Depois do Natal

A cidade está vazia e deserta porque é Natal. Passados mais de dois mil anos, a celebração do Nascimento de Cristo ainda impõe marcas profundas mesmo às feições de nossas sociedades dessacralizadas. O burburinho dos dias anteriores — os dias mais angustiantes do ano — arrefece, põe-se de lado e é substituído pelo barulho do interior dos lares, que contrasta com o deserto do exterior. O Natal é festa íntima, familiar, que se comemora com os consanguíneos (e, também, com os amigos mais próximos) em torno a uma mesa comum. A tradição se repete. Mas por quê?

Não é por acaso que o Natal é colocado no início do ano litúrgico; trata-se de acontecimento inaugural e não escatológico. É a ária que abre o espetáculo e não a apoteose. E, inserido no ritmo cíclico do temporal da Liturgia, repetindo-se ano após ano, assume os ares de um perpétuo recomeço, possibilitando a periódica experiência daquela excitação que precede as grandes aventuras.

Por que, afinal de contas, o que é o Natal? É o nascimento de Cristo. E a história nos dá conta de que, quando Cristo nasceu, tudo mudou e, ao mesmo tempo, não mudou nada.

Os anjos anunciaram aos pastores o nascimento do Salvador; e, nos nossos presépios, nós até hoje representamos aqueles homens do campo que deixaram os seus rebanhos e saíram, em uma noite escura, em busca de um Recém-Nascido envolto em faixas. Encontraram o Menino e O adoraram; mas, embora a Bíblia não nos fale, é certo que, na noite seguinte, e ao longo de todas as noites seguintes, os mesmos pastores precisaram voltar aos mesmos campos para guardar os mesmos rebanhos. E os anjos não tornaram a aparecer.

Foi uma Noite única; mas o fulgor daquela noite, é certo, foi capaz de iluminar a vida inteira dos que A vivenciaram. É provável que, naqueles campos, anos depois, os velhos pastores conversassem ainda sobre aquela Noite, passado já tanto tempo!, em que os Céus se iluminaram para o nascimento de um Menino. É provável que então o gloria in excelsis não ressoasse mais por aquelas paragens; mas aquela pax prometida aos homens de boa vontade, esta é certo que ainda perdurava naquela terra, e os pastores a podiam ainda experimentar mesmo a tantos anos de distância.

Hoje a distância é ainda maior: mas a força do Natal atravessa os séculos e é sempre nova — como o Evangelho que ele inaugura. Ontem nós mais uma vez fomos à Missa; mais uma vez ouvimos o canto secular das Kalendas, mais uma vez escutamos o anúncio da grande alegria do nascimento do Salvador, que é Cristo Senhor. Mais uma vez nós paramos em frente ao Presépio, enfim completo, com o Deus-Menino envolto em faixas e repousando, sereno, sobre a manjedoura. Olhamos-Lhe como se O encontrássemos pela primeira vez na vida! E pedimos-Lhe paz para nós mesmos, para nossas famílias, para o mundo, para a Igreja: aquela paz anunciada pelos anjos no Natal primevo. E, ao mesmo tempo, pedimos a graça de trabalhar a nossa vontade, a fim de torná-la boa, para que possamos ser — um dia — contados entre os homens aos quais aquela paz foi prometida. E voltamos para casa.

O que importa perceber aqui é o seguinte: o Natal não tem o arroubo de um fim de mundo, de uma mudança radical de vida, da chegada a uma terra prometida onde tudo passa a ser diferente. Na verdade, o Natal mantém as coisas exatamente como estavam antes e é esta a sua força avassaladora. Na noite anterior, como na noite seguinte, os pastores estavam nos campos guardando os rebanhos. Os sábios do Oriente, que antes do Natal estavam viajando rumo a Belém, após o Natal estavam mais uma vez viajando, de volta para casa. Mesmo a Sagrada Família, que na véspera estava, de porta em porta, procurando abrigo para a noite, longe de casa, após o nascimento de Cristo estava também longe de casa, em terra estrangeira, no Egito, fugindo à sanha assassina de Herodes. O Natal não encerra ciclos. Ele irrompe em meio aos ciclos da vida, deixando-os intactos após si.

Intactos, mas não intocados. A vida segue após a ceia do Natal: as mesmas lutas, os mesmos problemas, os mesmos defeitos, tudo, tudo. Os mesmos rebanhos a pastorear por campos escuros. Mas fica algo de diferente justamente porque passou o Natal: mais uma vez nós nos encontramos com pessoas que nos são caras, mais uma vez nós nos permitimos esquecer os trabalhos e as dificuldades da vida — por uma noite que seja! — para simplesmente celebrar, mais uma vez nós trocamos votos de felicidades e expressamos os nossos sinceros desejos de que o futuro — o Ano-Novo que está às portas — seja melhor. E, por conta disso, os próximos dias serão iguais aos últimos, mas serão diferentes. Graças ao Natal. Graças ao Menino que hoje nos foi dado.

