admiráveis, e não o seu contrário. E é exatamente por isso que a vilania e a mesquinhez não podem receber proteção legal positiva, não podem ser consideradas um “direito” e não se pode desviar recursos públicos para que elas sejam exercidas. A vida é sagrada e é dever de todos e de cada um protegê-la. Naturalmente, não significa que isto seja fácil; mas significa, sim, que é a coisa certa a ser feita.

Isto é amar, isto é ser mãe!

Eu vi esta notícia há um mês atrás e tinha deixado para comentar depois. O tempo foi passando e, hoje, sábado véspera do Dia das Mães, parece-me uma ocasião propícia. É a história de uma garota inglesa que resolveu adiar o próprio tratamento contra câncer porque estava grávida e queria salvar a vida da filha; e, depois que a menina nasceu, ela descobriu que não tinha mais cura.

O bebê nasceu saudável com 27 semanas (um pouco mais de 6 meses) de gestação, por cesárea, pesando 900 gramas. Mas Sarah foi informada de que não tinha muito tempo de vida. O câncer já havia se espalhado para o pâncreas, pulmões, pescoço e tomado conta dos intestinos.

O nome da mãe é Sarah Brook; o da filha, Polly Jean. A história adquire contornos de particular heroísmo quando é situada no século em que vivemos: num mundo onde o egoísmo se disseminou de tal maneira que é visto como a norma do comportamento socialmente aceitável.

Lembro-me de que a primeira vez em que contei a história de Santa Gianna para uma amiga, a primeira reação dela foi a de espanto. “Mas como assim, ela só fez dar a vida pelo seu filho? Qualquer mãe faria isso!”. E eu até concordo que qualquer mãe deveria fazer isto, mas tal não é infelizmente a regra nos tempos que hoje correm. E é exatamente por isso que provoca admiração a história de Sarah.

Vejam, a rigor ninguém está mesmo obrigado a se deixar morrer em favor de ninguém. O “primeiro próximo” que estamos obrigados a amar somos nós mesmos, pois ensina Santo Tomás que ninguém é mais próximo do homem do que ele próprio. Antes de qualquer coisa nós estamos obrigados a cuidar da nossa própria vida, uma vez que ela é o nosso bem maior e a manutenção dela é condição necessária para a realização de quaisquer outras obras meritórias. Assim, a rigor ninguém está obrigado a morrer nem mesmo por um filho: um tratamento de câncer durante a gravidez é um caso clássico de causa com duplo efeito e, portanto, é perfeitamente legítimo, ainda que isto acarrete a morte do bebê que se carrega no ventre. Mas eu não consigo nem imaginar como seria estar na pele de uma mulher nesta situação.

No meu Facebook eu encontro uma frase atribuída a Chesterton; eu detesto essas imagens do FB que têm somente uma foto ou uma pintura, uma frase entre aspas e um genérico “fulano de tal”, sem referência, sem nada. Mas neste caso serve para exemplificar o que estou falando, porque o dito é bem verdadeiro independente do autor. A frase é “você não pode amar uma coisa sem querer lutar por ela”. E penso como não deve ser terrível para uma mãe pensar que, talvez, não tenha lutado o suficiente por sua prole… É uma situação difícil! Em um caso mais ou menos análogo, um pai que chegasse em casa e encontrasse sua família vítima de um marginal armado também não teria, a rigor, a obrigação moral de se atracar com o meliante para salvar os seus. Mas me provoca arrepios imaginar como seriam os restos dos dias deste pai, caso ele sobrevivesse sem haver tentado reagir ao assassino.

Se não é possível amar uma coisa sem querer lutar por ela, portanto, nossas mais sinceras homenagens à britânica que não apenas quis lutar como de fato lutou – e lutou até a morte! – pela vida de sua pequena filha. Isto é amar, isto é ser mãe. E se é verdade que toda mãe verdadeira tem ao menos esta disposição in voto de consumir-se pelos seus filhos, é belíssimo quando nós a encontramos realizada concretamente em um caso extremo que, justamente por ser extremo, é de uma admirável eloqüência. No dia de hoje, nós queremos saudar a todas as mães que participam, pelo fato mesmo de serem mães, desta grandiosa missão e desta sublime vocação expressas de maneira tão magnífica nesta história de sacrifício. Quando à Sarah Brook, eu não sei o que aconteceu com ela (já faz um mês da notícia); se ela já tiver partido para as Moradas Celestes, que seja lá recebida com glória. E, onde quer que ela se encontre, que receba as justas homenagens pelo dia de amanhã. Que o exemplo dela possa despertar – ou fazer florescer – este instinto materno nas mães de que o mundo de hoje precisa.

Pe. Lodi em Recife

O pe. Lodi esteve hoje em Recife, no Círculo Católico, para dar uma interessantíssima palestra sobre aborto, princípios morais básicos e ordenamento jurídico brasileiro. Lamento só ter estado presente à tarde – mas mesmo assim foi bastante proveitoso.

