Miscelânea: manuscritos, Beleza, divórcios, senso comum, ateísmo

– A descoberta de uma Bíblia de 1500 anos, dizem, «preocupa [o] Vaticano». Por quê? Por se tratar de um «original» (sic) do «Evangelho de Barnabé» que, entre outras coisas, teria previsto «a vinda do profeta Maomé, mostrando a verdade da religião do Islã» (!).

Como é possível que um manuscrito «do século V ou VI» possa ser o «original» de Barnabé se este viveu no século I da Era Cristã é um mistério que está para muito além da capacidade de entendimento dos meros mortais. Afora esse prodígio verdadeiramente portentoso, contudo, não há nada de novo na descoberta. O Evangelho de Barnabé (inclusive com a suposta profecia sobre o Islã) já é conhecido. A única coisa digna de nota aqui é a data: a dar crédito às notícias, o manuscrito recém-descoberto seria de um século antes do próprio nascimento de Maomé. A julgar pelo que já se sabe do livro, contudo, isto seria claramente impossível. Provavelmente estamos diante de mais uma falsificação, com a qual não é necessário desperdiçarmos o nosso tempo.

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– O culto à feiura no mundo revolucionário – merece (e muito) uma leitura. «Tragicamente, nosso mundo não reconhece sequer o que é o feio. Já dissemos que a beleza é aquilo que quando visto agrada e, portanto, o lógico seria que o feio fosse aquilo que quando visto desagrada. Mas olhem para a nossa sociedade, na qual o que agrada é o macabro, o esquisito, o torto e o deformado; na qual, por muitos anos, a peça mais popular de cinema — número um durante semanas — foi um filme sobre um canibal. São o mal e o feio que agora deleitam. Bem-vindos ao bravo novo mundo: o que em outra época teria sido chamado de mau agora é qualificado como bom, e o que era considerado feio é agora considerado bonito».

Nestes tempos em que mesmo a nossa arquitetura sacra é destituída do mais elementar senso estético, encontrar um padre defendendo o valor da Beleza é um verdadeiro refrigério. Ouçam-no! No meio do turbilhão de valores em que vivemos, é a Beleza que salvará o mundo.

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– Este texto do Ad Hominem conclama à leitura de “Claro Escuro”, de Gustavo Corção. Faço coro ao pedido; a coletânea de artigos do grande jornalista foi uma das leituras mais prazerosas e instrutivas sobre o assunto que eu já fiz na minha vida. O transcurso dos anos não foi capaz de mitigar o impacto que as palavras de Corção ainda hoje provocam em mim; ainda hoje, leio-o com o deslumbramento de quem estivesse lhe pondo os olhos pela primeira vez. Não são todos os autores os que são capazes desse prodígio.

Para exemplificar isto que estou tentando dizer, trago apenas um excerto do excerto trazido pela Day Teixeira, enfaticamente recomendando aos meus leitores que procurem a íntegra da obra:

Assim como se abrem os olhos [da criança] para o jogo das leis naturais, abrem-se também para essa realidade de pedra que a protege, que a envolve, como paredes de uma casa viva. Por isso, a separação dos cônjuges terá para a criança um aspecto de alucinação. Não se trata apenas de um afastamento livremente consentido de duas pessoas que livremente se uniram. Não será apenas a quebra de um juramento ou a rescisão de um contrato. A separação dos pais, para a criança, é um absurdo. Não é um drama moral, é uma tragédia cósmica. Não é conflito de duas pessoas, é conflito dos elementos constitutivos do universo. O mundo enlouqueceu se os pais se separam. Na mente infantil, a repercussão afetiva e intelectual significa um abalo de todas as fundamentais experiências até então colhidas. É como se a água deixasse de molhar, o sol deixasse de brilhar, a pedra deixasse de ser dura. Não é muito difícil extrapolar as consequências de tão brutal experiência: os psiquiatras estão aí para dizer no que dão os filhos do divórcio.

Sensacional.

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– “A filosofia do senso comum”, na Revista Vila Nova. Dentre os quatro «elementos fundamentais do senso comum» que Chesterton coloca como premissas necessárias à compreensão das coisas ao nosso redor, destaco um:

2. Todo homem em sã consciência, acredita não somente que este mundo existe, mas também que ele tem importância. Todo homem acredita que há, em nós, um tipo de obrigação de nos interessarmos por esta visão da vida. Não concordaria com alguém que dissesse, “Eu não escolhi esta farsa e ela me aborrece. Fiquei sabendo que uma senhora idosa está sendo assassinada no andar de baixo, mas eu vou é dormir”. O fato de que há um dever de melhorar coisas não feitas por nós é algo que não foi provado e não se pode provar.

E este «dever de melhorar coisas não feitas por nós» é talvez um dos elementos mais indispensáveis à vida em sociedade. No entanto, que importância se lhe dá hoje em dia…? De tanto serem cerceadas as investigações sobre a sua gênese, talvez um dos maiores desafios atuais seja limitar o efeito social deletério dos que, de tanto se desinteressarem por essas coisas, chegam a negar a sua própria existência.

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«Na primeira condenação no Brasil por discriminação contra religiosos, a justiça condenou este ano a rede de televisão Bandeirantes depois que um de seus apresentadores afirmou que o assassinato de uma criança só podia ter sido cometido por ateus, também acusados por ele “da guerra, da peste, da fome e de tudo o mais”».

Trata-se de uma matéria do Diário de Pernambuco sobre o ateísmo, e a condenação à qual ela se refere é a que o Datena sofreu por conta de denúncia da Atea. Já a conhecia, mas ainda não atentara para o fato de que o ateu foi beneficiado pela lei que proíbe a «discriminação contra religiosos». De fato, no relatório da referida sentença, há o seguinte:

Este atuar, no entendimento do autor, extrapola os limites da liberdade de expressão, estando tipificado penalmente no artigo 20, parágrafo 2°, da lei 7.716-89.

E o que é que diz o Art. 20 da 7716/89? Simplesmente tipifica o crime de «[p]raticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional». Ora, como ateísmo evidentemente não é “raça”, “cor”, “etnia” e nem “procedência nacional”, segue-se que a única discriminação que o apresentador da Bandeirantes pode ter cometido é a de «religião». Quando lhes convém, os ateístas aparentemente não têm nenhum problema em serem contados entre os religiosos.

Não deixa de ser irônico. Quando nós dizemos que o ateísmo é claramente uma posição religiosa com no máximo tanto valor quanto qualquer outra religião da humanidade, começa a chover ateísta protestando. No entanto, quando a religião ateísta se sente ofendida em cadeia nacional, a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos não se faz de rogada e passa a exigir que seja aplicada em seu favor uma lei que proíbe o preconceito de «religião».