“A presença real de Cristo na Eucaristia, provada pela Escritura”

Veio a lume no final da semana passada a tradução para o português de uma importante obra de apologética católica: o primeiro volume do livro do Card. Wiseman (+1865), “A presença real de Cristo na Eucaristia, provada pela Escritura”.

Trata-se de um conjunto de oito preleções sobre a Santíssima Eucaristia, das quais o presente volume apresenta as quatro primeiras — que têm por objeto o discurso do Pão da Vida (Jo VI). O método empregado por Sua Eminência é bastante peculiar: partindo da análise bíblico-literária, demonstra o apologeta, para além de qualquer dúvida razoável, que desta passagem não é possível extrair outra coisa que não seja a pura e cristalina Doutrina Católica sobre a Presença Real de Nosso Senhor na Eucaristia.

É o que deflui da estrutura do texto. É o que se depreende da reação dos judeus. É o que exige a resposta de Cristo aos que O interpelaram. Tudo na perícope aponta, conduz, arrasta ao dogma católico da Presença Real. A leitura destas conferências do Card. Wiseman empresta a este argumento as cores da boa oratória e a cogência da sã retórica, fazendo resplandecer a verdade da Fé Católica em todo o seu fulgor. Trata-se de leitura utilíssima e muito proveitosa, que muito me apraz estar agora disponível ao público de língua portuguesa.

Agradeça-se sobremaneira ao responsável pela tradução, o caríssimo Felipe Coelho. Foi ele quem me encaminhou o texto na sexta-feira passada, e aliás preciso pedir perdão pela demora em o apresentar aqui, no Deus lo Vult!: ao tradutor, por não ter aberto o seu email no instante mesmo em que o recebi, e aos leitores deste blog, que ficaram privados da leitura das lições do Card. Wiseman durante o final de semana. Faço votos de que as possam apreciar agora. Não deixem de rezar ao menos uma Ave-Maria pelo Felipe, a fim de que Nosso Senhor lhe recompense a faina apologética e o inspire a continuar produzindo bons materiais em defesa da Fé Católica e Apostólica.

O livro se encontra disponível para download gratuito no Internet Archive. Pode ser baixado pela imagem acima ou pelo link abaixo. Que, por intermédio dele, os católicos possamos amar mais e melhor a Nosso Senhor verdadeiramente presente na Eucaristia; e que os que ainda não crêem n’Ele possam enfim encontrá-Lo, nas páginas das Escrituras Sagradas, tal e qual a Igreja O apresenta em seus sacrários, escondido sob a espécie d’Aquele Pão que contém todo o sabor.

https://archive.org/details/Wiseman-EucaristiaProvadaPelaEscritura

Melhor ser ateu sincero que católico hipócrita?

A rapidez e a veemência com as quais se espalhou o boato (surgido há algumas semanas) de que o Papa teria dito que é “melhor ser ateu do que católico hipócrita” revela algo de muito perturbador a respeito do nosso senso moral. Aparentemente as pessoas consideram mais importante a coerência entre as idéias que alguém professa e o estilo de vida que ele leva do que o valor inerente àquelas idéias. É como se o criminoso hipócrita fosse de algum modo pior do que o criminoso altivo e convencido da justeza dos seus crimes — possivelmente porque, sendo ambos criminosos, a este último ao menos não se acrescenta o defeito da hipocrisia.

Tal concepção, conquanto pareça estar subjacente ao senso comum contemporâneo, não faz o menor sentido. Primeiro porque o valor das idéias repousa na sua coerência interna, na sua verdade intrínseca e não na capacidade de o seu propalador viver de acordo com elas. Afinal de contas a mesma idéia pode ser apresentada de maneiras diversas e por pessoas diferentes, e é perfeitamente possível que algumas dessas pessoas vivam-na com mais sinceridade do que outras. Isso só nos permite fazer (e no máximo!) um juízo de valor sobre estas pessoas, sobre o grau de sua convicção a respeito daquilo que falam; jamais no entanto sobre o conteúdo da sua mensagem.

Isso quer dizer, por exemplo, que o valor da mensagem cristã (para ficar naquilo que é talvez o maior pretexto dos ímpios para não darem crédito ao Cristianismo) não pode ser buscado nos eventuais defeitos de caráter dos pregadores do Evangelho. Os mensageiros podem eventualmente ser muito hipócritas e muito cretinos, sem que isso no entanto macule minimamente o valor da mensagem que eles portam. Se alguém me diz, por exemplo, que é errado mentir, este conselho será tão mais valioso quanto maiores forem os proveitos que eu possa obter pondo-o em prática (na obtenção da confiança dos outros, na paz de consciência e na amizade com Deus, por exemplo). O fato de alguém seguir ou deixar de seguir um conselho que dá é totalmente irrelevante para se saber se se trata de um bom ou mau conselho.

