Cuba e os deveres para com a pátria

“O Estado controla tudo” e “a única esperança de vida para as pessoas é fugir da ilha”, explicou o núncio Musarò, descrevendo a situação de degradação, penúria e opressão dos cubanos. E concluiu dizendo que, inexplicavelmente, “até hoje, transcorrido mais de meio século, continua-se falando da Revolução e se louva-a, enquanto as pessoas não têm trabalho e não sabem como fazer para dar de comer a seus próprios filhos”.

Recebi por email a notícia sobre o núncio e a manchete jornalística. O artigo italiano original está aqui. Não faltou quem dissesse que o prelado devia ser expulso do paraíso caribenho. O fato pode ser novo, mas o drama é antigo; não nos surpreende mas, contudo, ainda nos choca e incomoda.

Lembro-me de um fato curioso da minha adolescência. Eu devia ter lá os meus dezesseis anos; conversava com alguns amigos sobre Cuba, e o assunto versava sobre os cubanos que se lançavam, mar afora, em fuga desesperada da ilha de Castro – sim, já naquela época os cubanos fugiam de Cuba. Um amigo defendeu que, de fato, Cuba não devia permitir que os seus cidadãos abandonassem o país. A justificativa: o governo cubano investia pesadamente na formação dos cubanos, suprindo-lhes as necessidades e (principalmente) dando-lhes educação de qualidade, e simplesmente não era justo que, depois de quinze ou vinte anos recebendo tudo do Estado, os cubanos dessem-lhe as costas e fossem embora, privando-o do retorno que ele esperava e merecia receber.

Não vou entrar no mérito das necessidades supridas ou da qualidade da educação cubana. Vou assumir, para argumentar, que lá na Ilha todos vivam no mais perfeito conforto material e, além disso, recebam, efetivamente, uma educação de ponta. Isso posto, a justificativa procede? Veja-se bem, o dinheiro do Estado é dinheiro público. Teoricamente, foi todo o povo cubano que sacrificou uma parte das suas economias para que um indivíduo recebesse a mais elevada formação científica. Não existe nenhuma dívida desse sujeito para com o povo que o financiou ao longo de sua vida inteira? É correto você tornar-se um profissional altamente qualificado às custas de seus conterrâneos e, depois, deixá-los à própria sorte? Não é justo que as pessoas recebam os benefícios do profissional por cuja formação pagaram?

Não lembro que objeção levantei à época, ou mesmo se levantei alguma. Se a conversa fosse hoje, no entanto, eu perguntaria ao meu amigo se ele estaria disposto a aplicar o mesmo raciocínio para o caso – banal e prosaico – da formação profissional do sujeito ter sido paga não pelo Estado, mas por papai e mamãe. Não têm direito os pais de se beneficiarem, de algum modo, do sucesso dos seus filhos, cuja possibilidade foi por eles proporcionada? Ou quando o Estado exige algo para si é um férreo dever de justiça, mas quando são os pais a reclamarem um quinhão dos haveres dos seus filhos, aí então passa a ser uma opressão medieval do patriarcado que se deve combater a todo custo, uma anacrônica ingerência na livre-determinação dos indivíduos que não pode mais encontrar lugar no nosso século XXI? Alguém seria capaz de defender que um pai proibisse seu filho de deixar a sua cidade natal? Por que, então, há quem defenda com tanto ardor que um país proíba os seus cidadãos de emigrarem?

Reconheço, em suma, certo fundamento no arrazoado; mas não ao ponto de justificar as violações ao direito de ir e vir que as autoridades cubanas praticam há décadas – violações de que desde a minha adolescência, a propósito, eu ouço falar. Sim, há deveres do homem para com a sua pátria; mas não um dever tal cujo cumprimento exija o sacrifício das liberdades individuais mais básicas. A pátria não se confunde com a configuração política da ocasião; patriotismo não é subserviência ao Estado.

É por motivos como esse, aliás, que não vejo com bons olhos que o Estado tome para si, de ordinário, a responsabilidade (quase) integral pelo sustento e formação dos cidadãos: a quem não foi financiado pela ditadura Castro, esta não pode – nem com aparência de propriedade! – exigir os sacrifícios que impõe aos que, de outra sorte, lhe devem algo. O mesmo raciocínio se aplica, guardadas as devidas proporções, para qualquer estrutura política cuja hipertrofia enseje certa desconfiança: que cada um tome cuidado para não depender em excesso dos poderosos do mundo! Mais sábio é, para usar os versos do Rostand, ser responsável por si próprio a ponto de «se acaso a glória entrar pela janela, / a César não dever a mínima parcela».

