Siamo tutti conigli

conigli

Certas verdades são bastante óbvias para serem problematizadas. É bastante evidente que homens são criados à imagem e semelhança de Deus e, únicos seres no mundo sensível dotados de inteligência e vontade, possuem uma dignidade intrínseca que os coloca a uma distância virtualmente infinita dos animais irracionais – inclusive dos coelhos. É óbvio, portanto, que não são coelhos os seres humanos em geral e nem muitíssimo menos os católicos em particular.

Uma outra coisa que é evidente para além de toda a evidência é que a Igreja Católica possui uma doutrina peculiar e bem conhecida a respeito da contracepção, segundo a qual – na conhecida formulação da Humanae Vitae – é “de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” (HV 14). E à Igreja, Mestra infalível em Fé e Moral, pode-se até acusar de ser pretensiosa; jamais, no entanto, de ser incoerente consigo mesma. Admitindo que a um observador externo seja legítimo perguntar se o ensinamento católico é verdadeiro ou falso, uma sua característica ninguém pode negar: ele é incomodamente constante.

Causou certo frisson a última declaração do Papa Francisco, segundo o qual católicos não devem se reproduzir como coelhos. Ora, trata-se de verdadeira evidência. É lógico que os católicos não devem se reproduzir “como coelhos”, e sim como filhos de Deus – a quem foi dirigido aquele mandato de “crescei e multiplicai-vos”. Não foi aos coelhos que Deus ordenou encher a terra e a submeter, e sim aos homens! Cumpre, pois, a estes procriar como convém à sua dignidade – que é muito maior, repita-se, do que a dos coelhos.

Ainda, simplesmente não é possível aos católicos reproduzirem-se como os simpáticos leporídeos. Isso porque, como disse Chesterton em certa ocasião, um homem nunca age igual a um animal: ou age de modo muito superior a ele, quando se comporta como homem; ou, então, muito inferior a ele, quando se esquece de sua dignidade e age de maneira irracional, instintiva, animalesca. Os seres humanos, portanto, jamais se reproduzem como animais: caso se esqueçam de que são homens, então agirão de maneira muito mais baixa, vil e degradante do que os pobres coelhos. E uma das formas de se esquecerem de que são homens está, precisamente, na busca irresponsável e egoísta pelo prazer venéreo em si mesmo, que é marca registrada dos dias de hoje. Um homem que viva praticando relações sexuais “casuais” e sem compromisso está agindo muito mais como um animal no cio do que outro, que tenha com a sua esposa um número de filhos maior do que a nossa sociedade decadente julga “conveniente”.

Houve quem pensasse que, com a sua declaração sobre coelhos, o Papa Francisco estivesse a legitimar de algum modo o controle de natalidade. Tal é insustentável por um sem-número de razões. Em primeiro lugar, como disse um santo – recente! – da Igreja, “são criminosas, anti-cristãs e infra-humanas, as teorias que fazem da limitação da natalidade um ideal ou um dever universal ou simplesmente geral” – e o Papa, que já se disse outras vezes “filho da Igreja”, sabe perfeitamente disso.

Em segundo lugar, a doutrina da Igreja a respeito da natalidade encontra-se, por excelência, na citada Humanae Vitae de Paulo VI. E o que já disse o Papa Francisco a respeito do seu predecessor? Em duas ocasiões recentes:

1. No “Encontro das Famílias” praticamente da véspera (sexta, 16 de janeiro): “Num período em que se propunha o problema do crescimento demográfico, [Paulo VI] teve a coragem de defender a abertura à vida na família. (…) Mas ele olhou mais longe: olhou os povos da terra e viu esta ameaça da destruição da família pela falta de filhos. Paulo VI era corajoso, era um bom pastor e avisou as suas ovelhas a propósito dos lobos que chegavam. Que ele, lá do Céu, nos abençoe nesta tarde! O nosso mundo tem necessidade de famílias sãs e fortes para superar estas ameaças. As Filipinas precisam de famílias santas e cheias de amor para proteger a beleza e a verdade da família no plano de Deus e servir de apoio e exemplo para as outras famílias. Toda a ameaça à família é uma ameaça à própria sociedade”.

2. No próprio vôo onde foi feita a declaração “polêmica” dos coelhos (tradução do Fratres, aqui): “O que eu quero dizer sobre Paulo VI é que a verdadeira abertura à vida é condição para o sacramento do matrimônio. Um homem não pode dar o sacramento para a mulher, e a mulher dar para ele, se eles não estão em concordância neste ponto de estarem abertos à vida. […] Mas o que eu queria dizer era que Paulo VI não era muito antiquado, mente fechada. Não, ele era um profeta que com isso nos disse para tomarmos cuidado com o neo-malthusianismo que vem chegando. Era isso o que eu queria dizer”.