E isso sempre foi muito óbvio para todas as pessoas. Sempre se soube que a hipocrisia era um defeito da pessoa que era hipócrita, e não da idéia que ela comunicava. A rigor, o que existem são pessoas hipócritas e não idéias hipócritas. Aquela história de “faça o que eu digo, não faça o que eu faço” nos diz que a pessoa que assim nos interpela está errada — não que o que ela nos diz esteja errado. Da eventual incoerência do mensageiro não nos é permitido inferir a incoerência da mensagem. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Mas existe ainda um segundo motivo pelo qual esta confusão entre a (aparente) falta de sinceridade do pregador e a inveracidade da doutrina pregada não faz sentido. É que os seres humanos são essencialmente limitados e, portanto, o que parece hipocrisia pode ser simplesmente uma etapa provisória de um processo de crescimento pessoal.

Afinal de contas, somente duas pessoas são capazes de uma coerência radical e absoluta entre aquilo em que acreditam e o que fazem: os santos perfeitos e os completamente degenerados. Para todos os outros seres humanos o que existe é uma espécie de ambivalência moral, onde às vezes agimos em desarmonia com as nossas convicções e onde o domínio de nossa vontade (ainda) não atingiu o mesmo patamar da iluminação de nossa inteligência. Afinal — desgraçados de nós! –, podemos perfeitamente saber o que é correto sem no entanto conseguir agir corretamente em todos os instantes de nossas vidas.

Mais até: essa ambivalência, além de perfeitamente normal, é necessária a qualquer processo de crescimento. Afinal de contas, para que alguém possa melhorar é preciso que primeiramente saiba em quê precisa ser melhor: o conhecimento dos próprios defeitos e o reconhecimento do valor das virtudes que lhe faltam geralmente precede a obtenção dessas virtudes — que só se dá ao longo do tempo e via de regra ao dispêndio de muito sangue, suor e lágrimas. Ou seja: antes de fazer o certo (e até mesmo para que se possa fazer o certo, ou ao menos fazê-lo melhor do que já se faz) as pessoas precisam saber o que é certo mesmo que (ainda) não o vivam.

Tal é porventura hipocrisia, fingimento, insinceridade? Ao observador externo pode ser que assim se apresente, uma vez que os dilemas morais interiores só são do conhecimento daquele que os padece. Isso, no entanto, não deveria importar, por conta do que já se disse: primeiro porque as idéias têm valor a despeito dos hipócritas que as defendam, e segundo porque aquilo que parece hipocrisia em outrem pode ser apenas uma sua limitação sincera.

De volta à frase sobre o ateu e o católico, é preciso dizer que ela, do jeito que foi divulgada, é completamente falsa e irracional. Só existe uma maneira de encontrar lógica nela: se entendermos que é melhor (talvez se devesse até dizer é menos ruim) ser ateu sincero, por ignorância, que católico hipócrita por malícia. Quando menos porque se forem ambos para o Inferno o católico malicioso vai sofrer maiores penas que o ateu ignorante — aliás o Inferno é via de regra mais severo para os que possuem a Fé Verdadeira mesmo. O que o católico hipócrita tem de errado é a sua hipocrisia e não o seu catolicismo; do mesmo modo, o que talvez se possa louvar no ateu sincero é a sua sinceridade, jamais a sua descrença.

Os elogios que esta “declaração do Papa” recebeu nos dizem uma coisa muito séria: que as pessoas parecem achar melhor ter idéias erradas e medíocres, desde que se viva em conformidade com elas, do que as ter corretas e exigentes e não ser capaz de se portar integralmente à sua altura. Na inevitável ambivalência humana entre o que se é e o que se deve ser, entre o real e o ideal, as pessoas parecem mais dispostas a diminuir as exigências morais que a sair da própria zona de conforto e mudar de vida; mais propensas a envilecer os ideais que a converter a própria realidade. Com uma tomada de posição assim medíocre e mesquinha não é de espantar que vivamos imersos em males que tanto ultrapassam as nossas forças. Não ter coragem de lutar para se fazer melhor e, por conta disso, optar deliberadamente por ser um degenerado é uma das coisas mais ignóbeis de que a pusilanimidade humana é capaz.

A fidelidade é também um martírio

Quanto autem eis praecipiebat, tanto magis plus praedicabant.

