Pode-se deixar de lado a verdade histórica?

O texto-base da Semana de Oração para a Unidade dos Cristãos deste ano provocou estranheza ao dizer, entre outras coisas, que Martinho Lutero — o reformador protestante — seria uma «testemunha do Evangelho». Literalmente, o documento fala logo no início:

Deixando à parte o que é polêmico, nas visões teológicas da Reforma, católicos agora são capazes de ouvir o desafio de Lutero para a Igreja de hoje, reconhecendo-o como uma “testemunha do evangelho” (Do Conflito à Comunhão 29).

Infelizmente, a referida «semana de oração» presta-se muitas vezes ao mesmo papel que, no Brasil, a CNBB desempenha com a sua Campanha da Fraternidade: obscurecer a mensagem do Evangelho com um discurso anódino cujo objetivo maior é quase sempre afirmar lugares-comuns. Porque, ora, «deixando à parte o que é polêmico» pode-se afirmar qualquer coisa, é lógico. Afinal de contas, sempre e por definição, tirando tudo o que está ruim tudo está sempre muito bem e não há como ser diferente. À parte tudo o que tem de errado a Reforma Protestante só tem coisas corretas, e o mesmo se pode dizer de absolutamente qualquer coisa na face da terra.

O problema é que «deixando à parte o que é polêmico» nós estaremos deixando de lado o próprio protestantismo, exatamente naquilo que o faz ser o que é, no que o distingue do Catolicismo. Deixando de lado o fato de que Lutero, falsificando o Evangelho, levou milhões de almas à perdição nos séculos seguintes, então se pode dizer, é claro, que ele tenha sido «testemunha» da mensagem cristã. Mas a pergunta que interessa aqui é: pode-se deixar de lado, desse jeito, a verdade histórica?

Porque quando a comissão conjunta atribui a Lutero o pomposo “título” de «witness to the Gospel» o que ela está fazendo é exatamente isto: valorizando as (supostas) intenções do monge atormentado e desculpando-lhe as atrocidades pelas quais ele passou à história. É rigorosamente o que se diz no «Do conflito à comunhão» (p. 22):

29. Aproximações implícitas com as preocupações de Lutero levaram a uma nova avaliação de sua catolicidade que teve lugar no contexto do reconhecimento de que sua intenção era reformar, não dividir a Igreja. Isso é evidente nos posicionamentos do Cardeal Johannes Willebrands e do Papa João Paulo II. A redescoberta dessas duas características centrais [de que não queria dividir e que queria reformar] de sua pessoa e teologia levaram a uma nova compreensão ecumênica de Lutero como “testemunha do Evangelho”.

Ou seja, pode-se chamar o velho alemão de «testemunha do Evangelho» porque, na verdade, a «sua intenção era reformar, não dividir a Igreja». Parece importar pouco que, historicamente, ele tenha dividido a Igreja ao invés de A reformar; a aproximação dita ecumênica autoriza ignorar os fatos para se ater às motivações ocultas. Ora, o problema é que desse jeito se pode justificar quase qualquer coisa! Deve ser muito pequeno o número de indivíduos no curso da história que não tinham, ao menos em alguma medida, intenções boas (e então, pra ficar só em um exemplo, a intenção de Fidel Castro provavelmente era libertar, e não escravizar o povo cubano); o ponto é que não é isso o que importa, e sim o resultado exterior, observável, das ações das personalidades históricas. A ignorância de Lutero, ou a sua demência, ou sua possessão demoníaca ou qualquer outra coisa do tipo, pode até lhe ter mitigado a responsabilidade pelos gravíssimos pecados que cometeu; mas não tem, no entanto, e nem pode ter, o condão de, externamente, transmutá-lo em defensor Fidei!

A investigação psicológica das motivações íntimas — essa espécie de história da vida privada — tem decerto relevância na medida em que o conhecimento verdadeiro é em si mesmo bom; mas é um claro equívoco utilizá-lo para lançar um manto de esquecimento sobre a tradicional história da vida pública, externa e factualmente observável. Não é sem razão que a sabedoria popular diz que de boas intenções o inferno está cheio. Lutero pode ter tido as melhores intenções do mundo: o fato objetivo e incontrastável, no entanto, é que causou um dano terrível à Cristandade, tendo precipitado ao inferno as almas — multidões de almas! — que deram mais ouvidos às suas sandices do que às palavras de Vida Eterna ecoadas pelo Vigário de Cristo.

Pesadas todas as coisas, sem deixar «à parte o que é polêmico», é evidente que a verdadeira testemunha do Evangelho, no contexto da Reforma Protestante, foi Leão X e não Lutero. O silêncio sobre isso corre o sério risco de se tornar uma inverdade histórica por omissão. É preciso haver reconciliação entre os cristãos, sim, porque é preciso que o filho pródigo retorne; mas qualquer reconciliação somente é possível na verdade e não no auto-engano — e simplesmente não tem lá muito sentido dizer que, deixando à parte o fato de se tratar de comida estragada, a lavagem dos porcos foi o alimento que deu ao irmão mais novo o vigor necessário para empreender o retorno à casa paterna.

Nam oportet et hereses esse ut et qui probati sunt manifesti fiant in vobis (ICor XI, 19): importa que haja heresias, para que se manifestem os que são probos. Esta passagem de São Paulo aplica-se também aqui. Lutero só é «testemunha do Evangelho» no sentido em que o erro é testemunha da verdade: por oposição. Aliás, é até curioso que a comissão luterana tenha subscrito aquele texto: de acordo com ele, só é possível reconhecer o testemunho evangélico de Lutero na exata medida em que a sua obra pública contradiz a presumida nobreza de suas intenções privadas.