Questão: Dinheiro público para evento católico

Foi perguntado aqui no blog:

[A] deputada da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, Myrian Rios, destinou 5 milhões de reais para o evento católico denominado Jornada Mundial da Juventude. Myrian Rios é do movimento carismático da Igreja Católica. Houve aqui um claro privilégio à religião católica.

Segundo sua lógica, para que fosse possível essa alocação orçamentária, a AL do Rio deveria ter oferecido também 5 milhões de reais a todas as outras denominações religiosas no Brasil.

O que dizer?

Simples: em geral, os investimentos públicos são direcionados para projetos que tenham interesse social – o que é precisamente o caso aqui. Na mensagem que acompanha a Proposta Orçamentária 2013 da Cidade do Rio de Janeiro, pode-se ler o seguinte:

Está previsto a implementação de ações que visem e preparem a Cidade para receber o enorme contingente de turistas que nos visitarão por ocasião dos grandes eventos que ocorrerão durante o exercício, notadamente a Jornada Mundial da Juventude e a Copa FIFA das Confederações.

[…]

Será prioridade da SMTR a elaboração dos Planos Operacionais de Transporte Público para a Jornada Mundial da Juventude e para a Copa do Mundo de 2014.

A Companhia de Engenharia de Tráfego do Município do Rio de Janeiro – CET RIO pretende consolidar a operação de tráfego na cidade com reforço nas áreas identificadas como mais críticas, além do atendimento dos megaeventos “Copa das Confederações”, “Jornada Mundial da Juventude” e “Rock in Rio – 2013”.

Ou seja:

Este dinheiro é para financiar a passagem de católicos que virão do mundo todo para o Rio de Janeiro? Não, é para melhorar a infra-estrutura da cidade de modo que ela possa comportar os fiéis que virão por conta própria.

Este dinheiro é pra pagar espórtulas às centenas de sacerdotes que, ao longo desses dias, estarão ministrando os Sacramentos católicos? Não, é para elaborar planos de transporte público que permitam aos leigos e sacerdotes católicos se locomoverem pelo Rio de Janeiro ao longo dos dias do evento.

Este dinheiro será enviado à Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, à Sé Primacial do Brasil ou ao Vaticano? Não, será voltado para melhorias da própria cidade do Rio de Janeiro.

Sob que lógica, portanto, é possível dizer que se está usando dinheiro público para fins privados? Nenhuma. É pura implicância da mídia anti-clerical.

Ainda: dizer que, por isonomia, o Estado deveria conceder valor equivalente às outras denominações religiosas brasileiras é rigorosamente o mesmo que criticar o dinheiro gasto na Copa das Confederações e sustentar que a Prefeitura deveria destinar o mesmíssimo valor a competições de basquete, vôlei de praia, turfe e ping-pong, entre dezenas de outros esportes existentes no Brasil.

Dizer que, por conta da JMJ, o Estado deveria oferecer recursos públicos às outras denominações religiosas brasileiras é equivalente a condenar o Rock in Rio e dizer que, para destinar-lhe dinheiro público, a Prefeitura tinha a obrigação moral de financiar igualmente, entre muitos outros, o “Jazz in Rio”, o “Funk in Rio” e (neste tempo de minorias, por que não?) o “Fado in Rio” e o “Can-Can in Rio”.

Por fim, afirmar que só seria possível à Prefeitura do Rio de Janeiro (e, por extensão, a qualquer órgão da Administração Pública) reservar uma parte do seu orçamento para um projeto católico caso reservasse igualmente a mesma quantia para projetos de (todas as) outras denominações religiosas é inviabilizar completamente qualquer gestão municipal (ou estadual ou federal), porque aí ninguém ia poder destinar dinheiro para asfaltar uma rua sem simultaneamente destinar o mesmo para asfaltar todas as outras ruas da cidade, ninguém poderia reformar uma escola ou equipar um hospital sem ao mesmo tempo oferecer a mesma quantia para reformar todas as outras escolas e todos os outros hospitais do município, et cetera – o que é um patente absurdo.

Na verdade, a destinação de recursos públicos para projetos de fomento à cultura, ao turismo, ao lazer e congêneres segue políticas públicas específicas, com normas próprias emanadas pelas autoridades competentes. Obviamente não é necessário (e nem sequer é possível) que todos os projetos do mundo recebam sempre igual financiamento para garantir a isonomia do processo de concessão de verba pública; basta que todos eles possam se candidatar e concorrer em igualdade de condições. É somente esta última proposição que se refere aos princípios (nos quais não pode haver privilégios injustificados), porque a destinação concreta de um orçamento concreto, por definição, não é mais um princípio e sim um caso concreto. E é bastante óbvio que os casos concretos não precisam conter em si todas as aplicações possíveis dos princípios (o que aliás é uma impossibilidade lógica): basta que não os contradigam. Como este caso da JMJ não os contradiz.

