A natureza não passa de palha diante da graça

Somos todos filhos de Deus. Acho que eu já disse isso aqui, citando São Pio X: dá-se a Deus o nome de Pai «porque Deus é Pai de todos os homens, que Ele criou, conserva e governa» (Terceiro Catecismo da Doutrina Cristã, Q. 24). Se «Deus é pai de todos os homens», portanto, por exigência lógica incontornável, a relação pode ser expressa ao revés: e, assim, é verdade que todos os homens são filhos de Deus.

Claro, sabe-se que a filiação divina é uma realidade que se reveste de particulares características no âmbito da ação santificante da Igreja Católica e, no sentido de filhos adotivos «pela graça», somente dos cristãos Deus é pai. As duas coisas, no entanto, não se confundem e nem se excluem: de todos os homens Deus é pai, mas pai pela graça Ele o é somente dos cristãos.

Aqui cabe também, parece-me, aquela máxima da teologia católica de que a graça não destrói mas, ao contrário, aperfeiçoa a natureza. A filiação divina que obtemos por meio da regeneração do Santo Batismo aperfeiçoa aquela outra filiação divina genérica, comum a todos os homens que Deus «criou, conserva e governa». Não se trata de uma paráfrase orwelliana segundo a qual todos seriam filhos de Deus, mas alguns filhos seriam mais filhos do que os outros: trata-se, ao contrário, de distintos modos de se dizer, dos homens, que são filhos de Deus Pai Todo-Poderoso.

Mas e quanto aos pagãos e aos ateus, aos judeus e aos muçulmanos, a toda essa multidão de homens cujas almas não estão marcadas com o sinal da Fé: não se corre o risco de que eles “se contentem” em serem filhos de Deus em sentido amplo e, julgando já suficiente a filiação “comum” a todos os homens, desprezem o dom que a Igreja não cessa de oferecer aos que n’Ela quiserem ingressar pela porta do Batismo? Não se corre o risco de menosprezar a filiação divina pela graça ao se falar que todos os homens, pelo simples fato de serem homens, são já filhos de Deus?

Penso que semelhante mesquinharia espiritual não é própria dos seres pelos quais Cristo morreu numa Cruz. É o inverso: penso que uma realidade chama a outra como os ensaios da peça pedem pela apresentação triunfal, exigem-na e, sem ela, parece que fica faltando alguma coisa. Tem validade universal aquele «feciste nos ad Te» de Santo Agostinho: e todos os homens, por distantes que estejam da Fé, não descansam enquanto o seu coração não repousa em Deus. Em uma palavra, contentar-se com a natureza não é o bastante para homens que são chamados à graça, e os monumentos das praças públicas da Cidade dos Homens não são capazes de satisfazer as almas que foram feitas para os altares da Cidade de Deus.

Dizer aos que não têm Fé que eles são «filhos de Deus» não é fechar-lhes as portas à Igreja: ao contrário, é abri-las e convidá-los a que por elas adentrem depressa! Porque bem fácil se percebe que ser criado, conservado e governado é muito pouco quando se tem a oportunidade de ser redimido; que a natureza não passa de palha diante da graça; e que aquele “filho de Deus” genérico não tem sentido em si mesmo, mas aponta para a filiação adotiva que só se obtém mediante a graça, e reclama o Batismo que nos torna efetivamente filhos de Deus.

Sobre o Batismo – Papa Bento XVI

Por este Sacramento, o homem se torna realmente filho, filho de Deus. A partir de então, o propósito da sua existência passa a ser atingir, de modo livre e consciente, aquele que é, desde o início, o destino do homem. “Torna-te aquilo que és” – é o princípio básico de educação da pessoa humana redimida pela graça.