Hoje a Igreja celebra os protestantes que estão no Céu

Santo é uma palavra equívoca dentro da doutrina católica. Pode significar aquela pessoa que, por ter levado uma vida terrena de extraordinária conformação a Cristo, merece ser apresentada aos fiéis católicos como um modelo a ser seguido — é o seu sentido aliás mais comum e corriqueiro; mas pode significar, também e igualmente, aquela pessoa que simplesmente (como se “simplesmente” fosse um modo aplicável aos novíssimos, mas enfim) ao final da vida se salvou e, tendo já purificado os seus pecados, encontra-se na Glória diante de Deus. São os santos no seu sentido mais lato, i.e., todas aquelas pessoas que alcançaram a santidade — que, em última instância, outra coisa não é que a salvação. É por isso, aliás, que as proposições “fora da Igreja não há salvação” e “fora da Igreja não há santidade” são equivalentes, e por vezes nós as encontramos na sua forma mais sintética quando se quer enfatizar este papel insubstituível da Igreja Católica: Ela é a Igreja de Cristo, fora da qual não há salvação nem santidade.

Santo, assim, significa duas coisas distintas. Há, como gosta de dizer um velho professor amigo meu, o santo do Céu e o santo de altar. Todos aqueles que estão no Céu junto a Deus são, no rigor do termo e com todo o direito, santos; mas nem todas as pessoas que alcançaram a graça da perseverança final levaram necessariamente uma vida externa digna de ser reverenciada e imitada. O mais empedernido pecador que tenha se arrependido na hora de morte, e de cujo arrependimento a notícia não chegou a ser humano algum, pode purgar os seus pecados no Purgatório e, depois, alcançar a Bem-Aventurança junto a Deus — e será santo por estar no Céu. Mas não poderá jamais, por razões óbvias, ser santo de altar, ser apresentado como modelo de vida à imitação dos fiéis, simplesmente porque a única parte da sua vida propriamente digna de imitação — o arrependimento final — é desconhecido de todos os homens.

Não obstante, santo é santo. Todas as almas bem-aventuradas que estão diante de Deus gozam, por assim dizer, dos mesmos privilégios, independente dos caminhos pelos quais tenham passado até chegar à presença do Altíssimo. São, assim, todos eles, membros da Igreja Triunfante — e por conseguinte da única Igreja de Cristo — e podem interceder pela salvação dos homens que ainda vivem aqui na terra, na Igreja Militante ou fora d’Ela.

Hoje a Igreja celebra a Solenidade de Todos os Santos e esta festa é particularmente dedicada a estes “santos ocultos” — a estas almas benditas que, não possuindo a glória dos altares, são todavia membros da Igreja Triunfante e com Ela intercedem junto a Deus pela salvação do mundo inteiro. E hoje o Santo Padre, o Papa Francisco, termina a sua viagem apostólica à Suécia — uma viagem de polêmico cariz ecumênico — justamente com a celebração da Santa Missa de Todos os Santos. A data não podia ser melhor escolhida. Trata-se de um dia extremamente propício para a realização de atos ecumênicos pela seguinte singela razão: hoje é o único dia do ano litúrgico em que a Igreja celebra os não-católicos que estão no Céu!

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Afinal de contas, quem são os que se salvam? São aqueles que, conservando ao longo da vida as vestes puras que receberam no Santo Batismo, mediante uma vida de graça e de amizade com Deus adquirem d’Ele o imerecido dom da perseverança final. Esta é a regra. Mas há uma importante exceção: também se salvam aqueles que, cumprindo retamente os ditames da Lei Natural, «sofrem de ignorância da verdadeira religião, se aquela é invencível» (Pio IX, Singulari Quadam). E os que se salvam fora dos limites visíveis da Igreja Católica por esta ignorância somente de Deus conhecida são santos também, com todas as prerrogativas das almas bem-aventuradas cuja festa nós hoje celebramos. O Dia de Todos os Santos é também o dia destes santos.

Não dá para saber exatamente quem são as almas que apenas na hora da morte descobriram que deviam ter sido católicas a vida inteira, nem quantas elas são. No entanto é certo que elas existem; e se elas existem, e se no momento da morte descobriram que a religião que seguiram a vida inteira mais as afastou que as aproximou de Cristo, e se sabem agora que deveriam ter desde sempre, desde a mais tenra infância, militado nas fileiras da Igreja Católica e Apostólica sob o estandarte do Papa e da Virgem Santíssima… não é então razoável imaginar que elas, no Céu, junto de Deus, intercedam particularmente pela conversão dos que vivem nas trevas do erro religioso? Do mesmo erro que quase lhes valeu a danação eterna?

Imagine-se um protestante que tenha ido ao Céu — quer por ter se convertido verdadeiramente no último suspiro, quer porque viveu a sua vida inteira na mais cândida ignorância da verdadeira religião. Esse protestante há de ter se arrependido amargamente de toda a insubmissão na qual consumiu a vida inteira; há de ter pensado em como a sua vida teria sido mais fácil se ele acorresse com frequência aos sacramentos, se se valesse diariamente da invocação do nome da Santíssima Virgem Mãe de Deus. Há de aquilatar como não teria sido mais santo, e com muito mais facilidade, se tivesse à sua disposição os meios que Cristo instituiu para a santificação das almas. Ora, este protestante não há de se compadecer particularmente do risco terrível que correm os seus correligionários? Não há de consumir o seu Céu especialmente a serviço deles — para que não corram os mesmos riscos que correu e para que alcancem o quanto antes, ainda em vida!, a graça que ele só abraçou no instante derradeiro?

Façamos um pequeno exercício especulativo. Imaginemos que Lutero, na hora derradeira, após gravar nas paredes do seu quarto o agônico e blasfemo pestis eram vivens, moriens ero mors tua, papa, tenha se arrependido. Imaginemos que, por uma graça insólita da Virgem Mãe de Deus (pela qual, ao que parece, o Heresiarca conservou sempre um resquício de devoção), ao último suspiro o monge louco caiu em si e se arrependeu. Tal portento, que a História não registrou, se de fato ocorreu há de ficar oculto dos homens até a Segunda Vinda de Cristo. Mas semelhante graça, se existiu, aproveitou à pobre alma atormentada do monge alemão. Se tal tiver acontecido, o monge rebelde estará no Céu e não poderá ser jamais santo canonizado — porque a sua vida inteira foi um completo anti-exemplo de Cristianismo. Mas, se tal tiver acontecido, o único dia em que ele poderá ser de algum modo celebrado é o dia de hoje, Primeiro de Novembro, o day-after da Reforma. Seria uma deliciosa ironia.