Por fim, somente como parêntese, eu particularmente considero que em certas áreas não é papel do Estado atuar, como por exemplo (o que aparentemente não é o caso aqui, mas poderia ser) em projetos de “cultura”. Ao contrário, penso que cultura é iniciativa “de baixo pra cima” que, simplesmente, não pode ser produzida à força de investimentos. Melhor seria se o Estado nos aliviasse um pouco a carga tributária e nos deixasse mais folgados para exercitarmos nossa produção cultural por conta própria. No entanto, havendo (como há) políticas públicas para incentivar a cultura, aí não pode haver nenhum tipo de discriminação entre os projetos que podem receber estas verbas: em particular, pouco importa se a iniciativa é católica, protestante, budista, ateísta, seicho-no-ie, umbandista ou o que seja. E, até onde eu saiba, é assim que as coisas funcionam  por aqui: ao menos na questão dos princípios, não há incoerência que precise ser justificada.

Os Poderes Públicos diante dos maus hábitos e das virtudes

Descobri na leitura desta notícia três coisas que me deixaram estarrecido. A primeira: a zoofilia é legalizada na Alemanha desde 1969 (!), seja lá o que isto signifique. A segunda: há mais zoófilos na Alemanha (a «comunidade zoófila da Alemanha [é] estimada em mais de 100 mil pessoas», segundo a notícia) do que gays em San Francisco. E a terceira é que esta depravação só está sendo combatida «como parte de uma emenda à lei de proteção aos animais do país» – como se o horror do bestialismo estivesse não no homem que avilta sua própria dignidade ao cometê-lo, mas no animal que pode estar sofrendo maus tratos!

A faculdade sexual do ser humano (como a de todos os animais) está obviamente ordenada à perpetuação da espécie humana, assim como a faculdade alimentar está evidentemente ordenada à preservação do indivíduo. A negação desta verdade cristalina só se tornou possível depois da cortina de fumaça moderna, que passou a confundir deliberadamente os fins objetivos do aparelho reprodutor com os gostos e desgostos subjetivos dos que o empregam para outras finalidades menos nobres. Assim, a contracepção, o sexo livre, o homossexualismo, a zoofilia, a necrofilia e todas as outras taras sexuais humanas imagináveis têm, todas, um só e o mesmo vício de fundo, que é uma radical negação da sexualidade humana.

Entenda-se: o que é apanágio dos nossos tempos não são estas depravações em si, mas a recusa mesma de considerá-las depravadas. Naturalmente, estes maus hábitos sempre existiram, porque desde que o mundo é mundo o Pecado Original encontra terra fértil na natureza humana decaída para degenerar em toda sorte de flores fétidas e frutos pútridos. Acontece que a valoração moral de um ato humano deve ser feita a partir da sua adequação maior ou menor à ratio divina (ou à Lei Natural, como prefiram os mais preconceituosos), e não tomando por base meramente a sua ocorrência ao longo da história humana. O fratricídio é tão antigo quanto Caim e Abel, e nem por isso se vêem (ao menos não ainda) os “doutos” dos nossos tempos pleiteando a sua legalização por se tratar de prática onipresente na humanidade.

Certos hábitos, conquanto sejam maus, devem ser tolerados pelos poderes públicos: assim, p.ex., o onanismo, mesmo sendo uma flagrante deturpação do ato conjugal, não precisa ser tipificado em nenhum Código Penal positivo. A maus hábitos alimentares, p.ex., de ordem privada, a legislação positiva pode e até deve fazer vista grossa. O problema ocorre quando um grupo confunde os seus vícios com direitos legítimos e passa a exigir à sociedade que lhes conceda absoluto amparo legal. Maus hábitos sempre existiram; mas a insistência doentia em tratá-los (e à força) como virtudes é degradantemente moderna.

Não existe nenhuma obrigação imposta aos homens de serem virtuosos, afora aquela de ordem moral sentenciada pessoalmente por Deus e da qual ninguém pode jamais se furtar. O Estado não está aí para forçar os homens à prática das virtudes e, portanto, é razoável e legítimo que certos vícios “possam” (no sentido de não serem puníveis legalmente) ser praticados pelos cidadãos; não obstante, o mesmo Estado tem o dever de facilitar aos seus súditos o exercício das virtudes e, portanto, é legítimo e razoável que reprima os vícios. É esta a razão pela qual uma coisa pode [e muitas vezes deve] simultaneamente ser tolerada enquanto prática individual e condenada enquanto ideologia pública. Do fato de não ser Deus o Estado, segue-se que um homem tem um certo “direito” de se degradar; do fato do Estado existir em vistas ao bem comum, segue que tem um certo dever de proteger os seus cidadãos daquilo que é degradante. Agir de outra maneira é trair o seu papel de Estado e converter-se em uma estrutura voltada não para o bem, mas para o prejuízo dos que vivem sob ela.