O bem é por sua própria natureza difusivo. Nosso Senhor ordenou-nos, no final de Sua vida terrestre, que fôssemos pelo mundo inteiro anunciando o Evangelho a toda criatura; mas a rigor nem precisaria ter-nos ordenado. Os discípulos de Cristo, é certo, sentiriam no seu âmago a necessidade contar a todo mundo a Boa Nova que haviam descoberto — e haveriam de sair pregando o Evangelho da Salvação Cristo tendo-o ordenado ou não.

Aliás, mesmo que o tivesse proibido! As Escrituras não nos dão testemunho? Certa feita, por exemplo, Nosso Senhor curou um surdo-mudo. Os que O acompanhavam ficaram extasiados. Cristo — diz-nos o Evangelista —  «[p]roibiu-lhes que o dissessem a alguém. Mas quanto mais lhes proibia, tanto mais o publicavam» (Mc VII, 36).

O anúncio do Evangelho não pode ser proibido. Todas as experiências históricas o demonstram de forma cabal. Não já foi a Igreja perseguida milhares de vezes em centenas de circunstâncias diferentes? Em cada uma delas o Cristianismo não sucumbiu, mas ao contrário: soube crescer e germinar sob a terra, a fim de florescer na primeira oportunidade. Os séculos se encarregaram de provar verdadeiro o dito de Tertuliano segundo o qual o sangue dos mártires é semente de cristãos. Mas, ora, a ridicularização também não é uma forma de martírio? Foi o que São João Paulo II disse certa vez aos jovens, em uma mensagem que se tornou antológica:

Também hoje, caríssimos amigos, crer em Jesus, seguir Jesus pelas pegadas de Pedro, de Tomé, dos primeiros apóstolos e testemunhas, implica uma tomada de posição a favor d’Ele e, não raro, quase um novo martírio: o martírio de quem, hoje como ontem, é chamado a ir contra a corrente para seguir o divino Mestre, para seguir «o Cordeiro por onde quer que vá» (Ap 14, 4). Não foi por acaso, queridos jovens, que eu quis que, durante o Ano Santo, se recordassem junto do Coliseu as testemunhas da fé do século vinte.

Talvez não vos seja pedido o sangue, mas a fidelidade a Cristo é certo que sim!

19 de agosto de 2000
Vigília de Oração — XV Jornada Mundial da Juventude

Talvez o sangue não nos seja pedido; mas a fidelidade sim! E esta fidelidade contra tudo e contra todos, da qual o mundo debocha e por conta da qual somos chamados de fanáticos e intolerantes, que nos fecha portas e nos afasta de amizades, que merece escárnio, desprezo e piadas, esta fidelidade, em suma, que tanto dói e tanto machuca… não é também uma forma de martírio? E sendo essencialmente martirial, não terá também o condão de difundir a Fé? A fidelidade não será abençoada por Deus, a fim de que se torne, ela também, semente de cristãos?

O bem é difusivo e não pode ser contido. O Evangelho é uma Boa Nova cuja descoberta não pode deixar de ser partilhada — quem O guardasse para si, na verdade, não O teria realmente encontrado. O Apostolado não é uma exigência que nos é feita desde fora, mas um impulso que brota da própria Fé e nos move a partilhar com os nossos próximos aquilo que outros partilharam conosco — aquilo de que todo ser humano precisa, pelo qual todo homem anseia.

fortuny_mariano_san_pablo_en_el_areopago_large

O cristão ou é apóstolo ou é apóstata. O apostolado não é uma opção, não é algo que possamos desempenhar ou retrair a nosso talante. São Paulo uma vez exclamou: «Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!» (ICor IX 16b) — e bem faríamos em ter esta imprecação ressoando, sempre, nos nossos ouvidos indolentes. Não nos podem proibir o anúncio do Evangelho; nenhuma autoridade sobre a terra tem este poder.

O Evangelho precisa ser anunciado por sobre os telhados. Precisa, aliás, ser tanto mais anunciado quanto mais o desejarem silenciar — ai de nós se nos calarmos! É nas perseguições que o Cristianismo floresce; sempre foi assim e não é hoje que haverá de ser diferente. A fidelidade nos é tanto mais exigida quanto mais força fizerem para que sejamos infiéis: que o bom Deus nos conceda sempre a graça de resistir a cada dia. A fidelidade é também um martírio — que a saibamos bem sofrer. Deus não deixará que seja em vão; o Altíssimo, que tudo vê e tudo pode, saberá fazer da fidelidade dos novos mártires a semente da Igreja.

O dia que ficou de fora da Bíblia

À primeira vista, o sábado de hoje é o dia em que nada acontece: na contramão de um saudável carpe diem, parece que hoje é um dia que existe apenas em função da madrugada que há-de vir. Na Quinta-Feira acompanhamos Nosso Senhor ao Horto e, na Sexta, presenciamos a sua crudelíssima Paixão. Hoje apenas esperamos a Vigília de mais tarde.

