Sobre o Carnaval IV: Derpina-vai-com-as-outras

[Trata-se de uma obra de ficção, recém-inventada e mais recreativa do que qualquer outra coisa. Creio já ter falado o suficiente nos artigos passados sobre os aspectos morais envolvidos na festa que hoje se finda. Uma última distração carnavalesca: amanhã é quarta-feira de Cinzas. Amanhã já iniciamos a Quaresma. Que venha! Que Deus nos ajude nestes dias de roxo que já se avizinham. Que ela nos faça melhores.]

– Eu nunca mais brinco carnaval na vida!

Derpina repetiu a frase em voz alta, praticamente aos gritos; tanto que a sua colega, que dormia na cama ao lado, acordou sobressaltada com tão estranha histeria matinal. Ainda era terça-feira.

– O que é isto, Derpina? Que zoada é esta de manhã cedo?

Derpina estava transtornada. Acabara de acordar quando foi assaltada por uma crise daquilo que costuma ser designado por “ressaca moral”: este mal terrível que costuma afligir as pessoas que ainda não aprenderam a díficil arte de dar um nó na própria consciência a fim de que ela não mais lhes perturbe, independente das barbaridades que cometam. Na verdade, a maior parte das amigas de Derpina já tinha conseguido praticar com sucesso esta lobotomia moral. Derpina se esforçava por imitar-lhes, mas era sempre em vão.

As imagens do dia anterior surgiam confusas na mente de Derpina: muita Jurubeba, muitos sorrisos, muitos flertes, muitos beijos. A gota d’água fora um garoto que se aproximou dela já tentando beijar-lhe. Ela não queria, mas não tinha condições físicas ou envergadura moral diante de suas amigas para resistir decentemente: tanto que o mancebo enfim lhe arrebatou o beijo, sob os aplausos frenéticos dos amigos dele e dela. E foi embora sem nem olhar para trás.

E isto, pra Derpina, não era de forma alguma aceitável. Não se tratava mais de diversão consentida entre adultos (a maneira como as amigas de Derpina costumavam se referir às relações descompromissadas entre pessoas irresponsáveis): isto era se permitir ser tratada como uma coisa, como um animal. Aliás, pior que um animal, porque os cachorros a gente ao menos afaga quando eles chegam junto. Nunca ela se sentira tão ofendida. E às vezes – Derpina pensava – a gente precisa chegar ao fundo do poço para notar que precisa de um pouco de ar e de luz do sol.

– Ele nem olhou para mim! – Derpina gritava, sob o olhar atônito de sua colega de quarto que não fazia a menor idéia do que estava acontecendo. E, num súbito lampejo de raiva e de dor, Derpina pegou a sua fantasia branca-e-preta (de “palhacinha”, como ela chamava), armou-se de uma tesoura e se preparou para fazê-la em pedaços. A amiga, percebendo o que estava para acontecer (ainda que não atinasse para as razões efetivas da atitude intempestiva), gritou:

– Derpina, está louca?! Ainda é terça-feira, e esta roupa custou cento e vinte reais!

Se foi pela referência ao calendário ou ao cartão de crédito, não deu para saber; o fato é que Derpina vacilou por uma fração de segundos, tempo suficiente para que sua amiga saltasse sobre ela e, desarmando-a, salvasse a pobre fantasia que estava prestes a pagar o pato sem ter nada a ver com o mau comportamento da menina que a vestira nos dias anteriores. Derpina agora chorava.

– Isto é uma porcaria de festa, vocês são umas porcarias de amigas, onde já se viu isso… – e chorava. A sua amiga lhe afagava complacente, sem no entanto prestar a mínima atenção nos queixumes. Não entendia dessas coisas de ressaca moral. Para ela, Derpina estava era “muito doida”, ou tivera um pesadelo do qual não acordara direito. Às vezes isso acontecia com ela.

* * *

– Colombina! Colombina!

Derpina passou direto.

– Ah, Colombina, não faça isso! Eu te procurei tanto, o Carnaval inteiro!

Derpina virou-se. Viu outro “palhacinho” muito parecido com ela, preto-e-branco e com uma lágrima pintada no rosto. Achou-o simpático.

– Desculpe, eu não lhe conheço. Você deve estar me confundindo. O meu nome é Derpina, e não esta outra coisa aí da qual me chamaste.

– Colombina. Isto que você está usando é uma fantasia de Colombina.

– Ahhhh o nome dessa palhacinha é Colombina?

– Ela não é uma “palhacinha”. É Colombina e é… é uma personagem típica do Carnaval, que tem uma conhecida história de romance com outros dois personagens. Os palhaços são outra fantasia e têm outra história.