Lutero certamente pode não ter se salvado. Mas algum protestante que tenha vivido nestes últimos quinhentos anos provavelmente se salvou; e este protestante que gastou a sua vida na heresia e que consumiu seus anos distante de Deus tem hoje a chance de suplicar uma melhor sorte para os seus companheiros de infortúnio. Hoje a Igreja celebra todos os protestantes que a despeito do protestantismo tenham alcançado a salvação; é, portanto, um dia adequado, adequadíssimo, para suplicar a unidade de todos os cristãos sob o báculo do Vigário de Cristo. Ao Papa Francisco juntam-se hoje os santos do Céu; e entre os santos do Céu há alguns que em vida foram protestantes até o suspiro derradeiro.

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Hoje, na Suécia, o Papa Francisco rezou junto com os hereges, e a cena tinha certos contornos escatológicos. Porque hoje — especialmente hoje! –, no Céu, rezam juntos os católicos e os [que em vida foram, ao menos materialmente,] protestantes. Para que esta cena terrestre se reproduza um dia no Céu, no entanto, é preciso que todos, católicos e protestantes, estejam dentro da única Igreja de Cristo — fora da qual não há salvação e nem santidade. Isto já o perceberam todos os protestantes que estão no Céu. E todos estes hoje, diante de Deus, rezam para que também o percebam, e o quanto antes!, os protestantes que ainda estão na terra — as ovelhas tresmalhadas, moribundas e exânimes, ao encontro das quais nestes últimos dias o Papa Francisco moveu toda a Igreja.

O Bom Pastor vai ao encontro da ovelha desgarrada

O site do Vaticano ostenta hoje, logo na sua página inicial, a viagem apostólica do Papa Francisco à Suécia — seguida pelo constrangedor subtítulo de «por ocasião da comemoração comum luterano-católica da reforma». Como o assunto dá margem para muitíssima confusão — com pessoas exultando por um lado porque a Igreja está “aceitando” o protestantismo e, pelo outro, rasgando as vestes porque o Papa é a Besta do Apocalipse –, convém pontuar alguns detalhes aos quais não se costuma dar a devida atenção.

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Duas semanas atrás eu escrevi aqui sobre a peregrinação a Roma que o heresiarca Lutero, em efígie, foi constrangido pelos seus descendentes a fazer. Era Lutero se revirando no túmulo e os protestantes carregando a sua estátua para a apresentar ao Vigário de Cristo. Já então houve quem perguntasse, se fosse assim, como se deveria ler a anunciada viagem do Papa à Suécia que hoje se inicia. Ora, outra leitura não é possível fazer: é o Bom Pastor que, destemidamente, vai mesmo aos mais putrefatos charcos em busca da ovelha desgarrada, a fim de lhe colocar sobre ombros para a trazer de volta ao aprisco de Cristo — no interior do qual somente ela é capaz de encontrar segurança!

É claro que é incômodo ver falar-se de “comemoração” em se tratando de uma revolta luciferina que estraçalhou a Cristandade e precipitou milhões de almas no Inferno pelos últimos quinhentos anos. Dê-se, no entanto, um desconto ao bom-mocismo e à política de boa-vizinhança: é um tributo que mesmo os melhores pagam aos tempos que correm. Etimologicamente comemoração significa “lembrar junto” e pronto; não há que se falar n’alguma conotação laudatória intrínseca ao termo, como se o Papa estivesse louvando a heresia ou enaltecendo o heresiarca. Fui olhar a página da viagem apostólica em seus diversos idiomas; em inglês diz «commemoration», em espanhol, «conmemoración», em italiano «commemorazione». Ora, fala-se sem maiores celeumas em «commemorazioni del centenario» da Primeira Guerra Mundial (do início, em 2014, e não do fim) e em «commemoration of the Holocaust», e ninguém é louco de dizer que, por conta disso, o Holocausto ou a Primeira Guerra sejam coisas positivas. Por mais malsonante que o termo “comemoração” nos seja, portanto, o que interessa é o conteúdo do encontro e não o nome que se lhe dá. O mesmo, aliás, foi dito recentemente por um ex-protestante convertido à Igreja em 2014: a visita do Papa «comemora a reforma, não a celebra».

Os protestantes provavelmente consideram uma coisa boa a origem de sua religião; os católicos certamente não consideramos uma coisa positiva a ruptura eclesiástica. Católicos e protestantes, assim, podem até lembrar juntos o mesmo evento do 31 de outubro, mas o fazem sob óticas distintas: estes o lembram como um feito heroico a ser celebrado, enquanto os primeiros o veem como uma lembrança triste que se deve lutar por não repetir jamais. Toda declaração ecumênica tem um quê de fórmula de compromisso, passível de leituras diferentes por cada um dos lados — é óbvio. Não fosse assim, tratar-se-ia já de plena comunhão e não de caminho ecumênico.

O diálogo ecumênico travado a nível das grandes lideranças religiosas apresenta, assim, essa característica particular: por vezes dá mais ênfase ao consenso político que ao rigor doutrinário. Pode-se até discordar dessa abordagem, mas é equivocado conferir a esses documentos a mesma leitura que se dá aos cânones dos concílios dogmáticos: são dois discursos completamente diferentes a exigir hermenêuticas completamente distintas. Concretamente: diante — por exemplo — da declaração conjunta hoje proferida em Lund pode-se até dizer que silenciar os pontos de discordância entre a Fé e a heresia mais atrapalha que ajuda a causa da plena comunhão, mas não se pode ler na referência aos «dons espirituais e teológicos recebidos através da Reforma», por absurda que seja a frase, uma revogação tardia da Exsurge Domine.