Se fomos primeiro ao Horto e em seguida ao Gólgota, a lógica talvez nos mandasse ir, hoje, ao Sepulcro. Mas a narrativa bíblica é diferente. Um versículo fala do entardecer da Sexta-Feira — “[f]oi ali que depositaram Jesus por causa da Preparação dos judeus e da proximidade do túmulo” (Jo XIX, 42); o subsequente fala já da alvorada do Domingo — “[n]o primeiro dia que se seguia ao sábado, Maria Madalena foi ao sepulcro” (Jo XX, 1a). O mesmo Túmulo une os dois versículos contíguos; entre eles, contudo, passa silente um Shabbat inteiro!

Hoje estamos exatamente entre o último versículo do Cap. XIX e o primeiro versículo do Cap. XX do Evangelho de São João; é o dia que ficou de fora da Bíblia. Talvez por isso a Igreja silencie seu culto público e, nos nossos templos, durante todo o dia não vejamos mais do que os altares desnudos e os sacrários abertos — com os quais já quase nos acostumamos desde aquela noite angustiante da Última Ceia.

Trata-se de um dia inteiro sem que a Igreja de Deus nada celebre, caso único em todo o Calendário Litúrgico. E neste silêncio da Igreja nós encontramos e vivenciamos o silêncio do Túmulo Santo. Hoje devíamos ir ao Sepulcro, eu disse acima, e na verdade é exatamente isto o que acontece nesta não-Liturgia: como os Apóstolos, experimentamos o desalento porque o Filho de Deus está morto e não temos para onde ir. Todo ofício litúrgico é Cristo que fala mediante a Igreja: quando o sopro frio da morte silencia os lábios do Divino Mestre, quando a pedra do Túmulo encerra para além do nosso alcance o Verbo de Deus, a Igreja — eco fiel do Salvador — também emudece. Na Quinta-Feira Cristo era traído e a Igreja ecoava os Seus gemidos na prisão; na Sexta-Feira Ele era crucificado e a Igreja repercutia os Seus gritos no patíbulo da Cruz. Hoje, no entanto, Ele está morto, e a Igreja reverbera no mundo o silêncio do Sepulcro calando-se também.

Talvez o silêncio da Bíblia sobre este Sábado seja, justamente, a melhor forma de expressar o seu vazio e a sua desolação.

Mas neste dia de solidão nós podemos contar com Alguém que aqui ficou: Alguém que nos foi deixada como penhor de que Ele voltaria, Alguém que a Cruz não arrancou ao mundo dos vivos. Alguém a quem foi dado manter a chama da Graça acesa na terra, enquanto o Criador do mundo descia à escuridão do Hades. Alguém que Deus amou tanto que Lhe confiou o mundo durante os três dias em que Ele precisou se ausentar.

senhora-mercedes

Todo Sábado é dia de Nossa Senhora justamente em referência a este Sábado terrível de hoje, em que o Criador foi expulso do mundo pela criatura. O Verbo fez-Se homem e nós O crucificamos; veio até nós e nós O fizemos sair à força; sufocando-O no alto da Cruz nós O expulsamos do mundo dos vivos, e selando-O no interior da terra, longe dos nossos olhos, tentamos afastar de nós até mesmo a lembrança do que Ele havia sido.

A nossa impiedade, grande o suficiente para destruir o Filho de Deus, não ousou contudo levantar-se contra a Virgem Santíssima! Fomos maus o bastantes para crucificar o Verbo Encarnado; diante da Mãe do Verbo, no entanto, mesmo a nossa imensa maldade chegou a vacilar. Crucificamos o Filho e O expulsamos do nosso mundo; a Mãe, no entanto, não fomos ímpios o bastante para degredar também.

E Ela aqui ficou, e foi a nossa salvação, porque talvez o mundo não resistisse ao Sepulcro de Deus se nada d’Ele houvesse restado sobre a terra. Restou-Lhe a Mãe; e foi suficiente para atravessarmos este sábado, e para que hoje pudéssemos celebrar, no silêncio do templo deserto, a espera da Ressurreição. Hoje como n’Aquele Shabbat terrível, é a Santíssima Virgem Maria quem retém a graça de Deus que restou no mundo — a parcela da Graça que não ousamos expulsar — e sustenta, durante o silêncio enlouquecedor deste dia, os discípulos do Seu Divino Filho.

É aos pés d’Ela que choramos os nossos crimes. É sob o manto d’Ela que nos protegemos da morte de Deus. É unidos a Ela somente que sobreviveremos até a Ressurreição.