-Ahh… sei.

– Mas veja, eu sou um Pierrot, e o Pierrot é o namorado da Colombina: eu estava te procurando o Carnaval inteiro! Acho que nós devíamos ficar juntos. Nós formamos um belo casal! Podemos passear juntos, brincar com as outras pessoas, dançar um pouco… o que você acha?

Derpina olhou pra ele. Não estava com muito clima de ficar com mais ninguém, mas… bom, pelo menos ele conversara com ela! Coisa bem diferente dos outros “relacionamentos” que ela tivera nos últimos dias. O palhacinho de rosto pintado fora muito mais humano do que os outros caras com o rosto descoberto. O rapaz da fantasia preta-e-branca tratara-a muito melhor do que os outros moços sem fantasia.

– Sabe? Você me agradou muito mais do que os outros caras que encontrei por aí. – Derpina deu-lhe o braço. Nem percebeu que suas amigas perderam-se mais à frente, tentando arranjar o décimo-sexto cara para a menina mais tímida do grupo que não tinha conseguido ficar com quase ninguém.

– É que só um Pierrot consegue entender Colombina.

* * *

– Sabe, amiga? Eu tenho que lhe agradecer. – Derpina disse à sua amiga de noite, quando estavam se preparando para dormir. – Eu ia fazer uma grande besteira se tivesse rasgado a fantasia de Colombina.

– Fantasia de quê? Ah, essa palhacinha aí? Ah, que bom. E aí, aproveitou bastante o último dia?

– Sim, aproveitei. Descobri que eu estava fazendo tudo errado e a culpa era de vocês. Na verdade, a culpa era minha que queria ser igual a vocês; mas, enfim, o interessante foi ter visto como as coisas acontecem diferente daquilo que a gente espera. Eu pretendia ficar em casa hoje e acabei saindo com vocês; você queria que eu “aproveitasse” o Carnaval como nos outros dias e eu acabei me perdendo e passando o dia inteiro conversando com um rapaz legal. Eu achei que não ia acontecer nada diferente hoje, mas aconteceu e foi fantástico. Eu descobri que eu não preciso ser como vocês para me divertir também!

– Ahhm… É, Derpina, Carnaval é isso mesmo, todo dia acontecem coisas interessantes! Ano que vem tem mais!

– É… boa noite!

* * *

É Carnaval de novo. Derpina abre o guarda-roupa e pega a sua fantasia de Colombina. Dá os últimos retoques na maquiagem. A campanhia toca e ela se prepara para sair. Na porta, um rapaz está com uma fantasia muito parecida com a dela. Os dois se abraçam e saem juntos. Derpina quase não encontra as amigas que saíam com ela nos carnavais passados! Com Pierrot, no entanto, ela nunca mais deixou de sair.

Um conto de Carnaval

No temor de pedi-lo e na glória de tê-lo…
No gozo de prová-lo e na dor de perdê-lo…
No contato desfeito e no rumor já mudo…
No prazer que passou… Nesse nada que é tudo.

(Arlequim)

* * *

É tão doce sonhar!… A vida , nesta terra,
vale apenas, talvez, pelo sonho que encerra.
(…)
não tocar a que se ama e deixar intangida
aquela que resume a nossa própria vida.

(Pierrot)

* * *

Pudesse eu repartir-me e encontrar minha calma
dando a Arlequim meu corpo e a Pierrot a minh’alma!

(Colombina)

Menotti del Picchia,
Máscaras

Arlequim saiu de casa na manhã colorida do sábado, a sua roupa refulgindo com todas as cores do carnaval. Saiu sozinho, porque assim se divertia mais; dirigiu-se apressado às ladeiras repletas de frevo. Tinha pressa, pois sabia que os quatro dias de folia passam rápido, e não queria perder nada. Gostava das máscaras, que enchiam os olhos de beleza e de alegria.

No caminho esbarrou em um palhaço apagado, mais adequado a um velório que ao carnaval. Não deu importância e seguiu o seu caminho, sorrindo diante das fantasias coloridas, olhando com indisfarçado desejo para as garotas que enchiam de graça as ruas de paralelepípedos, disparando gracejos a cada passo que dava. Uma delas, mais que as outras, chamou-lhe a atenção: era jovem, era loira, e olhava para tudo com o olhar deslumbrado de quem se depara pela primeira vez com um mundo de beleza até então desconhecida.

