Por que não ataco o Papa Francisco? Ora, porque não sou papista!

As reações ao último texto daqui do blog ensejam uma reflexão oportuna. Sintetizando diversos comentários no mesmo sentido, um leitor acusou-me de escrever escondendo informações “importantes” e “embaraçosas” a respeito da atual situação da Igreja. Como exemplo paradigmático do tipo de informações que estão (no entender dele, injustificadamente) ausentes das minhas análises, ele afirmou o seguinte:

Você, por exemplo, nada comenta sobre a montanha de evidências que mostram o Papa Francisco favorável à comunhão dos recasados

Ora, isso não é de todo exato. Eu nada comento a respeito deste assunto e de outros correlatos, exceto quando é para dizer que aquilo de que acusam o Papa não é exatamente assim como estão dizendo — nestes casos, aliás, eu já comentei aqui muitíssimas vezes: à guisa de exemplo, eu poderia citar o que escrevi quando disseram que o Papa era a favor do desarmamento, que ele condenara taxativamente a pena de morte, que dissera que o inferno não existia e/ou eterno não era ou até mesmo — pasmem! — quando se levantou uma polêmica terrível, instaurada, claro, por S. S. o Papa Francisco, para se saber se os cãezinhos e gatinhos iam ou não para o Paraíso. Não é portanto exatamente verdade que eu nada comento sobre aquilo que é desabonador a Sua Santidade. O que é verdade — e que provavelmente é o que o autor do comentário quis dizer — é que eu não confiro ares de seriedade e importância a este tipo de informação. Não lhe concedo cidadania aqui no blog.

E isto, sim, eu assumo: não, não faço eco, não mesmo, aos boatos desabonadores a respeito do Vigário de Cristo, e nem acho que outras pessoas deveriam fazê-lo, porque isto — como disse ontem no comentário e desenvolvo melhor agora — é irrelevante para o Catolicismo, irreverente para com o Santo Padre e daninho às almas.

Em primeiro lugar é irrelevante porque o que o Papa pensa ou deixa de pensar privadamente, ou mesmo aquilo que ele insinua em conversas informais, não faz parte do Magistério da Igreja, não é de adesão obrigatória aos fiéis católicos e, portanto, não integra a “regra próxima da Fé” que deve ser seguida por todo fiel. O que o Papa diz (ou mesmo pensa) privadamente não interessa à Fé. Não faz o menor sentido, e para ninguém!, pretender que o Catolicismo seja uma religião que se constrói e apreende na coloquialidade com o Papa — ou, melhor dizendo, com o filtro que os meios de comunicação apresentam do Papa –, como se já não existissem montanhas de conhecimentos a respeito do Catolicismo, como se tudo isso não fosse desde sempre obrigatório a todo católico (inclusive ao Papa!) ou como se o Cristianismo de vinte séculos estivesse a todo momento periclitante, sempre dependendo da próxima entrevista pontifícia para ser confirmado ou ruir por terra.

A Doutrina Católica existe há dois mil anos! Ela não é uma terra virgem a ser desbravada — e só então conhecida –, palmo a palmo, pelas incursões midiáticas de Papa algum. O que o Papa Francisco supostamente disse — para ficar no exemplo mais recente — a respeito da Eucaristia para os luteranos não é elemento chave para a compreensão das regras católicas a respeito da communicatio in sacris. É deprimente até mesmo que isso esteja sendo discutido.

Ainda que o Papa fosse realmente favorável à comunhão dos recasados — concesso non dato –, corroborando a “montanha de evidências” que o meu leitor garante existir, ainda assim, isso em absolutamente nada alteraria as questões doutrinárias que estão na raiz da proibição da comunhão eucarística aos divorciados em segundas núpcias. A Doutrina Católica não está à mercê das entrevistas pontifícias, e hiperdimensionar estas manifestações informais do Romano Pontífice tem o único efeito de catalisar uma confusão que não deveria sequer existir (como se, caso o Papa “autorizasse” os divorciados recasados a comungarem, o adultério deixasse de ser pecado ou o estado de graça deixasse de ser pré-requisito para o acesso à Santíssima Eucaristia).