Papa Francisco: vejam bem que o Diabo existe!

Todos somos tentados, porque a lei da vida espiritual, a nossa vida cristã, é uma luta. O príncipe deste mundo – o diabo – não quer a nossa santidade, não quer que sigamos Cristo. Alguém de vocês, talvez, não sei, possa dizer: ‘Mas, padre, que antigo o senhor é, falar de diabo no século XXI!’. Mas vejam bem que o diabo existe! Mesmo no século XXI! E não devemos ser ingênuos. Temos de aprender com o Evangelho como se faz a luta contra o diabo.

Papa Francisco,
Homilia na Domus Sanctae Marthae,
11 de abril de 2014

Illum oportet crescere

Hoje é a festa de Exaltação da Santa Cruz e, no dia de hoje, nada mais eloqüente do que divulgar esta foto do revmo. pe. Demétrio Gomes celebrando a Santa Missa, que o próprio sacerdote compartilhou recentemente em seu álbum do Facebook.

A fotografia ficou simplesmente perfeita: a Hóstia Consagrada ao centro e em foco, o sacerdote elevando-a piedosamente e – mais importante! – o rosto do sacerdote, erguido em direção a Cristo Crucificado que ele segura em suas mãos, oculto pelo grande crucifixo que se encontra sobre o altar.

Muita coisa já foi dita sobre a conveniência de se manter sobre o altar esta cruz que esconde a figura do padre; a quem se interessar pelo assunto, recomendo esta conferência do Mons. Guido Marini, bem como estes excertos de livros do Card. Ratzinger falando sobre a Cruz no centro do altar. De minha parte, quero apenas comentar o quão adequada me parece a frase do Evangelho de São João que dá título a este artigo: illum oportet crescere, i.e., “importa que Ele cresça”: é São João Batista falando de Nosso Senhor.

Eu conheci esta frase muito antes de conhecer qualquer outra coisa de latim, porque ela está gravada em grandes letras douradas no altar da Matriz de Nossa Senhora do Rosário, onde – criança ainda – comecei a participar da Santa Missa e para onde, depois de adulto, voltei para me crismar e para trabalhar na catequese. Embora a paróquia da Torre seja antiga, eu desde criança sempre vi este altar exatamente deste jeito e, portanto, não sei dizer se ele é o altar original que foi separado da parede após a Reforma Litúrgica ou se, ao contrário, foi feito especificamente para as novas disposições arquitetônicas dos anos 70. Sei que, de um modo ou de outro, ele se presta a traduzir de modo excelente uma das razões pelas quais, antigamente, o padre celebrava o Santo Sacrifício “de costas para o povo” e, hoje, é conveniente colocar um Crucifixo no meio do altar: importa que Ele cresça, isto é, o que se deve buscar na celebração da Santa Missa – e, p.ext., na nossa vida cristã – é que Cristo apareça diante de todos, é que Ele refulja e seja o centro de todas as atenções.

O centro da Santa Missa não é o sacerdote. Na Santa Missa, o essencial (fazendo uma paráfrase involuntária de Saint-Exupéry) é invisível aos olhos: é Cristo, Sacerdote e Vítima, que Se oferece à Trindade Santa em expiação pelos nossos pecados. É o Sacrifício da Cruz que Se faz presente de maneira incruenta. E a melhor maneira de chamar a atenção para o que é permanente e invisível é tirar a atenção daquilo que é mutável e visível: é esconder o sacerdote. A melhor maneira de fazer Cristo crescer é exatamente aquela que se encontra na seqüência da frase de São João Batista: me autem minui, “que eu diminua”. Esconda-se, portanto, o sacerdote durante a Consagração, para que somente Cristo Eucarístico apareça: esconda-se o sacerdote com a casula romana nas suas costas enquanto ele se inclina versus Deum para consagrar, ou se o esconda por detrás do Crucifixo no centro do altar quando ele celebra de frente para o povo, o que seja, mas que ele seja escondido para que Cristo cresça! É este o verdadeiro espírito da Liturgia que urge ser resgatado.

E nesta Festa de Exaltação da Santa Cruz – mesmo dia, aliás, em que se comemora o 5º ano de entrada em vigor do motu proprio Summorum Pontificum, que autoriza a celebração da Santa Missa na forma antiga – é uma alegria poder compartilhar o testemunho de sacerdotes zelosos pelas coisas do alto. Sacerdotes comprometidos com o resgate da sacralidade litúrgica na Igreja de Deus. Sacerdotes que, à semelhança de São João Batista, perceberam que é importante Cristo crescer, e que isto só é possível se eles próprios estiverem dispostos a diminuir.