Arlequim olhou-lhe e sorriu-lhe, e ela percebeu o seu interesse. Ele aproximou-se, puxou-a e a beijou, como já tinha feito tantas vezes antes; ela não lhe resistiu. Sem dizer-lhe uma palavra ele foi embora, deixando a jovem atônita: ela não conseguia entender como era possível ser tão sem graça a ponto de não merecer nem mesmo um olhar mais demorado. Arlequim não chegou a perceber a lágrima que escorria do rosto belo de Colombina enquanto ele seguia as bandas de frevo ladeira acima.

* * *

Pierrot saiu de casa na manhã triste chuvosa do domingo, sua roupa preta e branca como se fosse um pálido reflexo do dia cinzento. Saiu sozinho, porque sempre fora diferente dos outros, e não gostava da companhia dos demais personagens carnavalescos. Dirigiu-se devagar e pesaroso às ladeiras abarrotadas de ilusões. Não tinha pressa, pois sabia que não encontraria nada nos quatro dias de festa. Não gostava das máscaras, que eram ilusórias e escondiam aquilo que as coisas realmente eram.

No caminho viu um palhaço colorido que ensaiava alguns passos de frevo e atraía a atenção dos foliões que passavam; mas não viu graça. Seguiu andando, olhando com indisfarçado desinteresse para um lado e para o outro, sem responder aos sorrisos que, de vez em quando, eram-lhe endereçados. Encontrou, no entanto, uma garota que lhe chamou a atenção: era jovem, era loira, e olhava para tudo com o olhar decepcionado de quem percebe, pela primeira vez, a efemeridade da beleza do mundo.

Pierrot olhou-a e se espantou ao ver que a moça lhe olhava de volta. Sustentou o olhar apenas por alguns segundos, tempo suficiente para que o rubor se lhe assomasse às faces pálidas. Sem dizer-lhe uma palavra ele foi embora, deixando a jovem atônita: ela não conseguia entender como era possível ser tão sem graça a ponto de não merecer nem mesmo um gracejo de carnaval. Pierrot, descendo a ladeira sem olhar para trás, não chegou a ver a lágrima que escorria pelo rosto jovem de Colombina.

* * *

Colombina saiu de casa, e era uma segunda-feira bonita. Saiu sozinha sem saber o porquê; aproveitava os dias da festa de Momo, sem pressa e sem tédio. Seu humor oscilava entre o deslumbramento e a decepção: o carnaval era-lhe uma experiência nova e estranha. Estava ainda se acostumando com as máscaras.

Passou por algumas esquinas com o pensamento distante; uma chuva de confete e serpentina impediu-lhe de ver o palhaço colorido, e um bloco de frevo que passava escondeu-lhe o palhaço preto e branco. Alguns jovens lhe lançavam sorrisos, e para alguns ela sorria de volta: nenhum deles, no entanto, prendia-lhe muito a atenção. Era jovem, era loira, e olhava para tudo com o olhar indeciso de quem não sabe se ama o prazer pelo ímpeto com o qual ele vem ou se o odeia pela rapidez com a qual ele vai embora.

Colombina irritou-se consigo mesma, com sua própria inconstância, com sua própria indecisão. E, hoje, não havia ninguém que pudesse ter visto a lágrima que escorria pelo seu rosto loiro.

* * *

Arlequim, Pierrot e Colombina encontraram-se na terça-feira gorda. Olharam-se demoradamente.

O sorriso de Arlequim enaltecia o prazer carnavalesco. As lágrimas de Pierrot lamentavam as ilusões de Momo. O olhar de Colombina, oscilando entre um e outro, era indeciso: ela não queria os exageros de Arlequim, nem conseguia a indiferença de Pierrot.

Neste instante, o frevo silenciou. Findara-se o carnaval. O rosto de Arlequim era somente desespero: se não havia máscaras, não havia mais nada para ele. O rosto de Pierrot era sereno: ele não se iludira com as máscaras, chorara a sua quota de lágrimas e, agora, ficava feliz em ver as coisas face a face. Colombina nem se desesperava nem se alegrava: deixara-se enganar pelas máscaras, embora não tanto quanto Arlequim, e ainda teria lágrimas a derramar para limpar os olhos, mas conseguiria enxergar o mundo que se esconde por debaixo das fantasias.

Pierrot seguiu em frente. Colombina, embora cambaleante, seguia-lhe à distância. Arlequim ficou no chão, na espera vã de outros carnavais que lhe devolvessem o sentido da vida, irremediavelmente perdido para ele, pois sempre esteve escondido sob as máscaras para além das quais ele nunca conseguiu olhar. E, na manhã da Quarta-Feira de Cinzas, Pierrot esboçava um sorriso, Colombina derramava lágrimas, e Arlequim chorava amargamente.