Ora, quem é Paulo VI? É o Papa da condenação ao controle de natalidade. O que é “abertura à vida”? É a atitude de um casal receber generosamente os filhos que a Divina Providência julgar por bem lhe confiar. O que é “neo-malthusianismo”? É a doutrina que prega uma superpopulação atual, com a consequente necessidade de reduzirmos as nossas taxas de natalidade. Como é possível, então, que um Papa que louva o campeão da causa católica anti-contracepção, que relembra aos casais que eles devem – sob pena de nulidade matrimonial! – estar dispostos a receber os filhos que Deus lhes enviar, que manda tomar cuidado com a estória de que estamos vivendo em uma superpopulação a nos exigir controle de natalidade – como é possível, em suma, que um homem desses esteja, justo ele!, fazendo coro aos inimigos da Igreja e condescendendo à mentalidade antinatalista que ele próprio, por todos os flancos, se esmera em desconstruir? Que sentido isso faz?

Em terceiro lugar, no seio da própria entrevista concedida no vôo, apenas por duas vezes o Papa Francisco fala em números de filhos:

  • “Conheci uma mulher há alguns meses numa paróquia que estava grávida de sua oitava criança, que tinha tido sete cesárias. Mas ela quer deixar 7 filhos órfãos? Isso é tentar a Deus.”
  • “Eu acho que o número de 3 filhos por família que você mencionou – me faz sofrer – eu acho que é o número que os especialistas dizem ser importante para manter a população “indo”. Três por casal. Quando isso diminuiu, o outro extremo acontece. Ouvi dizer, não sei se é verdade, que em 2024 não haverá dinheiro para pagar pensionistas por causa da queda na população.”

Ou seja, se existisse algum limite concreto que o Papa estivesse tentando determinar para os católicos – coisa que não há e nem pode haver; mas o imaginemos, para argumentar – tal seria um limite mínimo de três, e não máximo de nada. Ora, isso vai muito longe do que o mundo pagão entende por “responsabilidade” familiar!

Em quarto lugar, por fim, porque há não muito tempo – há menos de um mês – o Papa Francisco dirigiu um discurso à Associação Nacional das Famílias Numerosas. Ora, trata-se de pronunciamento com um objetivo específico e previamente preparado; portanto, a mais mínima honestidade intelectual há de reconhecer ser ele mais fidedigno – para entender o pensamento do Papa a respeito da natalidade católica – do que as sabatinas feitas num voo de retorno após uma viagem de uma semana na Ásia. E, no citado discurso, é possível ler – entre outras coisas – o quanto segue:

  • [O]s filhos e as filhas de uma família numerosa são mais capazes de comunhão fraterna desde a primeira infância. Num mundo muitas vezes marcado pelo egoísmo, a família numerosa é uma escola de solidariedade e de partilha; e destas atitudes beneficia toda a sociedade.
  • A presença das famílias numerosas é uma esperança para a sociedade.
  • Portanto espero, também pensando na baixa taxa de natalidade que desde há tempos se regista na Itália, uma maior atenção da política e dos administradores públicos, a todos os níveis, a fim de dar o apoio previsto a estas famílias. Cada família é célula da sociedade, mas a família numerosa é uma célula mais rica, mais vital, e o Estado tem todo o interesse em investir nela!
  • A este propósito, são João Paulo II escrevia: «As famílias devem crescer na consciência de serem protagonistas da chamada política familiar e assumir a responsabilidade de transformar a sociedade: de outra forma, as famílias serão as primeiras vítimas daqueles males que se limitaram a observar com indiferença» (Exort. ap. Familiaris consortio, 44).

Esta é, em suma, a posição de Paulo VI, de S. João Paulo II, de S. Josemaría Escrivá, do Papa Francisco, a respeito do “controle de natalidade”. Esta é a resposta de generosidade que somos chamados a dar ao mundo. Esta é a vida que a Igreja nos chama a viver. E a viveremos, por mais que se levantem contra nós as forças do mundo.

Quanto aos coelhos, que incendiaram a polêmica, há (pelo menos) duas possíveis comparações a respeito deles que é possível fazer. Por um lado, podem simbolizar o sexo irresponsável, animalesco, no cio, fugaz, instintivo: e, neste sentido, é preciso repetir fortemente, com o Papa Francisco, que evidentemente não podemos – ninguém pode! – procriar como coelhos! No entanto, os coelhos também são símbolo universal da fertilidade, de uma prole numerosa, de filhos como rebentos de oliveira ao redor de uma mesa – de uma mesa cheia de crianças. E, neste outro sentido, é preciso ter a coragem de dizer, ousadamente, com os santos, com os Papas, com a Igreja, contra quem quer que seja, che, sì, siamo tutti conigli – somos todos coelhos. Apraza a Deus que o sejamos.