E não se diga que tal é coisa exclusiva do atual pontificado! Bento XVI não foi para Erfurt dizer que o «pensamento de Lutero, a sua espiritualidade inteira era totalmente cristocêntrica»? A única diferença entre as duas atitudes é o estilo do velho pontífice alemão. De resto é a mesma coisa: são os usos contemporâneos, as regras de etiqueta socialmente aceitas nos tempos de hoje. É um equívoco imaginar que elas sejam mais do que fórmulas de tratamento e regras de educação — função fática que só serve para manter aberto o canal de comunicação adequado à sensibilidade contemporânea.

É grande a miséria espiritual dos pobres filhos da Reforma! Não é para os manter na indigência que o Papa Francisco lhes vai ao encontro. O que move o Vigário de Cristo não é a indiferença pela sorte eterna dos que morrem longe da Igreja de Cristo, mas a «esperança da reconciliação» entre os discípulos de Cristo e os sequazes de Lutero. Também pelos hereges morreu Nosso Senhor, também a eles se estende a mensagem salvífica do Evangelho. Não é possível bater o pó das sandálias de uma vez para sempre; a cada homem Cristo dirige o Seu chamado. Para que se converta, evidentemente, que não se trata (talvez não seja nunca demais repetir) de manter os hereges longe da Fé. Mas não se pode simplesmente presumir que todos os transviados do mundo tenham a exata dimensão do quanto estão perdidos.

Se o Papa se apresenta sujo de lama e coberto de espinhos, portanto, talvez não precisemos lançar-lhe em face o desleixo ou censurar-lhe pelas costas a displicência com a qual ele se entrega à causa do Evangelho. Talvez ele esteja fazendo o melhor que pode. Talvez esteja fazendo melhor do que qualquer um de nós faríamos. Talvez ele faça exatamente o que precisa ser feito. Não se passa uma vida inteira pregando em meio aos bárbaros sem lhes adquirir alguns hábitos que pareçam repulsivos a uma sensibilidade mais refinada. Ora, o mundo moderno é completamente insano; deveríamos nos surpreender tanto assim que, à força de ser obrigada a lhe falar dia e noite sobre Cristo, a Igreja historicamente encarnada adquira dele alguns cacoetes?

Talvez a voz cansada do Bispo de Roma não esteja à altura dos coros angélicos que desejaríamos ver anunciando o Evangelho. É possível. Mas Cristo nos mandou seguir o velho pescador e não as falanges angélicas. A submissão ao Romano Pontífice é absolutamente necessária à salvação de toda criatura humana, e a observância dessa regra básica não está condicionada a nenhuma qualidade particular daquele que esteja sentado no Trono de Pedro. Nem muitíssimo menos aos juízes particulares que somos tentados a fazer a respeito das qualidades daquele que porta na fronte a tríplice coroa do poder supremo.

Enfim, o Papa Francisco vai à Suécia. O Bom Pastor vai ao encontro das ovelhas desgarradas em meio aos pântanos pestilentos, do filho pródigo refestelando-se na lavagem dos porcos, dos bastardos de Lutero chafurdando na heresia. Os seus pés podem estar rasgados, suas vestes, enlameadas, sua voz rouca; mas são só os pés dele que conhecem o caminho da Salvação, é nas suas vestes apenas que estão estampadas as insígnias do Rei, é através da voz dele somente que Cristo nos fala e nós O temos que ouvir. 

Os verdadeiros cristãos são os filhos da Igreja e da Virgem Maria

Há duas frases tradicionais que sintetizam de maneira admirável a necessidade da Fé Católica para agradar a Deus, entre as quais há uma bonita relação de paralelismo que faz com que, uma vez que as tenhamos aprendido (talvez, numa catequese infantil), delas não nos esqueçamos mais. Uma: não pode ter Deus por Pai no Céu quem não tem a Igreja por Mãe na Terra, de São Cipriano de Cartago (De Ecclesiae Catholicae unitate, 6). A outra: quem não tem a Virgem Maria por Mãe, não tem Deus por Pai, de (certamente entre outros) S. Louis de Montfort (Tratado da Verdadeira Devoção, 30).

A Virgem Mãe de Deus e a Igreja, longe das quais não é possível encontrar a Nosso Senhor Jesus Cristo! A Igreja Católica e a Santíssima Virgem, cuja maternidade é essencial àqueles que se pretendam filhos de Deus neste mundo e no vindouro! As frases podem soar um pouco politicamente incorretas nesta época de caricata tolerância religiosa em que vivemos (como se “tolerância” fosse sinônimo de dizer “está tudo muito bem e qualquer coisa é a mesma coisa”); não obstante, são profundamente verdadeiras e atravessam os séculos com o mesmo vigor original – uma vez que obtêm a sua força do sagrado Depositum Fidei, que não muda ao sabor dos ventos de opiniões de cada momento histórico.

Quem quer ser filho de Deus tem que ser filho da Igreja, quem quer ser filho de Deus precisa ser filho da Virgem Maria: é o que dizem os santos de todos os tempos. Trata-se, perceba-se, de uma forma indireta de repetir o dogma – mil-vezes odiado! – de que fora da Igreja não há salvação. É a mesma coisa: dizer que é preciso ser filho da Igreja e filho da Virgem Santíssima é o perfeito equivalente (*) de dizer que é necessário ser Católico Apostólico Romano. Hoje parece ser um pecado imperdoável repetir que fora da Igreja Católica não é possível encontrar salvação. Contudo, parece que o mundo ainda se permite ouvir que é mister ser filho da Igreja e da Virgem Maria.