[…]

Do batismo também é derivado um modelo de sociedade: o de irmãos. A Fraternidade não pode ser estabelecida por uma ideologia, nem muito menos por decreto de qualquer poder constituído. Nós nos reconhecemos irmãos pela consciência humilde, mas profunda, de sermos filhos de um único Pai Celestial. Como cristãos, graças ao Espírito Santo que recebemos no Batismo, temos a graça de viver como filhos de Deus e como irmãos, para assim sermos o “fermento” de uma nova humanidade, solidária e rica de paz e de esperança. Para isto, nos ajuda ter consciência de que, além de termos um Pai no céu, temos também uma mãe, a Igreja, para a qual a Virgem Maria será um modelo para sempre. A ela confiamos as crianças recém-nascidas e suas famílias, e pedimos para todos a alegria de renascer a cada dia “do alto”, do amor de Deus, que faz de nós seus filhos e irmãos.

Bento XVI, Angelus, 10 de janeiro de 2010

Feliz dia das mães!

Bem en passant: feliz dia das mães! Queria ter mais tempo para escrever mais e melhor sobre este dia tão importante; mas acho melhor ser limitado neste assunto ao qual, aliás, a limitação é inerente, do que passar o domingo de hoje em silêncio por não ter tido tempo para os arroubos retóricos dos quais gostaria.

No mês de maio – mês da Virgem Maria – é o dia das mães; no mês d’Aquela que é Mãe por excelência, nós parabenizamos as nossas próprias mães carnais, que nos deram a vida, nos carregaram em seu seio, nos nutriram e educaram e nos transformaram naquilo que somos hoje. No mês da nossa Mãe espiritual, nós nos lembramos também de nossas mães naturais; afinal, a graça pressupõe a natureza e Maria Santíssima não poderia ser a nossa Mãe Espiritual se não fossem as nossas mães carnais. Não teríamos como Mãe a Mãe de Deus se não tivéssemos como mãe a mãe que é nossa, e de quem nascemos para esta vida; não teríamos Mãe do Céu sem a nossa mãe da terra.

Vocação sublime, mistério insondável, dignidade altíssima que Deus concedeu à mulher: não nascem os filhos de Deus por meio das águas do Batismo se, antes, não nascerem eles de uma mãe carnal que lhes dê a vida natural e, ao mesmo tempo, a possibilidade da vida sobrenatural! Por meio dos filhos, os homens são chamados a colaborar com Deus na obra da criação, mas que papel espetacular que cabe à mãe nesta história: carregar o filho no ventre enquanto ele se forma, agasalhá-lo e amamentá-lo quando ele é pequeno e indefeso, educá-lo enquanto ele cresce e acompanhá-lo durante toda a sua vida; as marcas maternas são indeléveis. Obrigado, ó mãe, porque sem ti eu nada seria!

Que a Virgem Santíssima, Mãe de Deus e nossa, e também – não nos esqueçamos – mãe de nossas mães, possa abençoá-las em profusão neste dia a elas dedicado; que cada mãe aqui na terra possa ter em si algo desta Mãe do Céu, que A lembre e que a Ela conduza. E que um dia possamos nos encontrar todos, Mãe do Céu e nossas mães da terra no Céu, a fim de vivermos plenamente a vida que – graças às nossas mães – apenas começamos a viver aqui na terra. Que Deus abençoe todas as mães!

Dominica Quarta in Quadragesima

Lætáre, Jerúsalem: et convéntum fácite, omnes qui dilígitis eam: gaudéte cum lætítia, qui in tristítia fuístis: ut exsultétis, et satiémini ab ubéribus consolatiónis vestræ. Ps. 121, 1. Lætátus sum in his, quæ dicta sunt mihi: in domum Dómini íbimus. V/. Glória Patri. Lætáre.
[Introito da missa de hoje]

Assim começa a Santa Missa de hoje, quarto domingo da Quaresma, no qual o Roxo penitencial que permeia todo este tempo litúrgico é substituído pelo Rosa; é um grito de júbilo, antecipando a Páscoa que está às portas. Laetare, quer dizer, alegra-te. Alegra-te, Jerusalém – alegra-te, ó Igreja, porque o Senhor é Deus. Uma alegria contida, é verdade: usamos rosa, e não o branco dos dias de festa. Penso num misto de alegria com penitência, como se o rosa fosse resultado da mistura do branco festivo ao roxo quaresmal: ainda é Quaresma, mas a Igreja nos chama à alegria.