E, aqui, deve-se opôr à tagarelice moderna a autoridade dos fatos e do bom senso. Não se pode admitir, sob o pretexto de respeito às liberdades individuais, que as coisas evidentes sejam postas em discussão e – pior ainda! – que o nonsense chegue ao cúmulo de orientar a vida política de um país. Se uma pessoa não consegue entender que (p.ex.) a coprofagia ou o bestialismo são degradantes, isto é problema dela; mas se esta mesma pessoa quer ditar a organização da vida em sociedade conforme a sua (peculiaríssima) visão de mundo, isto é problema de todos. Há uma oposição radical e irreconciliável entre vícios e virtudes, que não desaparece se gente fingir que ela não existe ou passar a chamar de virtudes o que vícios são. Sem este entendimento claro ninguém pode governar legitimamente, por mais que digam o contrário os “intelectuais” modernos – que, na verdade, não são mais do que bárbaros em franco e aberto ataque à civilização; e que, como tais, devem ser combatidos.

“Princípios e Atitudes” – Dom Fernando Rifan

PRINCÍPIOS E ATITUDES

Dom Fernando Arêas Rifan*

Em meio a tantos pareceres equivocados e diante da possibilidade da reforma do Código Penal descriminalizar o aborto, começando pelos fetos portadores de anencefalia, e a eutanásia, recordamos os princípios da doutrina católica e do direito natural sobre o assunto: A vida humana é sagrada, – não porque as leis e decisões judiciais humanas o determinam, – mas porque desde a sua origem ela encerra a ação criadora de Deus e permanece para sempre numa relação especial com o Criador. Só Deus é o dono da vida, do começo ao fim; ninguém, em nenhuma circunstância, pode reivindicar para si o direito de destruir diretamente um ser humano inocente (cf. CIC 2258 – Donum vitae, 5).

A vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir do momento da concepção até o seu fim natural. Desde o primeiro momento da sua existência, o ser humano deve ver reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo ser inocente à vida (cf. CIC 2270 – Donum vitae, I,1). Esses direitos inalienáveis da pessoa devem ser reconhecidos e respeitados pela sociedade civil e pela autoridade política, não dependem nem dos indivíduos, nem dos pais, pertencem à natureza humana e são inerentes à pessoa em razão do ato criador do qual esta se origina (cf. CIC 2272 – Donum vitae, 3).

A criança anencélafa é uma pessoa viva. A sua reduzida expectativa de vida não limita seus direitos e sua dignidade. Por isso, o aborto direto provocado, quer dizer, querido como um fim ou como um meio, em qualquer circunstância, é gravemente contrário à lei moral, pois se trata de tirar diretamente a vida de um ser humano inocente, o que nada pode justificar (cf. CIC 2271). Desde o início, o nascituro é uma pessoa própria, cujo círculo de direitos ninguém deve violentar, nem o Estado, nem o médico, nem mesmo a mãe. Se uma pessoa já não está segura no seio de sua mãe, onde então estará ela ainda segura neste mundo? Proteger a vida inocente pertence às mais nobres tarefas do Estado; se ele se furtar a esta missão, destrói ele próprio os alicerces do Estado de direito (cf. Youcat, 384). Nem ele pode se sujeitar a pressões de quaisquer organismos internacionais. Isso seria contra a sua soberania e o seu dever.

Por isso também, a eutanásia direta, que consiste em pôr fim à vida de pessoas deficientes ou de moribundos, sejam quais forem os motivos e os meios, é moralmente inadmissível (cf. CIC 2277).

Tais princípios e atitudes deles decorrentes provêm não só da doutrina católica, mas do próprio direito natural, da lei natural que obriga a todos os homens, em razão da sua natureza. Assim sendo, exortamos aos católicos, aos nossos políticos e a todas as pessoas de boa vontade e de influência na sociedade que se manifestem aos ministros do Supremo Tribunal Federal em favor da vida e contra qualquer decisão que possa acarretar a liberação do aborto. Se acontecer o mal, não o será com a nossa colaboração ou por causa da nossa omissão.

* Bispo da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney

O laicismo, empecilho ao bem comum

“Todas as criaturas devem louvar a Deus. Ora, o Estado é uma criatura; logo, o Estado deve louvar a Deus”. O silogismo já me foi apresentado algumas vezes, embora eu não saiba afirmar com certeza de quem é sua autoria. Independente desta, no entanto, é forçoso concordar com a clareza do raciocínio. A maior e a menor estão adequadamente dispostas e relacionadas e, portanto, a conclusão se impera. Sim, o Estado deve louvar a Deus.