Agora, é mesmo o Papa pessoalmente favorável a isso ou aquilo? E se for? Façamos um pequeno exercício de imaginação. Se fôssemos imaginar um mundo em que não houvesse a facilidade das telecomunicações com as quais nos já acostumamos hoje em dia — e fazê-lo não é nem tão difícil, basta retrocedermos umas duas décadas –, se imaginássemos, dizia, um tal mundo, o que se poderia esperar de uma situação que fosse rigorosamente igual à presente (do Papa no encontro com os luteranos) em todo o resto? A esposa luterana desabafaria com o carismático líder católico, este lhe dirigiria algumas palavras anódinas de conforto e pronto. A coisa não ficaria sendo revivida e reproduzida, em texto, áudio e vídeo, nos quatro cantos do mundo, e nem ganharia a dimensão que adquire nos dias de hoje, com os teólogos de plantão esquadrinhando minuciosamente o discurso improvisado do Papa — e, pior ainda!, perscrutando-lhe implícitas intenções. Não se cogitaria de extrair contradições entre a resposta coloquial de Sua Santidade e a doutrina católica rígida e criteriosamente sistematizada nos manuais de teologia. Ora, a raiz do problema, aqui, decorre do fato (absolutamente contingente) de cada palavra do Papa ser gravada, reproduzida e analisada por um número indeterminado de pessoas e uma quantidade indefinida de vezes. Se a mesma balança pudesse ser aplicada aos Papas do passado… quem ousará dizer que Bergoglio seria o primeiro Papa a fazer-lhe o prato pender para o lado da ambiguidade?

“Papista” não é quem acha que se deva poupar o Papa do escrutínio católico. Papista, ao contrário, é quem imagina que todo e qualquer suspiro que o Papa solte, em toda e qualquer situação possível e imaginável, deva necessariamente conter a mais límpida, perfeita e impecável transmissão de toda a Doutrina Católica, sem a menor possibilidade de erro algum. E se, por acaso, o Papa falhar nesta exigência, então — diz o papista — qualquer um está autorizado a expôr a contradição, questionar a catolicidade do Papa e vaticinar um futuro terrível para a Igreja que se encontra tão mal representada.

E aqui chegamos ao segundo ponto, a irreverência. A regra da caridade para os católicos, da última vez que chequei, mandava creditar, aos outros, todo o bem de que se ouvisse minimamente falar, e não lhes atribuir senão o mal que fosse visto com os próprios olhos. Isso, que é devido a toda e qualquer pessoa, é elevado à sétima potência quando estamos falando dos membros da Igreja Docente e à “70 x 7″ª quando estamos diante do Vigário de Cristo!

“Quando se ama o Papa” — dizia São Pio X — “não se objeta que ele não falou muito claramente, como se ele estivesse obrigado a repetir diretamente no ouvido de cada um sua vontade e de exprimi-la não somente de viva voz, mas cada vez por cartas e outros documentos públicos”. E, principalmente, quando se ama o Papa (e, lembremo-nos, todo mundo está obrigado a amar o Papa!) não se faz dele o pior juízo possível, dirigindo-lhe — pelas costas e em público — os mais desabonadores epítetos existentes no mundo cristão.

Só no post imediatamente anterior a este o blog foi brindado com excelentes pérolas da espiritualidade cristã, como a referência ao “maldito Concílio Vaticano II (…) e os seus porcos documentos” ou ao “Sinédrio bergogliano”. Nos demais textos aqui publicados a respeito do Papa Francisco — por exemplo, nos que citei mais acima — são bastante recorrentes as invectivas ao Vigário de Cristo, referindo-se ao seu “desatino” ou às “asneira[s]” que ele fala, por exemplo. “Antipapa” e “herege” também aparecem aqui com relativa frequência, e eu muitas vezes apago — mas basta uma passagem rápida pelas páginas de comentários de outros blogs onde este comportamento, ao contrário daqui, é incentivado, para que se veja a institucionalização do desrespeito ao Soberano Pontífice e a violação sistemática do IV Mandamento erigida a exigência de bom catolicismo, fora da qual parece não ser possível encontrar a salvação.