[(*) A primeira parte – filho da Igreja – exclui, sem sombra de dúvidas, todos os não-cristãos. A Igreja, mesmo em sentido lato, é uma instituição cristã por essência e sequer se concebe usar o mesmo termo para se referir às (eventuais) estruturas institucionais de religiões outras que o Cristianismo. A segunda parte – filho de Maria – exclui, inequivocamente, os protestantes, ao menos a imensíssima maior parte dos protestantes que desconhecem a veneração dos santos – e, em particular, o culto de hiperdulia que é devido à Santíssima Virgem Mãe de Deus. Sobram, talvez, expandindo a interpretação, os cismáticos orientais, que perfazem Igrejas Particulares e guardam a veneração devida à SSma Virgem. Este sentido é, parece-me, o único em que talvez seja possível afirmar imperfeita a equivalência entre as duas sentenças e o nulla salus. Mesmo assim, elas abarcam a esmagadora maior parte daquilo a que se refere o dogma – e, portanto, dizê-las é já dizer muito.]

Onde ressoam, ainda hoje, essas expressões [que se diriam] tão anacrônicas?! De que obscuro gueto saem essas pregações [consideradas] tão intolerantes? Não é [somente] na blogosfera ultra-radical ou nas seitas cripto-cismáticas dos saudosistas dos tempos passados. Essas palavras reverberam na Praça de São Pedro e, de lá, para todo o orbe. Quem as pronuncia é o homem que sempre se encontra nas capas dos veículos de imprensa mundo afora. É o Papa Francisco – o Papa mais amado e bajulado pelos inimigos da Igreja de todos os naipes – quem o afirma com todas as letras: é preciso ser filho de Maria! Não existe Cristo sem a Igreja!

Deixemos falar o Papa Francisco (itálicos no original, negritos meus):

E, para além de contemplar a face de Deus, podemos também louvá-Lo e glorificá-Lo como os pastores, que regressaram de Belém com um cântico de agradecimento depois de ter visto o Menino e a sua jovem mãe (cf. Lc 2, 16). Estavam juntos, como juntos estiveram no Calvário, porque Cristo e a sua Mãe são inseparáveis: há entre ambos uma relação estreitíssima, como aliás entre cada filho e sua mãe. A carne de Cristo – que é charneira da nossa salvação (Tertuliano) – foi tecida no ventre de Maria (cf. Sal 139/138, 13). Tal inseparabilidade é significada também pelo facto de Maria, escolhida para ser Mãe do Redentor, ter compartilhado intimamente toda a sua missão, permanecendo junto do Filho até ao fim no calvário.

Maria está assim tão unida a Jesus, porque recebeu d’Ele o conhecimento do coração, o conhecimento da fé, alimentada pela experiência materna e pela união íntima com o seu Filho. A Virgem Santa é a mulher de fé, que deu lugar a Deus no seu coração, nos seus projectos; é a crente capaz de individuar no dom do Filho a chegada daquela «plenitude do tempo» (Gl 4, 4) na qual Deus, escolhendo o caminho humilde da existência humana, entrou pessoalmente no sulco da história da salvação. Por isso, não se pode compreender Jesus sem a sua Mãe.

Igualmente inseparáveis são Cristo e a Igreja, porque a Igreja e Maria caminham sempre juntas, sendo isto exactamente o mistério da mulher na comunidade eclesial, e não se pode compreender a salvação realizada por Jesus sem considerar a maternidade da Igreja. Separar Jesus da Igreja seria querer introduzir uma «dicotomia absurda», como escreveu o Beato Paulo VI (cf. Exort. ap. Evangelii nuntiandi, 16). Não é possível «amar a Cristo, mas sem amar a Igreja, ouvir Cristo mas não a Igreja, ser de Cristo mas fora da Igreja» (Ibid., 16). Na verdade, é precisamente a Igreja, a grande família de Deus, que nos traz Cristo. A nossa fé não é uma doutrina abstracta nem uma filosofia, mas a relação vital e plena com uma pessoa: Jesus Cristo, o Filho unigénito de Deus que Se fez homem, morreu e ressuscitou para nos salvar e que está vivo no meio de nós. Onde podemos encontrá-Lo? Encontramo-Lo na Igreja, na nossa Santa Mãe Igreja hierárquica. É a Igreja que diz hoje: «Eis o Cordeiro de Deus»; é a Igreja que O anuncia; é na Igreja que Jesus continua a realizar os seus gestos de graça que são os sacramentos.

Esta acção e missão da Igreja exprimem a sua maternidade. Na verdade, ela é como uma mãe que guarda Jesus com ternura, e O dá a todos com alegria e generosidade. Nenhuma manifestação de Cristo, nem sequer a mais mística, pode jamais ser separada da carne e do sangue da Igreja, da realidade histórica concreta do Corpo de Cristo. Sem a Igreja, Jesus Cristo acaba por ficar reduzido a uma ideia, a uma moral, a um sentimento. Sem a Igreja, a nossa relação com Cristo ficaria à mercê da nossa imaginação, das nossas interpretações, dos nossos humores.

Papa Francisco, HOMILIA.
in Solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus
1º de janeiro de 2015.

A Igreja Católica é a fiel depositária de um determinado conjunto de verdades imutáveis, as quais tem o mandato divino de anunciar ao mundo como as recebeu de Cristo – sem as aumentar nem as diminuir. Os dogmas não ficam nunca “ultrapassados”, a Doutrina Cristã não “deixa de valer” jamais. E o Papa – qualquer que seja o Papa! – é o guardião da Fé. Não deveria ser estranho que o Vigário de Cristo agisse como Vigário de Cristo. Nestes tempos que correm, no entanto, e como há um evidente empenho em sequestrar o Papa Francisco, é importante registrar e documentar com bastante cuidado: o Papa Francisco é Papa católico. E, por mais que o desejem os anti-clericais, ele não pode ser outra coisa. Não gostam de ouvir o Pontífice Argentino falar? Que ouçam, portanto, o que fala o Papa Francisco! Que o ouçam e, ouvindo-o, se convertam. Pois – Franciscus dixit! – não é possível separar Cristo de Sua Mãe Santíssima. Porque – Bergoglio garante! – não se encontra a Cristo fora da Igreja Católica e Apostólica.