De que maneira deve o Estado louvar a Deus? O Estado Confessional é a primeira forma de concretização deste dever que nos vem à mente. Eu próprio, no entanto, tenho dúvidas sobre se esta é a única forma de fazer com que o Estado louve ao Todo-Poderoso como deve louvar. Ora, imagino que esteja fora de discussão que, se o Estado é uma criatura, não o é da mesma maneira que o próprio homem é uma criatura. Os seres racionais – o homem, os anjos – louvam a Deus com a sua inteligência e a sua vontade. Os animais, vegetais e seres inanimados louvam a Deus cumprindo com aquilo que a Divina Providência estabeleceu que eles realizassem: as abelhas construindo colmeias, as aves, ninhos, as plantas crescendo e dando flores ou frutos, os astros movendo-se lentamente no céu. Em uma palavra: cada criatura louva a Deus fazendo aquilo que lhe é próprio, aquilo que compete à sua natureza.

E qual a natureza do Estado? Não sei se Santo Tomás de Aquino o fala expressamente. Sei, contudo, que o Aquinate fala sobre a lei humana e, retomando Santo Isidoro, sentencia: “A lei deve ser honesta, justa, possível segundo a natureza e os costumes do país, proporcional aos lugares e aos tempos, necessária, útil. Deve também ser clara, para que não haja enganos escondidos em sua obscuridade. Deve estar direcionada não para o proveito privado, e sim para a utilidade comum dos cidadãos” (Summa, I-IIae, q.95, a.3). Julgo oportuno ficarmos com estes conceitos, que são mais genéricos. O homem é um ser político por natureza, como dizia Aristóteles, mas isso não implica necessariamente na existência dos Estados no sentido que o termo possui hoje em dia. É necessário haver, sim, a comunidade política que possibilite a vida em sociedade. Mas não é necessário que esta comunidade política seja o Estado.

Ora, se o objetivo da comunidade política – das leis humanas – é, em resumo, ordenar a vida em sociedade tendo em vista o bem comum dos indivíduos, segue-se ser esta a natureza do Estado. Este, portanto, não precisa adoptar expressamente o Catolicismo Romano como Religião Oficial para que louve a Deus (o que não significa que ele não possa adoptá-lo, mas aí é outra discussão). Cumprindo o Estado com os seus objetivos e esforçando-se por atingir os fins para os quais existe, Deus está sendo louvado por meio dele.

Os objetivos do Estado, no entanto, estão intimamente relacionados ao bem dos seus cidadãos. E estes, ao contrário do Estado, são seres dotados de personalidade, de inteligência e de vontade e, portanto, precisam louvar a Deus com tudo o que possuem – o que, para eles, significa aderir visivelmente à Igreja fundada por Deus, a Católica Apostólica Romana. O Estado não tem, portanto, o direito de dificultar aos seus súditos o ingresso na Religião verdadeira e a sua prática ao longo da vida. Ao contrário: já que tem por obrigação servir ao bem comum objetivo e, para os homens, o bem é serem católicos, o Estado deve colaborar com a Igreja para facilitar-Lhe a missão evangelizadora. Sem isso, o Estado não está cumprindo com as suas atribuições.

O Laicismo é, portanto, um grande mal. Um mal que dificulta aos homens (quando não os priva completamente de) terem acesso às realidades sobrenaturais, que são parte integrante de sua natureza e conditio sine quae non para que se possa falar em “bem” para eles. E assim, portanto, o Laicismo é um atentado contra o próprio Estado, contra a sua própria razão de ser, na medida que o impede de prover integralmente o bem de seus súditos. Foi isso que o Papa falou na Espanha. É isso que o mundo precisa entender.

O “grave dever” dos bispos de orientarem os fiéis também em questões políticas – discurso de Bento XVI aos bispos da Regional Nordeste 5

Porém, sempre lhe deve ser permitido [à Igreja] pregar com verdadeira liberdade a fé; ensinar a sua doutrina acerca da sociedade; exercer sem entraves a própria missão entre os homens; e pronunciar o seu juízo moral mesmo acerca das realidades políticas, sempre que os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem (Gaudium et Spes, 76).

A comunidade política e a Igreja não se confundem, porque ambas têm fins próprios e distintos e têm em si os meios necessários para alcançar estes fins: o Estado serve para cuidar da ordem temporal e, a Igreja, da ordem espiritual. O Estado existe para servir à sociedade e, a Igreja, para levar os homens ao Céu. Nas palavras da Gaudium et Spes, “[n]o domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são independentes e autónomas” (id. ibid.). Esta é a boa doutrina católica.

