Receber a Liturgia, não reformá-la

Não li ainda o livro do Card. Sarah (grande cardeal!) que, segundo consta, chegou há poucos meses às livrarias do Brasil; mas hoje, no Facebook, tive acesso a uma peça publicitária do livro-entrevista que me chamou a atenção. Traduzo livremente:

Se nós fabricamos a liturgia por nossa própria conta ela se afasta do divino; ela se transforma em um ridículo, vulgar e maçante jogo teatral. Acabamos, assim, com liturgias que se parecem com programas de auditório, com uma festa dominical engraçada para relaxar após uma semana de trabalho cheia das mais variadas preocupações. Uma vez que isso acontece, os fiéis voltam para a casa após a celebração da Eucaristia sem haverem encontrado Deus pessoalmente — ou sem O terem ouvido no mais profundo dos seus corações.

Tenho para mim que esta questão é importante e, a ela, não se costuma dar a devida atenção fora dos ambientes (ditos) tradicionalistas. O cerne do argumento aqui desenhado é o seguinte: os homens vão à Igreja para se relacionar com Deus. Para tanto, é necessário que eles encontrem, na Igreja, algo maior do que eles próprios, algo que eles próprios não seriam capazes de confeccionar com suas próprias mãos. Mas, ora, tornar a Liturgia uma coisa que cada “comunidade” produz — ainda que seja uma “construção coletiva” — é fazer com que ela seja percebida não mais como algo que se recebe (de Deus, do passado ou de um determinado conjunto de pessoas santas), mas como algo que se constrói. E se eu construo a Liturgia, então eu não preciso ir à Igreja: é o corolário mas óbvio aqui, de cuja precisão o esvaziamento de nossas igrejas (mormente no pós-Concílio) dá a prova mais triste e incontestável.

Os homens já se relacionam consigo próprios o tempo inteiro — afinal de contas, a vida secular é exatamente isso. Não se vai à Igreja para fazer, lá, o que mesmo que já se faz no mundo; vai-se para a Igreja, ao contrário, para lá se abrir ao diferente. É aliás esta uma característica muito própria da Religião Cristã: nela se tem não a obra de um grande homem, não o resultado acumulado do progresso da humanidade, nem nada disso, mas o próprio Deus que vem ao encontro da humanidade que, sem esta Vinda, estaria para sempre condenada a nunca O encontrar. É por isso que se vai à Igreja: porque n’Ela Deus vem até nós. E imaginar que Deus poderia vir até nós mediante a virtude de qualquer coisa propriamente nossa não passa de uma superstição ímpia; achar que somos capazes de O invocar mediante determinado conjunto de palavras e gestos inventados por nós é ainda mais insano do que acreditar, por exemplo, que determinada dança é capaz de fazer chover. É bárbaro e primitivo.

A Liturgia só funciona (lembrando, Sacramento é um sinal sensível e eficaz da graça divina) porque Ela nos foi dada: não é obra nossa mas do próprio Cristo, através do Seu Corpo que é a Igreja. Essa verdade, fundamental para um relacionamento sadio com Deus, fica completamente obscurecida quando «nós fabricamos a Liturgia por nossa própria conta»: é o que o Card. Sarah está dizendo. Nós perdemos a capacidade de nos abrir a Deus (lembrando, os Sacramentos agem ex opere operato mas os seus efeitos só se percebem ex opere operantis) se não somos capazes de enxergar, nos gestos e palavras da Santa Missa, mais do que uma simples convenção arbitrariamente definida pelos católicos que nela tomam parte. No limite, como se disse, a Liturgia artificialmente produzida torna desnecessária a própria ida à Igreja.

Penso que o maior problema da questão litúrgica não se encontra na parte objetiva, mas sim na subjetiva; i.e., não na capacidade do rito de conferir a graça, mas sim na de tornar os fiéis propícios a recebê-la. Isto, penso, respeita a Doutrina Católica no que diz respeito à indefectibilidade da Igreja em matéria litúrgica; isso, igualmente, explica a situação de miséria espiritual em que se encontra o catolicismo com o Novus Ordo.

Com uma interessante vantagem. Se a questão é subjetiva e não objetiva, então ela depende das disposições interiores dos que se acercam dos Sagrados Mistérios — e, portanto, a possibilidade de correção orgânica é muito maior. Ora, uma Missa repleta de invencionices locais é sem dúvidas uma coisa muito artificial. Um rito produzido por uma comissão burocrática é artificial também; mas ele só o é dentro de um horizonte temporal muito restrito. Quanto mais se caminha no tempo, mas o Rito de Paulo VI deixa de ser uma novidade para se tornar algo que simplesmente é assim na Igreja — para as novas gerações a Missa simplesmente “sempre foi assim”, é a missa que os seus pais sempre assistiram, dentro de algumas poucas décadas se tornará a missa de que os seus pais e avós sempre participaram e assim sucessivamente. Em algumas gerações a aura da ancestralidade irá reluzir também sobre o Novus Ordo; é simplesmente questão de tempo para que os católicos encontrem, nele, algo que vem de um passado (cada vez mais) remoto da Igreja — e, portanto, algo que é recebido e não confeccionado. O problema apontado pelo Card. Sarah, assim, naturalmente deixa de existir.