Que a SSma. Virgem, Aquela «que deu uma face humana ao Verbo eterno, para que todos nós O pudéssemos contemplar» (Papa Francisco, id. ibid.), rogue pela Igreja, pelo Papa Francisco e por todos nós. Que Ela, de novo e mais uma vez, nos traga o Seu Divino Filho, diante do qual as Trevas não podem subsistir. Que Ela nos possa sempre valer, em meio às tentações desta vida conturbada. Que nos livre, sempre, das ciladas que o Maligno nos arma nestes dias difíceis em que vivemos.

Bento XVI e o Papa Copta

Referente ao comentário aleatório que foi feito hoje à tarde aqui no blog (o que me leva a crer que o seu autor quer algum comentário meu sobre o assunto), sobre a recente eleição do novo Papa Copta, é preciso dizer que o texto e (principalmente!) os comentários do Cum Ex Apostolatus Officio são totalmente nonsense.

O Patriarca de Alexandria historicamente sempre ostentou o título de “Papa”, sem que isso jamais significasse nenhuma pretensão de usurpar a primazia de governo que o Bispo de Roma exerce sobre a Igreja Universal. Aliás, parece que o título de “Papa” foi atribuído ao Bispo de Alexandria antes mesmo de ter sido usado pelo Bispo de Roma – e isto séculos antes do Cisma do século XI. Uma coisa, portanto, é o Papa enquanto Sucessor de São Pedro, Vigário de Cristo e Pastor Supremo da Igreja Católica, e outra coisa totalmente diferente é o Papa enquanto Patriarca de Alexandria – cujo título remete a um uso histórico ininterrupto e incontroverso. Não me consta que o Papa Copto-Ortodoxo tenha jamais possuído, no passado ou no presente, pretensão de exercer governo universal sobre a Igreja. O Patriarca de Alexandria não é atualmente (e, até onde me conste, historicamente nunca foi) o que se pode chamar de um Antipapa.

É claro que hoje em dia existe o cisma e, atualmente, a Igreja Copto-Ortodoxa não reconhece ao Bispo de Roma senão uma “primazia de honra”, mas isto – ao contrário do que é insinuado nos comentários do artigo – não tem absolutamente nada a ver com o título “Papa” empregado pelo Bispo de Alexandria ou de Roma. Para os ortodoxos, “Papa” significa simplesmente “Patriarca”, sem nenhuma conotação minimamente análoga ao Papado católico. E, por conseguinte, o Papa Bento XVI “reconhecer” a eleição de Tawadros II, mesmo tratando-o por “Papa”, não tem nada a ver com abdicar do Papado, negar que ele próprio seja o Sucessor de São Pedro ou qualquer outro disparate análogo.

Deduzir da mensagem de Bento XVI ao novo Patriarca da Igreja Copto-Ortodoxa que aquele “abdicou do papado” – como escreveu uma garota em seu blog – porque não pode haver dois Papas é fazer uma confusão totalmente sem sentido. É claro que não pode haver dois Papas no sentido que a palavra tem dentro da Teologia Católica, mas pode haver – e há – mais de um Patriarca na Igreja de Cristo, e para os coptas “Papa” significa precisamente “Patriarca” e não mais que isso.

Há Patriarcas de Igrejas Particulares unidas a Roma – como o Patriarca de Antioquia dos Sírios, p.ex. – e há Patriarcas de igrejas cismáticas, como o recém-eleito Tawadros II. Este chamar-se a si mesmo de Papa (fazendo uso, repitamos, de um título que remete ao século III, jamais questionado pela Igreja) ou o Papa Bento XVI tratá-lo por este título (que em si é legítimo) em nada afeta a posição que o Vigário de Cristo detém na Igreja Católica. Dizer diferente disso é disseminar a confusão, e nós já vivemos em tempos onde existe confusão demais.

Hans Küng defende sedevancatismo e acusa Bento XVI de cismático (!)

Eu ainda não vi traduzida para o português, mas esta notícia do Hans Küng “virando sedevacantista” é provavelmente uma das mais bizarras dos últimos tempos. E é verdade, publicada com estupor pelo Rorate Caeli. O motivo do rasgar de vestes do teólogo heterodoxo é a iminente e eminente reconciliação da Fraternidade Sacerdotal São Pio X com Roma, motivo de júbilo para todos os católicos verdadeiros da Igreja Militante, Padecente e Triunfante, com festas excelsas ribombando entre os desta última. Mas, para o Küng, não há razão para se alegrar.

O teólogo suíço baseia o seu chamado à insubordinação em três pontos.

O primeiro, claramente nonsense, é colocar em dúvidas não apenas a licitude mas a própria validade da sagração episcopal dos quatro bispos da FSSPX (e, por conseguinte, da ordenação sacerdotal dos seus padres). E esta alegação é duplamente nonsense: primeiro porque não existe a mais remota razão para se duvidar da validade do Sacramento da Ordem de padres e bispos que se esforçaram, precisamente, por conservar férrea e rigidamente os ritos que eram usados pela totalidade da Igreja até a Reforma do século XX; e, segundo, porque ainda no caso absurdo de que houvesse invalidez de ordens, isto poderia perfeitamente ser resolvido com uma ordenação verdadeira no ato do retorno à Igreja (caso, aliás, dos anglicanos que voltaram com a Anglicanorum Coetibus). A queixa é, assim, puro delírio.

O segundo ponto é o mais divertido: o Küng demonstra que os seus estudos de teologia não foram completamente vãos, porque ele (ao menos) conhece e sabe citar Suárez, escolástico espanhol cuja teologia dista tanto da do seu companheiro de letras suíço. E cita Suárez precisamente na passagem sobre a hipótese do Papa Cismático, alardeando: até o Papa pode se tornar um cismático, se ele não guardar a unidade da Igreja! É verdade. Acontece que isto é tão-somente uma hipótese teológica e, ainda tomando partido por ela, é verdadeiramente espantoso que alguém considere que o retorno de um grupo de católicos à comunhão católica seja “não guardar a unidade da Igreja”! Depois de anos de má teologia, o Küng está claramente degenerando em uma incapacidade de raciocínio lógico assustadora.