No entanto, embora não se confundam, Estado e Igreja também não são duas realidades completamente distintas, sem nenhum ponto de intersecção entre elas: afinal, os homens que fazem parte da sociedade são os exatos mesmos homens que a Igreja tem a missão de guiar neste mundo. Os domínios temporal e espiritual são distintos, mas o homem faz parte de ambos. É na realidade humana, portanto, que Fé e Política se tocam. A política tem o dever de facilitar ao homem o cumprimento de sua vocação sobrenatural. Em contrapartida, a Fé tem também o dever de defender a dignidade humana inclusive nos seus aspectos temporais, quando esta é ameaçada. Esta, repito, é a boa doutrina católica.

Têm, portanto, os pastores – os bispos! – o dever de emitir juízos morais também sobre as realidades políticas, quando as circunstâncias assim o exigirem. E foi isso que o Papa recordou hoje, em discurso aos bispos brasileiros do Regional Nordeste 5 da CNBB. O discurso de Pedro veio corroborar aquilo que alguns prelados corajosos fizeram no Brasil ao longo dos últimos meses: denunciar as mazelas morais do Partido dos Trabalhadores, bem como a intrínseca e radical incompatibilidade entre o programa político deste partido e a dignidade da pessoa humana e, portanto, a proibição moral de que se apóie tal partido com o próprio voto.

Os bispos têm não apenas o direito, mas também o dever, de emitir juízos morais sobre as realidades políticas – é o Papa quem o diz com todas as letras! E quantos prelados no Brasil cumpriram com este “grave dever”? Quantos outros, ao contrário, preferiram silenciar, ou confundir os fiéis com declarações contrárias à realidade dos fatos, ou ainda – pior! – tentaram calar as vozes proféticas que se levantaram em defesa da dignidade humana ameaçada pelas políticas imorais do partido que ora se encontra no Governo do Brasil? A estes, o Papa manda um (nada) sutil recado: tínheis um dever a cumprir, e não o fizestes. Calastes, quando devíeis levantar a vossa voz bem alto para defender a dignidade humana ameaçada. Silenciastes diante das iniqüidades de César.

E o Papa vai além, ao afirmar que não é possível falar em avanços sociais se os direitos básicos da pessoa humana são violados. Não são lícitos os projetos políticos, econômicos ou sociais – por mais justos que se apresentem – que não contemplem a radical defesa da vida humana da concepção à morte natural. A defesa do aborto, velada ou aberta, não pode ser aceita sob nenhuma justificativa, e é dever dos bispos dizer isso com toda a clareza possível, sem temer qualquer tipo de impopularidade ou oposição. É o Papa que fala aos bispos do Brasil, às vésperas do Segundo Turno das eleições presidenciais. É Bento XVI que vem em socorro dos bispos fiéis desta Terra de Santa Cruz, que não trocaram o múnus episcopal por conluios promíscuos com este mundo. E não se calaram, quando a situação exigiu que suas vozes se levantassem em defesa da vida humana ameaçada. Bento XVI hoje diz: eles só cumpriram com um seu dever.

Estamos às vésperas do pleito. Que as palavras do Doce Cristo na Terra possam encontrar eco nos corações de todos os brasileiros de bem. E que as luzes do Espírito Santo possam iluminar o entendimento dos eleitores do próximo dia 31: que eles entendam que certos valores são inegociáveis, e não podem ser aceitos sob nenhuma justificativa.

Segue abaixo, o discurso do Papa [p.s.: versão oficial na Rádio Vaticana]. Todos os grifos são meus. E que Nossa Senhora Aparecida salve o Brasil.

P.S.: Não deixe de ler também: Bento XVI defenderá hoje ação política da Igreja contra o aborto.

* * *

Amados Irmãos no Episcopado,

«Para vós, graça e paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo» (2 Cor 1, 2). Desejo antes de mais nada agradecer a Deus pelo vosso zelo e dedicação a Cristo e à sua Igreja que cresce no Regional Nordeste 5 [cinco]. Nos nossos encontros, pude ouvir, de viva voz, alguns dos problemas de caráter religioso e pastoral, além de humano e social, com que deveis medir-vos diariamente. O quadro geral tem as suas sombras, mas tem também sinais de esperança, como Dom Xavier Gilles acaba de referir na saudação que me dirigiu, dando livre curso aos sentimentos de todos vós e do vosso povo.

Como sabeis, nos sucessivos encontros com os diversos Regionais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, tenho sublinhado diferentes âmbitos e respectivos agentes do multiforme serviço evangelizador e pastoral da Igreja na vossa grande Nação; hoje, gostaria de falar-vos de como a Igreja, na sua missão de fecundar e fermentar a sociedade humana com o Evangelho, ensina ao homem a sua dignidade de filho de Deus e a sua vocação à união com todos os homens, das quais decorrem as exigências da justiça e da paz social, conforme à sabedoria divina.