Qual o motivo da alegria? Podemos meditar em pelo menos três motivos pelos quais a Igreja nos convida ao júbilo no meio da Quaresma: pelo que somos, pelo que está por vir e – last, but not least – pela própria penitência. Devemos nos alegrar pelo que somos, como a própria Liturgia nos mostra na primeira leitura, da Epístola de São Paulo aos Gálatas, capítulo 4, versículos do 22 ao 31: nós somos filhos da promessa, e não filhos da escrava! Somos amados por Deus. “Abraão teve dois filhos”; e o filho de Sara, da esposa legítima, é figura dos filhos de Deus, dos filhos da Igreja, de nós. Alegremo-nos, diz a Igreja, “porque o filho da escrava não será herdeiro com o filho da livre” (v. 30).

Alegremo-nos também pelo que está por vir: em sentido imediato pela Páscoa, que celebraremos em breve, mas também pela Páscoa definitiva, que celebraremos na Glória dos Céus e que podemos esperar exatamente porque somos filhos da mulher livre, somos filhos da promessa, somos filhos da Igreja! A Páscoa que celebramos ao fim da Quaresma é também figura da Páscoa que – esperamos! – iremos celebrar ao fim da quaresma da nossa vida, ao fim da nossa peregrinação neste Vale de Lágrimas. Alegremo-nos, porque o Sábado Santo sucede à Quaresma; alegremo-nos, porque a Vida Eterna sucede à vida passageira, e a Glória dos Céus sucede aos sofrimentos terrenos. Esta é a nossa esperança, expressa de maneira magnífica no Rito do Batismo quando, indagados sobre o que nos concede a Fé, respondemos prontamente: a Vida Eterna. “[Q]uem não conhece Deus – diz o Papa Bento XVI -, mesmo podendo ter muitas esperanças, no fundo está sem esperança, sem a grande esperança que sustenta toda a vida” (Spe Salvi, 27). Nós conhecemos a Deus, e nós portanto podemos ter esperança verdadeira. Por isso, devemos nos alegrar.

E, por fim, devemos nos alegrar pela própria penitência, a quaresmal em primeiro lugar e a nossa penitência quotidiana – não é, afinal, a Quaresma figura da nossa vida? – que fazemos durante todos os nossos dias. O sofrimento não é vazio de significado; nós não fazemos penitência pelo simples fato de gostarmos de sofrer, mas sim porque sabemos que somos pecadores e sabemos que necessitamos da Misericórdia de Deus. O “alegrai-vos” em meio à penitência tem também o sentido de ecoar aquela máxima evangélica: Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois assim perseguiram os profetas que vieram antes de vós (Mt 5, 11-12). À luz da Fé Cristã, os nossos sofrimentos não são vazios, nem são frutos de um masoquismo humano ou sadismo divino – não! Os sofrimentos oferecidos a Deus em união aos de Nosso Senhor na Cruz do Calvário serão recompensados. Alegrai-vos, diz-nos a Igreja em meio à penitência quaresmal – aos sofrimentos quotidianos -, porque grande será a vossa recompensa nos Céus.

Em particular nestes dias em que a Igreja sofre tão violenta investida de Seus inimigos e nós, católicos, sofremos tanto ataques por causa de nossa Fé, são consoladoras as palavras de São Paulo na leitura de hoje: “Como naquele tempo o filho da natureza perseguia o filho da promessa, o mesmo se dá hoje” (v. 29). E, por isso, o Laetare deste quarto domingo vem para nos dar forças e consolação. Apesar de tudo, devemos nos alegrar. Apesar dos sofrimentos, e até por causa desses mesmos sofrimentos, pois eles são o fogo no qual o ouro é provado. Não nos esqueçamos de que somos amados por Deus; recordemos a nossa Esperança de celebrarmos um dia a Páscoa Definitiva; e lembremo-nos sempre de que são bem-aventurados aqueles que padecem sofrimentos por causa de Nosso Senhor. Ouçamos o Laetare, Jerusalem que a Igreja nos dirige hoje e, à luz da Fé, respondamos com confiança: Laetatus sum, sim, nós nos alegramos verdadeiramente! Que a Virgem Santíssima nos conceda a todos uma Santa Quaresma.