É justamente para impedir essa correção orgânica que os assassinos da Liturgia precisam, o tempo inteiro, inventar coisas e mais coisas para atormentar os fiéis que assistem à Missa. Celebrar estritamente o N.O.M. não atende mais à sanha iconoclasta dos inimigos da Igreja, exatamente porque para as novas gerações o N.O.M. é a liturgia tradicional. É por isso que é preciso lhe acrescentar cada vez mais coisas, cada vez mais novidades: para mantê-lo indefinidamente como uma coisa fabricada, sempre construída pela comunidade, nunca recebida da Igreja. As posições do Card. Sarah, assim, não são uma nova intervenção Ottaviani: o alvo dele é a mentalidade de que a Liturgia deva (ou mesmo possa) ser continuamente fabricada, e não um rito específico. E este combate é prévio a qualquer discussão sobre forma ordinária ou extraordinária do Rito Romano. Sem esta concepção, qualquer apostolado litúrgico é vão. Para que qualquer “Reforma da Reforma” possa ser possível, é preciso antes entender — por paradoxal que pareça — que a Liturgia se recebe e não se reforma. Sem isso estaremos apenas recauchutando velhos erros.

Bento XVI, sobre o Munus Sanctificandi

Leiam a Audiência Geral do Papa Bento XVI de ontem, sobre o munus sanctificandi dos sacerdotes (vejam uma versão em português no site da Canção Nova). Está primorosa. A expressão teológica tradicional não se encontra na catequese do Papa, mas é também sobre isto que ele está falando: os Sacramentos agem ex opere operato, i.e., têm a sua eficácia independente da santidade de quem os ministra.

Uma excelente catequese, ensejada pela crise de escândalos que hoje se lança sobre a Igreja. Se, por um lado, os pecados dos sacerdotes (ao contrário do que apregoava Lutero) em nada diminuem a eficácia dos Sacramentos por eles ministrados, por outro lado isso não é justificativa para se negar a “indispensável tensão para a perfeição moral, que deve habitar cada coração autenticamente sacerdotal”. Não é porque os padres não são santos que os Sacramentos por ele ministrados não têm valor; nem é pelo fato de que os Sacramentos continuam tendo valor a despeito dos pecados dos padres que estes não devem ser santos. Por um lado, a salvaguarda dos fiéis e, por outro, a radical exigência da conformidade a Cristo.

E vejam também outros pontos da referida audiência, entre os quais destaco:

É, então, o próprio Cristo que nos torna santos, isto é, que nos atrai na esfera de Deus. Mas como ato de Sua infinita misericórdia, chama alguns a “estar” com ele (cf. Mc 3, 14) e tornarem-se, mediante o Sacramento da Ordem, apesar da pobreza humana, participantes do seu próprio Sacerdócio, ministros desta santificação, dispensadores de seus mistérios, “pontes” de encontro com Ele, da sua mediação entre Deus e os homens e entre os homens e Deus (cf. Presbyterorum Ordinis, 5).

Sobretudo neste nosso tempo, em que, de um lado, parece que a fé vai enfraquecendo-se e, por outro, emerge uma profunda necessidade e uma ampla busca de espiritualidade, é necessário que todo o sacerdote recorde que, na sua missão, o anúncio missionário e o culto e adoração e os sacramentos não estão mais separados e promova uma saudável pastoral sacramental, para formar o Povo de Deus e ajudá-lo a viver plenamente a Liturgia, o culto da Igreja, os Sacramentos como dons gratuitos de Deus, atos livres e eficazes de sua ação salvadora.

Exemplar, acerca do primado do munus sanctificandi e da correta interpretação da pastoral sacramental, é ainda São João Maria Vianney, que, um dia, frente a um homem que dizia não ter fé e desejava discutir com ele, respondeu: “Oh! meu amigo, vos dirigistes muito mal, eu não consigo pensar … mas se tendes necessidade de alguma consolação, dirija-se para lá … (seu dedo apontava para o inexorável banco [do confessionário]) e, acredita-me, em que muitos outros colocaram-se antes de vós, e não tiveram do que se arrepender” (cf. Monnin A., Il Curato d’Ars. Vita di Gian-Battista-Maria Vianney, vol. I, Torino 1870, pp. 163-164).

Longa vida ao Papa!