“As portas do Abismo nada poderão contra Ela” – Beato John Newman

«Sobre esta pedra edificarei a Minha Igreja; e as portas do abismo nada poderão contra ela.»

Outrora, era uma fonte de perplexidade para quem crê, como lemos nos salmos e nos profetas, ver que os maus tinham êxito onde os servos de Deus pareciam fracassar. E o mesmo se passa ao tempo do Evangelho. E no entanto a Igreja possui este privilégio especial, que mais nenhuma outra religião tem, de saber que, tendo sido fundada aquando de primeira vinda de Cristo, não desaparecerá antes do Seu regresso.

Contudo, em cada geração, parece que sucumbe e que os seus inimigos triunfam. O combate entre a Igreja e o mundo tem isto de particular: parece sempre que o mundo a vence, mas é Ela que de facto ganha. Os seus inimigos triunfam constantemente, dizendo-a vencida; os seus membros perdem frequentemente a esperança. Mas a Igreja permanece. […] Os reinos fundam-se e desmoronam-se; as nações espraiam-se e desaparecem; as dinastias começam e terminam; os príncipes nascem e morrem; as coligações, os partidos, as ligas, os ofícios, as corporações, as instituições, as filosofias, as seitas e as heresias fazem-se e desfazem-se. Elas têm o seu tempo, mais a Igreja é eterna. E contudo, no seu tempo, elas parecerem ter uma grande importância. […]

Neste momento, muitas coisas põem a nossa fé à prova. Não vemos o futuro; não vemos que o que parece agora ter êxito não durará muito tempo. Hoje, vemos filosofias, seitas e clãs alastrarem, florescentes. A Igreja parece pobre e impotente. […] Peçamos a Deus que nos instrua: temos necessidade de ser ensinados por Ele, estamos cegos. Quando as palavras de Cristo puseram os apóstolos à prova, eles pediram-Lhe: «Aumenta a nossa fé» (Lc 17.5). Procuremo-Lo com sinceridade: nós não nos conhecemos; temos necessidade da Sua graça. Qualquer que seja a perplexidade a que o mundo nos induza […], procuremo-Lo com um espírito puro e sincero. Peçamos humildemente que nos mostre o que não compreendemos, que suavize o nosso coração quando ele se obstina, que nos dê a graça de O amarmos e de Lhe obedecermos fielmente na nossa procura.

Sermões sobre os temas do dia, nº 6, «Fé e Experiência», 2.4
Citado por Evangelho Quotidiano, 04/ago/2011

Quando os mensageiros traem a mensagem

Eu gosto de um texto do Chesterton onde ele compara os cristãos – tanto os dos séculos passados quanto os dos tempos atuais – a mensageiros que se julgam portadores de uma mensagem importante que precisa ser entregue, não importa o quanto isto possa custar. Para analisar-lhes o comportamento, é possível abstrair da autenticidade da dita mensagem; para que eles se comportem como de fato se comportam, basta saber que eles acreditam que a mensagem é verdadeira – e esta crença é sem dúvidas passível de constatação empírica.

Pensava nisso quando lia esta curta matéria segundo a qual o Boff foi aplaudido enquanto criticava os últimos papas. Porque não há nada mais estranho à essência da mensagem cristã do que este (mau) hábito de criticar aqueles que nos precederam. Nada de mais estranho à Doutrina Católica do que a mentalidade de que é preciso adaptá-la a fim de que ela se apresente mais adequada aos tempos modernos.

Até porque a própria palavra – em latim diz-se fidei – tem a mesma raiz etimológica de uma outra palavra cujo sentido é-nos, em português, bem conhecido: fidelidade. A Fé não é “construída”, não é “descoberta”, não é “inventada”: a Fé é recebida e devemos guardar-Lhe íntegra. Volto a Chesterton: como mensageiros. Os mensageiros não existem para alterar o conteúdo da mensagem que lhes foi confiada, e sim para entregá-la. Houve um tempo, aliás, em que as mensagens eram entregues de viva voz: um bom mensageiro era aquele capaz de memorizar a mensagem que lhe fora entregue e de entregá-la tal e qual recebeu de quem a enviou. Transmiti-la era a sua missão, e não adulterá-la.