Entretanto, o dever imediato de trabalhar por uma ordem social justa é próprio dos fiéis leigos, que, como cidadãos livres e responsáveis, se empenham em contribuir para a reta configuração da vida social, no respeito da sua legítima autonomia e da ordem moral natural (cf. Deus caritas est, 29). O vosso dever como Bispos junto com o vosso clero é mediato, enquanto vos compete contribuir para a purificação da razão e o despertar das forças morais necessárias para a construção de uma sociedade justa e fraterna. Quando, porém, os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem, os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas (cf. GS, 76).

Ao formular esses juízos, os pastores devem levar em conta o valor absoluto daqueles preceitos morais negativos que declaram moralmente inaceitável a escolha de uma determinada ação intrinsecamente incompatível com a dignidade da pessoa; tal escolha não pode ser resgatada pela bondade de qualquer fim, intenção, conseqüência ou circunstância. Portanto, seria totalmente falsa e ilusória qualquer defesa dos direitos humanos políticos, econômicos e sociais que não compreendesse a enérgica defesa do direito à vida desde a concepção até à morte natural (cf. Christifideles laici, 38). Além disso no quadro do empenho pelos mais fracos e os mais indefesos, quem é mais inerme que um nascituro ou um doente em estado vegetativo ou terminal? Quando os projetos políticos contemplam, aberta ou veladamente, a descriminalização do aborto ou da eutanásia, o ideal democrático – que só é verdadeiramente tal quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana – é atraiçoado nas suas bases (cf. Evangelium vitae, 74). Portanto, caros Irmãos no episcopado, ao defender a vida «não devemos temer a oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambigüidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo» (ibidem, 82).

Além disso, para melhor ajudar os leigos a viverem o seu empenho cristão e sócio-político de um modo unitário e coerente, é «necessária — como vos disse em Aparecida — uma catequese social e uma adequada formação na doutrina social da Igreja, sendo muito útil para isso o “Compêndio da Doutrina Social da Igreja”» (Discurso inaugural da V conferência Geral do Episcopado Latino Americano e do Caribe, 3). Isto significa também que em determinadas ocasiões, os pastores devem mesmo lembrar a todos os cidadãos o direito, que é também um dever, de usar livremente o próprio voto para a promoção do bem comum (cf. GS, 75).

Neste ponto, política e fé se tocam. A fé tem, sem dúvida, a sua natureza específica de encontro com o Deus vivo que abre novos horizontes muito para além do âmbito próprio da razão. «Com efeito, sem a correção oferecida pela religião até a razão pode tornar-se vítima de ambigüidades, como acontece quando ela é manipulada pela ideologia, ou então aplicada de uma maneira parcial, sem ter em consideração plenamente a dignidade da pessoa humana» (Viagem Apostólica ao Reino Unido, Encontro com as autoridades civis, 17-IX-2010).

Só respeitando, promovendo e ensinando incansavelmente a natureza transcendente da pessoa humana é que uma sociedade pode ser construída. Assim, Deus deve «encontrar lugar também na esfera pública, nomeadamente nas dimensões cultural, social, econômica e particularmente política» (Caritas in veritate, 56). Por isso, amados Irmãos, uno a minha voz à vossa num vivo apelo a favor da educação religiosa, e mais concretamente do ensino confessional e plural da religião, na escola pública do Estado.

Queria ainda recordar que a presença de símbolos religiosos na vida pública é ao mesmo tempo lembrança da transcendência do homem e garantia do seu respeito. Eles têm um valor particular, no caso do Brasil, em que a religião católica é parte integral da sua história. Como não pensar neste momento na imagem de Jesus Cristo com os braços estendidos sobre a baia da Guanabara que representa a hospitalidade e o amor com que o Brasil sempre soube abrir seus braços a homens e mulheres perseguidos e necessitados provenientes de todo o mundo? Foi nessa presença de Jesus na vida brasileira, que eles se integraram harmonicamente na sociedade, contribuindo ao enriquecimento da cultura, ao crescimento econômico e ao espírito de solidariedade e liberdade

Amados Irmãos, confio à Mãe de Deus e nossa, invocada no Brasil sob o título de Nossa Senhora Aparecida, estes anseios da Igreja Católica na Terra de Santa Cruz e de todos os homens de boa vontade em defesa dos valores da vida humana e da sua transcendência, junto com as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens e mulheres da província eclesiástica do Maranhão. A todos coloco sob a Sua materna proteção, e a vós e ao vosso povo concedo a minha Benção Apostólica.

