A Cruz jamais exaltada o bastante

A Exaltação da Santa Cruz é uma festa cujo significado (particularmente nos dias de hoje) pode parecer obscuro. A cruz, afinal de contas, é um instrumento de tortura, de execução, de vilipêndio ao ser humano, de infâmia; como é possível então exaltá-la?

Sobre este assunto há duas coisas que precisam ser ditas. Nós exaltamos a Cruz primeiramente porque foi por meio dela que Nosso Senhor redimiu-nos de nossos pecados ao preço de Seu preciosíssimo sangue: «o documento escrito contra nós, cujas prescrições nos condenavam», Cristo o aboliu definitivamente «ao encravá-lo na cruz» (Cl 2, 14). Exaltá-la, assim, é coisa natural e esperada.

Trata-se de um comportamento plenamente humano, eminentemente racional, de encadeamento lógico entre meios e fins: é a capacidade de enxergar o que ainda não é naquilo que o propicia e prepara. A Cruz não é já ela própria a nossa salvação (e aliás nem haveria necessidade estrita de que o Messias morresse crucificado): mas foi por meio dela que Cristo nos salvou, unindo-a portanto de maneira definitiva e irrevogável ao nosso fim último, à Bem-Aventurança junto a Ele. Exaltamos a Cruz porque vemos nela a nossa Salvação.

Insista-se: isso se trata de um comportamento propriamente humano. Um cão pode até afagar a mão que o alimenta, mas nisso há muito de reação instintiva e imediata; e mesmo os animais domésticos às vezes se voltam contra aqueles que os protegem, estranham seus donos, atacam-nos. Um pescador pode soltar mil vezes um peixe das suas redes e devolvê-lo ao mar; não se verá nunca o peixe venerar o barco. Os veterinários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis podem resgatar e devolver à natureza centenas de animais silvestres; jamais se verá uma procissão dos bichos à sede do IBAMA.

Os homens, por sua vez, são capazes de valorizar e reconhecer aqueles que os trazem bens. O bem pode nos vir mediante um outro bem, e nestes casos a gratidão é fácil. Mas o bem também pode nos vir por meio de algo que se nos afigura, a princípio, desagradável. Assim os judeus podiam cantar outrora «como são belos sobre as montanhas os pés do mensageiro que anuncia a felicidade» (Is 52, 7), e isso era humano. Os cristãos, porém, hoje cantam, garbosamente, «ave, Crux, spes unica!» — e é difícil não enxergar nisso algo de sobre-humano.

Enxergar o bem futuro no que se apresenta agora como mal está totalmente fora do alcance dos animais irracionais: aquela estória da águia velha que arranca as próprias penas e quebra o próprio bico para se renovar e assim viver até os setenta anos é decerto uma lenda da internet. Mas nós homens somos capazes de valorizar o sacrifício, de suportar um mal relativo em vistas a um bem maior. Somos capazes de reconhecer isso como um valor e até mesmo escrever fábulas sobre animais maravilhosos, nos quais admiramos precisamente aquilo que só nós podemos ser.

A estória da renovação da águia é uma versão pagã da Exaltação da Santa Cruz. É a admiração do caminho que, conquanto doloroso, conduz ao rejuvenescimento. Da dor sem a qual não há esperança. A diferença é que a águia da fábula ganha mais trinta anos de vida devido ao seu ritual de renovação; os cristãos ganhamos a Vida Eterna por meio da Santa Cruz. Trata-se de um caso raro em que a realidade sobrepuja, e muito, a fábula. A gratidão pelo dia de hoje não deve ter limites; a festa hoje celebrada não pode conhecer medidas. Nunca é já o bastante, a Cruz de Cristo jamais será suficientemente exaltada.

Mas existe um segundo aspecto que deve ser aqui mencionado. É que a Exaltação da Santa Cruz existe porque ela representa muito bem o espírito cristão naquilo em que ele vai mais contundentemente de encontro ao mundo. A filáucia é o amor-próprio em seu sentido mais instintivo de buscar o prazer e evitar a dor: é provavelmente a mais primitiva e imediata das nossas reações. Todos os animais a conhecem; todos são dela escravos. O mundo a venera e difunde, e não entende como ela possa não ser erigida norma máxima da vida.

Já a Cruz é o extremo oposto, é o amor-próprio ao contrário: é o sofrimento aceito pelo bem de outrem. Quando Cristo no-la apresentou, ela se nos tornou possível: Ele padeceu e sofreu por nós e, hoje, nós também podemos padecer e sofrer por Ele.

Somente a Cruz nos liberta do imediatismo do prazer presente; somente ela nos ensina a grandeza de enfrentar a dor. E somente quando não se é mais escravo da filáucia é que se é verdadeiramente livre, porque é somente então que se consegue fazer algo diferente do ordinário — do que qualquer animal irracional faz, porque dá prazer. Quem busca o prazer imediato está limitado às coisas que são imediatamente prazerosas: ora, essas coisas são muito poucas, muito efêmeras e muito vãs. Ao contrário, a quem consegue desprezar o prazer e enfrentar a dor estão verdadeiramente abertas as portas do mundo; e, principalmente, estão-lhe abertas as portas do Céu.

A Exaltação da Santa Cruz é, assim, o resumo mais eloquente da libertação que Cristo nos traz: é o ápice e o modelo da vida cristã. É uma ousada profissão de Fé contra as pompas do mundo. É a passagem da escravidão à liberdade, da puerícia à idade adulta. É uma festa gloriosa porque glorioso, sublime é o que nela se celebra: a Cruz que nos redime, a Cruz somente em conformidade com a qual se é possível viver livre neste mundo.