Quando vejo os maus católicos dos dias de hoje (e o Boff é citado somente à guisa de exemplo; como ele, há miríades de traidores dos Evangelhos), penso em como estes estão distantes da missão que lhes foi confiada por Nosso Senhor (quando menos, do encargo que lhes fora confiado no Santo Batismo). A Fé Católica vem de Deus e deve ser transmitida de um homem a outro ao longo dos séculos, sendo absolutamente necessário fazer de tudo para manter a integridade da mensagem que foi confiada aos homens e, portanto, não perder este fluxo de graça que remete aos Apóstolos e, em última instância, a Nosso Senhor – a Deus. Quando vejo falsificadores da mensagem evangélica (portando-se antes como falsários que como mensageiros), lembro-me daquela passagem bíblica onde Nosso Senhor diz que de nada serve o sal que perde o sabor. Porque não é somente o sal que tem um fim próprio (neste caso, o de salgar): também os mensageiros têm o fim precípuo de transmitirem íntegra a mensagem que lhes foi confiada. E, quando as coisas desviam-se do seu fim, para nada mais servem a não ser para serem lançadas fora. Isto serve para o sal e serve também para aqueles que deviam ser portadores da Boa Nova da Igreja de Nosso Senhor.

“O misterioso criador do mundo visitou a terra” – Chesterton

Faço coro à recomendação do blog Summae Theologiae: delicioso texto de Chesterton! Vale (e muito) a leitura. Destaco:

Exatamente no meio de tudo isso surge uma enorme exceção. Ela é totalmente diferente de qualquer outra coisa. É algo final como a trombeta do juízo, embora também seja uma boa-nova, ou então uma notícia que parece boa demais para ser verdadeira. É nada menos que a altissonante afirmação de que o misterioso criador do mundo visitou a terra pessoalmente. Declara-se que realmente e até bem pouco tempo atrás, ou bem no meio dos tempos históricos, de fato entrou no mundo esse ser invisível das origens, sobre o qual os pensadores criam teorias e os mitólogos transmitem seus mitos: o Homem que Criou o Mundo. A existência dessa personalidade superior por trás de todas as coisas fora de fato insinuada por todos os melhores pensadores, bem como por todas as mais belas lendas. Mas nada desse tipo fora insinuado por algum pensador ou alguma lenda. É simplesmente falso dizer que os outros sábios e heróis haviam alegado ser esse misterioso senhor e criador, com o qual o mundo havia sonhado e sobre o qual havia debatido. Nenhum deles havia jamais alegado ser algo desse tipo. Nenhuma de suas seitas ou escolas nem sequer reivindicou ter alegado algo desse tipo. O máximo que algum profeta religioso havia dito fora que ele era o verdadeiro servo desse ser. O máximo que algum visionário jamais havia dito fora que os homens talvez pudessem ter um vislumbre da glória daquele ser espiritual; ou, mais frequentemente, um vislumbre de seres espirituais inferiores. O máximo que qualquer mito primitivo jamais havia sugerido era que o Criador estava presente na Criação. Mas que o Criador estivesse presente em cenas que aconteceram logo depois dos festins de Horácio, que conversasse com coletores de impostos e oficiais do governo em detalhados momentos do dia a dia do Império Romano, que esses fatos continuassem a ser firmemente declarados por toda aquela grande civilização por mais de mil anos – eis aí algo absolutamente diferente de qualquer outra coisa da natureza. É a maior e mais chocante declaração feita pelo homem desde que ele articulou sua primeira palavra em vez de latir feito um cachorro. Seu caráter único pode ser usado como um argumento a seu favor ou contra ele. Seria fácil concentrar-se nisso e ver um caso de insanidade singular; mas essa opção reduz a religião comparada a nada mais que pó e absurdo.

O anúncio caiu sobre o mundo com uma ventania e um impetuoso avanço de mensageiros proclamando aquele portento apocalíptico; e não é nenhuma fantasia indevida dizer que eles ainda estão correndo. O que intriga o mundo, e seus sábios filósofos e imaginativos poetas, acerca dos sacerdotes e dos fiéis da Igreja Católica é que eles ainda se comportam como se fossem mensageiros. Um mensageiro não sonha com qual poderia ser sua mensagem, nem discute acerca do que ela provavelmente seria. Ele a entrega como é. Não é uma teoria nem uma fantasia, é um fato. Não é relevante para este esboço intencionalmente superficial provar em detalhes que a mensagem é um fato; só é relevante ressaltar que esses mensageiros a tratam como um fato. Tudo o que se condena na tradição católica, a autoridade, o dogmatismo e a recusa de retratar-se e modificar são apenas atributos humanos naturais de um homem com uma mensagem relacionada a um fato. Quero evitar neste último resumo todas as complexidades controversas que mais uma vez podem ofuscar as linhas simples dessa estranha história, que já chamei, em palavras que são demasiado fracas, de a mais estranha história do mundo. Simplesmente desejo sublinhar aquelas linhas principais e especialmente sublinhar onde se deve realmente traçar a grande linha. A religião do mundo, em suas proporções certas, não se divide em delicados matizes de misticismo ou de formas de mitologia mais ou menos racionais. Ela é dividida pela linha que separa os homens que levam aquela mensagem dos homens que ainda não a ouviram, ou que ainda não conseguem crer nela.