Tal hábito — verdadeira segunda natureza em muitos — é daninho à salvação das almas, por diversas razões, das quais as três seguintes parecem-me de não pequena relevância. Primeiro porque o distintivo do cristão deve ser a caridade fraterna, e não a maledicência — e não há nada mais contrário à caridade cristã do que um bando de marmanjos na internet, qual comadres, xingando o Papa uns para os outros sem que disso advenha nada a não ser um estado de desconfiança cada vez maior para com o Romano Pontífice. E a submissão ao Romano Pontífice é absolutamente necessária à salvação de toda criatura humana, como reza a Unam Sanctam, e nada mais difícil do que submeter-se efetivamente ao Romano Pontífice quando parte substancial do seu apostolado é consumida nos xingamentos a ele, incitando contra ele o ódio e o desprezo.

Segundo porque isso afasta as pessoas da verdadeira Igreja, na medida em que, deparando-se com a histeria histriônica dos sedizentes últimos cavaleiros católicos do mundo lutando contra a abominação instaurada na Igreja Santa de Deus, e percebendo o quanto isso é ridículo, pessoas normais e sadias terminam por ser empurradas para o “lado oposto” do combate — e o lado oposto não é o Deus lo Vult!, blog de bem pequena relevância e alcance, mas sim o modernismo relativista mais abjeto. É, portanto, no mínimo, um erro de estratégia.

Terceiro e não menos importante, porque esta atitude retroalimenta, fortalece e legitima os relatos anticatólicos dos quais se nutre o progressismo eclesial, o qual, para se impôr, precisa valer-se de um “espírito” do Concílio (ou do “sínodo”), de uma “vontade” dos líderes da Igreja que se encontra para além dos textos e documentos oficiais. Este relato adquire tanto mais relevância e verossimilhança quanto mais pessoas sérias e alfabetizadas levantam as suas armas contra o conteúdo do relato ao invés de se baterem contra o relato em si mesmo — acusando-o de falso e mentiroso, de cretino e desonesto, de não corresponder à verdade e de ser uma tentativa sórdida e canalha de ganhar a guerra do discurso uma vez perdida a guerra da doutrina, como seria de se esperar. Ora, se aceitamos em público que existe realmente um espírito do Vaticano II anticatólico (ao invés de dizer que isso é uma invenção dos inimigos de Cristo para fazer valer a sua própria vontade contra a Igreja), ou qualquer outro conceito do tipo, nós já entramos no combate concedendo ao inimigo um amplíssimo terreno ao qual ele, absolutamente, não faz jus.

A Igreja de Cristo, fora da qual não há salvação e nem santidade, é aquela formada por uma tríplice comunhão: de Fé, de Sacramentos e de Governo. Isto é matéria do Catecismo das crianças. E a comunhão “de Governo” se manifesta na submissão às mesmas autoridades legítimas, em particular ao Santo Padre, o Papa. Ora, é verdadeiramente esquizofrênico imaginar que a submissão ao Papa seja compatível com a incitação à desconfiança para com o próprio Papa. E pretender que esta sujeição não seja necessariamente visível e concreta — a um Papa visível e de carne e osso, portanto — é requentar concepções eclesiológicas já condenadas desde o Concílio de Trento. A grande discussão do mundo católico contemporâneo — a discussão verdadeiramente importante — não pode ser esta besteira de caçar interpretações heterodoxas nos discursos [de improviso] do Papa e nem a inconsequência de perscrutar as intenções do Romano Pontífice por detrás do [que os meios de imprensa apresentam do] seu dia-a-dia. Se a alta intelectualidade católica encontra-se reduzida a isso… então estamos muito pior do que nos demos conta, e surge aos nossos olhos, com horror, aquela perturbadora pergunta de Cristo a respeito de se o Filho do Homem, quando retornar, encontrará acaso ainda Fé sobre a terra.