Por fim, no terceiro ponto, Hans Küng cita as conseqüências advindas da contingência de um Papa cismático ocupar a Cátedra de Pedro. Arremata: tal Pontífice “perde[ria] sua posição”, ou “[p]elo menos não poderia [mais] esperar obediência” do resto da Igreja. Senhoras e senhores, nós estamos vendo o Küng dizer que o Papa, se cismático fosse, não poderia mais esperar obediência! E censurando Bento XVI por isso, ele, Hans Küng, aquele que é o teólogo desobediente por antonomásia desde muito antes de insinuar que o Papa é (ou está em vias de ser) cismático! O teólogo que dedicou seus anos de teologia a desobedecer sistemática e repetidamente a tudo o que vem de Roma, chegando ao ponto de receber uma censura da Congregação para a Doutrina da Fé em 1979 (em 1979!), ameaçando agora o Papa com a desobediência! Isto é verdadeiramente inacreditável. Viva Bento XVI!

E rezemos muito, tanto pro pontifice nostro Benedicto quanto pro unitate Ecclesia. As batalhas são terríveis e, por isso mesmo, importantes e heróicas. Épicas. Bendito seja Deus, que nos colocou nestes dias dramáticos um valoroso general por cabeça da Sua Igreja Visível. Que Ele nos conceda a graça de combater o Bom Combate. Que Ele nos dê a honra de servi-Lo nestes dias cruéis. Que Ele Se levante e faça resplandecer a Sua glória.

A Nota da CNBB e a resposta das seitas

A despeito de não se encontrar na parte de “Notas e Declarações” do site da CNBB (!), na semana passada a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil publicou uma relevante nota “sobre algumas questões relativas ao uso indevido dos termos: católico, igreja católica, clero e outros”. Vou publicar o texto na íntegra, abaixo, conforme se encontra na seção de notícias do site da Conferência. [P.S.: Hoje, 09/12, a nota está disponível na seção correspondente do site da Conferência. Aparentemente, eles demoram a atualizar.]

A coisa deu resultado. Vi hoje que a “Igreja Católica Carismática” publicou uma nota de repúdio em seu site (reproduzo-a também ao final deste texto) em nome – pasmem – da “ICAR – Igreja Católica Apostólica da Redenção”, cujo órgão de comunicação oficial é aparentemente este blog. Na referida nota, os responsáveis pela seita esbravejam contra Dom Damasceno e, num português de fazer inveja ao Seu Crêisson (os caras conseguiram escrever «pois dessa forma Vossa Eminência esta agindo como um ante Cristo»!), querem dizer à Igreja Católica como Ela pode ou não pode instruir os Seus fiéis.

Ora, isto só mostra como os esclarecimentos da CNBB são necessários. Enquanto houver usurpadores de ofícios eclesiásticos apresentando-se como ministros de Nosso Senhor sem que estejam contudo unidos ao Vigário de Cristo na Terra, os bispos têm mais é que nomear os lobos mesmo. O que têm a ver com os fiéis católicos estes “pastores” que não fazem parte da Igreja? Com que autoridade uma seita recém-fundada (segundo o blog, a tal ICAR foi “Fundada em 24 de Outubro de 1988”, é mais nova do que este que vos escreve!) pretende dizer à Igreja Católica como Ela deve guiar os Seus fiéis? Que se ponham no seu devido lugar. E todo o nosso apoio a Dom Damasceno e à CNBB que teve a coragem de publicar um documento importante como este.

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Anexos: Notas citadas Continuar lendo A Nota da CNBB e a resposta das seitas

Sobre hereges, cismáticos, batismos e vínculos com a Igreja

Do Vaticano II:

“Pois [os] que crêem em Cristo e foram devidamente baptizados, estão numa certa comunhão, embora não perfeita, com a Igreja católica” (Unitatis Redintegratio, 3).

Do Ludwig Ott:

“Como el carácter bautismal, que obra la incorporación a la Iglesia, es indestructible, el bautizado, por más que cese de ser miembro de la Iglesia, no queda completamente fuera de ella de suerte que quede roto todo vínculo con la misma” (OTT, Ludwig; Manual de Teologia Dogmática, p. 467. Ed. Herder, Barcelona, 1966).

Qualquer semelhança não é mera coincidência. Fica – mais uma vez – a dúvida: se há o sentido ortodoxo, o que justifica interpretar o texto no sentido heterodoxo?

O valor das entrelinhas

Encontra-se por vezes mais eloqüência nas entrelinhas do que nos grandes discursos. Aceitar esta premissa é diferente de abraçar uma visão esotérica do mundo (ou – o que é bem parecido – de teoria da conspiração), onde o sentido verdadeiro das coisas seria contrário à sua “versão oficial” (ou, pior ainda, ao seu sentido público) e estaria escondido sob pequenas “pistas” (ou atos falhos) invisíveis ao espectador médio porém perceptíveis aos mais iluminados (ou perspicazes).

Não defendemos tal coisa. Dizemos que as entrelinhas e os gestos têm significado, por certo. Em se tratando da Igreja Católica, contudo, quem quer permanecer católico não deve sustentar que estes tenham um significado contrário à Doutrina Católica. E, se é verdade que por vezes as entrelinhas pesam mais do que as linhas, aquelas nunca poderão desdizer estas.