Abaixo é uma gravação não-autorizada (feita com celular e excessivamente baixa, mas acho que dá pra escutar) da palestra de hoje à tarde, começando “pela metade”; antes disso, o padre falara um pouco sobre a causa com duplo efeito, diferenciando-a do meio mau para a obtenção de um fim bom. Esta é, em resumo, a diferença entre matar um inocente para que desta morte decorra um fim bom e praticar um ato do qual decorram, simultaneamente, a morte do inocente e também um efeito bom. É a diferença, grossíssimo modo, entre desviar um trem desgovernado para um trilho sobre o qual encontra-se uma pessoa e jogar uma pessoa na frente de um trem desgovernado para pará-lo. A partir daqui, creio ser possível acompanhar o raciocínio do padre.

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Amanhã (domingo, 19 de junho) tem mais, às 09h00, no mesmo Círculo Católico.

Padre Lodi sobre gravidez ectópica

Alguém deve ter levado para o pe. Lodi a questão da gravidez ectópica que foi discutida aqui recentemente. O reverendíssimo sacerdote escreveu um texto específico sobre o assunto, cuja leitura recomendo vivamente, porque tem muito a ver com as questões morais que tratávamos aqui.

O pe. Lodi, no meu entender, adota integralmente a tese de Del Greco, segundo a qual não é lícito interromper a gravidez ectópica. O duplo-efeito que o presidente do Pró-Vida de Anápolis identifica provavelmente seria também admitido pelo autor do reconhecido Compêndio de Teologia Moral. Cito o texto do padre Lodi:

Quando a gravidez evolui até a ruptura da trompa, é preciso intervir imediatamente para estancar a hemorragia. Somente uma hemorragia em ato justifica a remoção da tuba. Muitas vezes, em tal ocasião, o bebê já morreu. Se, porém, ele não [morreu e] ainda estiver vivo, sua morte não será causada diretamente pela cirurgia.

Curiosamente, quanto à quaestio disputata de se é lícito remover a trompa com o feto ainda vivo, o pe. Lodi conclui o contrário do que foi dito pelo padre da FSSPX que foi aqui citado. O padre Peter R. Scott diz que, dado que há opiniões tanto contra quanto a favor da moralidade da remoção cirúrgica da gravidez ectópica com o feto ainda vivo, qualquer uma das duas opções pode ser seguida em consciência. Já o padre Lodi, do fato mesmo de não haver consenso, diz o contrário:

Quando se está diante do direito certo de inocente à vida, como é o caso da gravidez ectópica, não se pode seguir uma opinião apenas provável, mas não segura: “o caçador não pode disparar quando duvida se o objeto percebido ao longe é homem ou animal selvagem”. Os únicos procedimentos que seguramente não são diretamente abortivos são a conversão tubário-uterina e a expectação armada.

Não é preciso demonstrar que a tese de Bouscaren é falsa. Basta admitir que ela é insegura, conforme demonstramos, para que não se possa segui-la.

P.S.: Encontrei uma verdadeira pérola: a dissertação de mestrado do pe. Lodi cujo título é, precisamente, “O princípio da ação com duplo efeito e sua aplicação à gravidez ectópica”. 88 páginas. Cito, aliás, um trecho que encerra o debate travado no outro post sobre o aborto como meio para salvar a vida da mãe:

O novo arcebispo de Cambrai resolveu enviar ao Santo Ofício uma nova questão: um médico, sob o pseudônimo de Tício, perguntava se era lícito praticar aborto quando a presença do feto no útero materno fosse causa de uma enfermidade mortal para a gestante e quando não houvesse outro meio — a não ser a expulsão do feto — para salvar a mãe de uma morte certa e iminente. Em sua pergunta, Tício tentou justificar-se dizendo que costumava empregar meios e operações que não eram por si e imediatamente tendentes a matar o feto no útero materno [mediis et operationibus, per se atque immediate non quidem ad id tendentibus, ut in materno sinu fetum occidere], mas tendentes a removê-lo de lá vivo, se possível, ainda que logo depois ele morresse por causa de sua imaturidade.

Note-se que Tício não praticava a craniotomia, prática esta diretamente ocisiva. Ele apenas acelerava o parto, embora soubesse que tal aceleração conduziria inevitavelmente à morte da criança. Seria possível em tal caso aplicar-se o princípio da ação com duplo efeito?

A resposta do Santo Ofício, de 24 de junho de 1895, foi negativa, fazendo referência a dois outros decretos: o de 28 de março de 1884 e o de 19 de agosto de 1888, ambos relativos à craniotomia.

Ou seja, segundo o Magistério da Igreja, é diretamente ocisiva não só a destruição do bebê no seio materno, mas também a sua expulsão prematura, pela qual ele morrerá. Não se pode falar aqui de um efeito indireto, como pretendia Tício.

(Pe. Lodi, op. cit., pp. 36-37)