Benedictus PP. XVI

A imprensa – enfim! – [parece] se levanta[r]

“O que estará em jogo, no dia 3 de outubro, não é apenas a continuidade de um projeto de crescimento econômico com a distribuição de dividendos sociais. Isso todos os candidatos prometem e têm condições de fazer. O que o eleitor decidirá de mais importante é se deixará a máquina do Estado nas mãos de quem trata o governo e o seu partido como se fossem uma coisa só, submetendo o interesse coletivo aos interesses de sua facção”.

Estado de São Paulo – Editorial 26/09/2010

O parágrafo em epígrafe foi publicado no Estadão, em resposta à declaração do presidente Lula de que a imprensa “se comporta como um partido político”. Leiam o texto acima na íntegra, que é muito sério e reflete um risco real que a nossa Pátria corre.

Poucos dias antes, foi lançado em São Paulo o Movimento pela Democracia, no Largo de São Francisco, que contou com a presença de “[j]uristas, atores e intelectuais”. O manifesto foi um verdadeiro sucesso e, em cinco dias, já está na reta das cinqüenta mil assinaturas. Nele, constam nomes com o de Hélio Bicudo, Ferreira Gullar e D. Paulo Evaristo Arns.

O Manifesto em Defesa da Democracia está muito bem escrito. Nele, podem ser lidas coisas como “É intolerável assistir ao uso de órgãos do Estado como extensão de um partido político, máquina de violação de sigilos e de agressão a direitos individuais. […] É um insulto à República que o Poder Legislativo seja tratado como mera extensão do Executivo, explicitando o intento de encabrestar o Senado. É deplorável que o mesmo Presidente lamente publicamente o fato de ter de se submeter às decisões do Poder Judiciário”. E arremata: “Brasileiros erguem sua voz em defesa da Constituição, das instituições e da legalidade”.

O site do Manifesto – acessem para assinar – reúne também diversos artigos publicados na mídia sobre o mesmo assunto, com as mesmas preocupações. Quando até os grandes responsáveis pela situação atual do Brasil reconhecem o monstro que criaram e vêm a público clamar contra ele, é porque a situação está realmente crítica.

Convenientemente, o site está inacessível quando escrevo este post, com uma mensagem de “Error establishing a database connection”. Por quais motivos, eu não saberia dizer. Mas que é suspeito, ah, isso é…

É preciso fundar a lei positiva sobre os princípios da Lei Natural – Bento XVI

Em 5 de junho, em Nicósia, capital da Ilha [do Chipre], comecei a segunda etapa da viagem, visitando o presidente da República, que me acolheu com grande cortesia. Ao encontrar as autoridades civis e o Corpo diplomático, reiterei a importância de fundar a lei positiva sobre princípios éticos da lei natural, com o fim de promover a verdade moral na vida pública. Foi um apelo à razão, baseado sobre princípios éticos e carregado de implicações exigentes para a sociedade de hoje, que muitas vezes não reconhece mais as tradições culturais sobre as quais está fundada.

Bento XVI
Audiência-Geral da quarta-feira, 09 de junho de 2010

* * *

Os antigos filósofos gregos nos ensinam que o bem comum é servido precisamente através da influência de pessoas dotadas de clara visão moral e coragem. Desse modo, as ações políticas devem ser purificadas dos interesses egoístas ou pressões partidárias e serem colocadas sobre uma base mais sólida. Além disso, as aspirações legítimas de quantos representamos são protegidas e promovidas. A integridade moral e o respeito imparcial pelos outros e do próprio bem-estar são essenciais para o bem de qualquer sociedade, uma vez que esse estabelece um clima de confiança no qual toda a relação humana, religiosa ou econômica, social e cultural, ou civil e política, ganha força e substância.

[…]

[P]romover a verdade moral na vida pública exige um esforço constante para estabelecer leis positivas sobre princípios éticos da lei natural. Referir-se a ele, em uma época, era considerado uma obviedade, mas a onda do positivismo na doutrina jurídica contemporânea exige uma reafirmação deste importante axioma. Indivíduos, comunidade e Estados, sem a orientação de verdades morais objetivas, tornariam-se egoístas e sem escrúpulos, e o mundo seria um lugar perigoso para se viver. Por outro lado, respeitando os direitos das pessoas e dos povos, protegemos e promovemos a dignidade humana. Quando as políticas que sustentamos são implementadas em harmonia com a lei natural própria da nossa comum humanidade, então as nossas ações tornam-se mais fundadas e levam a uma atmosfera de compreensão, de justiça e de paz.

Bento XVI
Discurso às autoridades civis e diplomáticas
Chipre – 05 de junho de 2010