Vamos às entrelinhas. Falava-se recentemente aqui no blog sobre a Mortalium Animos de Pio XI. Embora eu já tivesse falado sobre o assunto aqui e aqui, ia voltar a dizer hoje que a questão, esquematicamente, é bastante simples:

1. hereges e cismáticos, historicamente (mais precisamente, no início do século XX) passaram a desejar uma unidade visível entre si;

2. este desejo de unidade visível é em si bom;

3. historicamente, tal desejo foi buscado concretamente por meio de associações entre diversas seitas, totalmente descompromissadas com a verdade objetiva;

4. como era óbvio, a desejada unidade visível nunca se concretizou por estes meios;

5. como era igualmente óbvio, a Igreja fulminou este entendimento irenista de “unidade” sem Verdade (em particular, na Mortalium Animos);

6. historicamente, a Igreja ofereceu a Sua resposta a este desejo de unidade dos hereges e cismáticos;

7. como é óbvio, esta proposta da Igreja é e sempre foi que eles encontrem a unidade cum Petro et sub Petro;

8. historicamente, embora signifiquem coisas diversas (e até contraditórias), as coisas expostas em 3. e em 6. acima foram chamadas pelo nome de “Ecumenismo”;

9. por conta disso, houve historicamente falsificadores da Doutrina Católica que, de boa ou má fé, confundiram os dois conceitos e disseram a) ou que o “ecumenismo herético” (ponto 3.) é na verdade uma coisa boa e a Igreja, após o perceber, reviu a Sua opinião; b) ou que a Igreja passou a ensinar o “ecumenismo herético” e, por conta disso, deixou de ser Igreja (ou o Concílio deixou de ser Concílio, ou o Magistério deixou de ser Magistério, ou a teoria que se deseje colocar aqui);

10. com a confusão que perdura até os dias de hoje, fica por vezes difícil distinguir entre o “ecumenismo herético” e o legítimo ecumenismo católico (pontos 6. e 7.).

Posto o esquema, volto às entrelinhas. Lembro-me de que muitas das “provas” dos esotéricos ou teóricos da conspiração baseia-se no “silêncio” com o qual a Igreja trata os textos dos Papas anteriores ao Concílio do Vaticano II. Em particular, a encíclica Mortalium Animos não se encontrava online em português, existindo na internet somente em sites como a Montfort ou disponíveis em versões não-oficiais de sites de compartilhamento de arquivos.

Pois bem: a Mortalium Animos está disponível em português no site do Vaticano. E esta tradução é recente, pois eu próprio me recordo de que até há bem pouco tempo atrás não era possível encontrá-la. Há, portanto, esforços da Santa Sé no sentido de tornar acessíveis aos católicos documentos do início do século XX que, até bem pouco tempo atrás, não estavam disponíveis (ao menos não em todos os principais idiomas). E, se isto está sendo feito, é porque estes documentos permanecem válidos, são importantes e devem ser conhecidos. Esta é uma excelente resposta aos que diziam ter a Igreja mudado a Sua Doutrina. É uma ótima forma de afirmar a continuidade do ensinamento da Igreja.

Aliás, de todas as encíclicas de Pio XI, apenas cinco estão atualmente traduzidas para o português: a Divini Illius Magistri (31 de dezembro de 1929), a Divini Redemptoris (19 de março de 1937), a Mortalium Animos (6 de janeiro de 1928), a Quadragesimo Anno (15 de maio de 1931), e a Vigilanti cura (29 de junho de 1936). E estas não são “as cinco mais antigas” ou “as cinco mais novas”, nem “as cinco na ordem em que aparecem no site do Vaticano” e nem nada do tipo: o que nos permite acreditar que os primeiros documentos que estão sendo traduzidos são os mais relevantes para os tempos atuais (ou, no mínimo, que certamente são aplicáveis aos tempos atuais). E estas cinco encíclicas tratam respectivamente sobre a educação cristã da juventude, sobre o comunismo ateu, sobre a verdadeira unidade de religião, sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social (no aniversário da Rerum Novarum) e sobre cultura e meios de comunicação em massa (especificamente o cinema). Nada surpreendentemente, temas que muitos (mesmo católicos!) insistem em considerar “ultrapassados” – e, não obstante, nós católicos que desejamos ser fiéis sempre insistimos em dizer que eram válidos e aplicáveis aos dias correntes.

Volto ao que eu dizia no começo: para os católicos, não vale dizer que a Igreja “diz uma coisa e faz outra” ou que Ela passa “ensinamento tácito” (contrário ao que se dizia antigamente) por meio das coisas que cala. Atualmente (e à primeira vista), o “ecumenismo” está tanto condenado quanto promovido no site do Vaticano. Os inimigos da Igreja – e somente estes – podem dizer que Ela é contraditória. Os católicos fiéis, contudo, bem como os honestos intelectualmente, devem se perguntar se Ela não está falando de coisas distintas nos dois documentos. Devem conceder-Lhe ao menos o benefício da dúvida.

Um programa, um objetivo, um fim almejado

Esta foto está também no Fratres in Unum; encontrei-a aqui, onde tem algumas outras fotos do encontro de Assis (em particular esta aqui, que retrata a mesma situação e mostra o altar que está defronte ao Papa).

Trata-se do Vigário de Cristo junto com alguns líderes religiosos (não sei dizer se estavam aqui todos presentes) ao fim do encontro, na cripta de São Francisco, rezando diante do Santíssimo Sacramento.

O senhor de púrpura à esquerda da foto é o Dr. Rowan Williams, chefe da Igreja anglicana, prostrado de joelhos diante de Cristo Eucarístico. Ecumenismo de verdade é isso aí! É claro que, provavelmente, os diversos líderes religiosos aí presentes estão fazendo somente bom-mocismo diante do Rei dos Reis; mas a foto tem a força de um programa, de um objetivo a ser buscado, de um fim almejado pelo qual vale a pena trabalhar. Sim, queremos todos os homens reunidos, mas os queremos assim: reunidos aos pés de Cristo! E, como o estar sob o sol queima a pele ainda que não se atente para isso, oxalá o colocar-se diante do Sol da Justiça possa conceder algumas graças para estes homens que estão diante de Cristo e ao lado do Seu vigário – ainda que não o saibam.