[OFF] Eu, com câncer (V): contratempos e imprevistos

Faz mais de uma semana que não escrevo nada. Há uma razão: faz mais de uma semana que estou internado no hospital, contra todos os prognósticos que eu tinha para esses dias. Dante já dissera com muita propriedade «ché saetta previsa vien più lenta» (Paradiso XVII) e, em contrapartida, as flechadas que nos chegam de supetão, pelas costas, são as piores. Mas a vida é feita de batalhas e lutar significa sobreviver às saraivadas que nos chegam de todos os lados, é claro. Se fosse de outra maneira, não poderíamos pretender estar lutando a sério.

No dia 26 de janeiro último, domingo, de alta recebida na noite da véspera, eu escrevi um relato aqui no Deus lo Vult! sobre a semana que passara. No dia 27 de janeiro, segunda-feira, pela manhã, eu voltava pra emergência do hospital. Meu braço direito doía bastante e estava inchado. O cirurgião vascular da emergência cardiológica nem precisou do exame para diagnosticar: “é uma trombose venosa profunda”. O ultrassom confirmou em seguida. Precisei me internar mais uma vez.

Inacreditável: uma trombose! Não tinha – ao menos não diretamente – a ver com o câncer ou com a quimioterapia, não tinha a ver com os meus problemas respiratórios que me haviam deixado quase uma semana no hospital, não tinha a ver com nada. Simplesmente acontece: meu corpo não reagiu bem ao port-a-cath que eu implantara para a QT. Um corpo estranho no organismo, mais o próprio câncer, mais tratamento quimioterápico… eram três fatores de risco, me disse o médico. Acontece.

Anticoagulantes de emergência – TVP causa embolia pulmonar, eu sei – e internamento para estragar a capacidade do meu sangue de coagular a contento. Há uma índice que mede essas coisas: INR, International Normalized Ratio, cujo valor padrão é – como o próprio nome diz – 1. O meu precisa ficar entre 2 e 3 para que seja seguro me deixar somente à base dos anticoagulantes orais: antes disso, uma injeçãozinha na barriga a cada 12 horas. Antes disso, cuidados hospitalares. Antes disso, fico ainda um pouco por aqui.

Aproveitei a estadia no hospital para verificar os pulmões. Cheios ambos, o direito mais do que o esquerdo. O raio-x, aliás, estava muito parecido com o que tirei no dia em que fiz a segunda sessão de quimioterapia. Estremeço. Não sei dizer se eles voltaram a encher ou se simplesmente não diminuíram: não bati uma radiografia torácica na alta da semana passada e, portanto, não sei dizer exatamente em quais condições meus pulmões saíram do hospital. De uma forma ou de outra, parece-me indiscutível que este derrame pleural não está melhorando, ou só o está fazendo a conta-gotas.

Volto à máscara do Jason: meus pneumologistas estão aproveitando a minha estadia no hospital para tentar fazer o derrame ceder à força de fisioterapia respiratória. A julgar pelas três ou quatro chapas de raio-x que bati em seqüência da semana passada pra cá, não está resolvendo: mas pelo menos o derrame também não está aumentando, e isso talvez já seja motivo mais do que suficiente para que eu dê graças a Deus. Ainda respiro; não tão bem como em situações normais, mas muito melhor do que na semana em que subi às pressas para a Semi-Intensiva. Ainda respiro, e daqui a pouco – menos de uma semana – eu vou receber quimioterapia de novo…

[Um parêntese. Aqui as coisas começam a ficar complicadas. Era esperado que esse derrame começasse a ceder já no primeiro ciclo de QT, no máximo no segundo; estamos a seis dias do terceiro, e ele continua tão forte que a minha pneumologista não hesitou em descrevê-lo como um «derrame pleural bilateral recidivante e não responsivo a QT» num laudo médico em que pede mais fisioterapia.

Meu cirurgião torácico acha que meu caso é cirúrgico: uma decorticação (ou coisa assim) resolveria em definitivo este problema. Acontece que a tal decorticação consiste – grosso modo – em arrancar [um pedaço d]a pleura e, aderindo o pulmão diretamente à parede torácica, destruir a cavidade pleural, impedindo assim (de uma vez por todas, óbvio) o acúmulo de líquido nela. Soa-me mais ou menos como arrancar um dedo fora e depois dizer, com ares de eureka, que com isso ele definitivamente vai deixar de doer.

Não fiquei muito animado com a cirurgia. Sou cioso da minha pleura: por alguma razão Deus há-de a ter colocado lá. Gostaria sinceramente de preservá-la, e por isso estou apostando na fisioterapia respiratória e no combate à doença de base, ainda que isso seja lento e ainda que me obrigue a respirar mal a maior parte do tempo.]

Ontem fiz uma tomografia de controle, para comparar com a que realizei antes de iniciar o tratamento. Não tenho acesso às imagens (e nem sei se saberia interpretá-las), mas pela internet consigo olhar os laudos; a julgar pelas descrições, as coisas parecem ter melhorado. Preciso esperar ainda – é claro – o parecer médico, mas esses resultados preliminares são já animadores. Deo Gratias, e obrigado a todos os que estiveram e ainda estão rezando por mim.

Já estou há mais de uma semana aqui no hospital. O meu braço trombosado melhorou substancialmente: dói muito menos, e já está quase tão fino quanto o outro. A contagem de glóbulos brancos (esqueci de dizer: cheguei aqui com eles quase zerados, tive que ser colocado em isolamento reverso nos primeiros dias) está de novo em níveis normais. O derrame pleural está sob controle. Devo ter alta nos próximos dias.

Quase escrevo “espero não ter que voltar de novo”… Mas aprendi que essa vida de paciente é uma caixinha de surpresas, nem sempre agradáveis. É muito difícil fazer planos mesmo a curto prazo! Só uma coisa não pode faltar: que Deus me conceda sempre a fortaleza necessária para viver esses dias o melhor possível. Como mais de uma pessoa já me disse, é tempo da oração do Horto das Oliveiras. Preciso de humildade para repetir o si possibile est, transeat a me calix iste; e preciso da coragem para acrescentar, sempre, o verumtamen non sicut ego volo, sed sicut tu.