Quem são os fanáticos?

Amigo 1: A Inquisição matou milhares de cientistas durante a Idade Média, época que ficou conhecida justamente como “Idade das Trevas” devido à perseguição que a Igreja fez à Ciência.

Eu: Tu podes me dizer o nome de um cientista que foi queimado pela Inquisição?

Amigo 1: Tem… tem… tem… qual o nome dele? Poxa… tu sabes, Jorge. Aquele que disse que a terra era redonda.

Amigo 2: Copérnico.

Amigo 1: Isso. Copérnico.

Eu: Copérnico era monge católico e morreu de velho. Próximo. [Eu poderia ter dito, mas não disse para não desviar (ainda) mais o foco da discussão, que Copérnico não disse que a terra era redonda, e sim que ela girava em torno do sol]

Amigo 2: Ele foi queimado sim.

Eu: Foi não.

Amigo 1: Foi sim, Jorge.

Eu: Não foi.

Amigo 1: Aqui tem dois contra um. Foi queimado sim.

O diálogo acima ocorreu exatamente deste jeito, se não com essas exatas palavras, com esta seqüência e este encadeamento de argumentos. E, por maioria simples de votantes (dois contra um) em uma mesa de shopping tomando chopp, Copérnico foi queimado pela Inquisição – e ai de quem ousasse dizer o contrário. Acho até que eu próprio escapei, por pouco, de ser queimado – afinal, estava chovendo.

Óbvio que protestei contra esta loucura metodológica e este ultraje histórico. E o Google depois os convenceu de que Copérnico não fora queimado pelo Santo Ofício (espero que por relevância das referências, e não por um democrático número de resultados). Mas o que me incomodava então não era isso – afinal de contas, uma bobagem pontual é relativamente simples de ser refutada. O que me incomodava e me incomoda são os pressupostos tácitos e universalmente aceitos, o “contexto histórico” genérico e difuso – mas que marca terreno no imaginário popular com a força de um dogma inexpugnável.

Pergunte-se a uma pessoa qualquer no meio da rua, católica ou não, se é verdadeira ou falsa a afirmação “a Inquisição perseguiu e matou milhares de cientistas durante a Idade Média”. Nove entre dez pessoas, no mínimo – que digo eu? Noventa e nove entre cem, provavelmente -, vão responder que é verdadeira. Depois, pergunte-se o nome de alguns desses cientistas que a Inquisição matou. Não vai sair absolutamente nada (e, caso saia, vai ser, na ordem, Galileu, Copérnico e Giordano Bruno – diga-se de passagem, dos três, só este último foi queimado).

Copérnico era monge, Galileu era amigo do Papa, e ambos morreram de velhice. Mas, vá lá, aceitem-se para fins de argumentação estes que são os únicos oferecidos pelos anti-clericais. A pergunta que se impera é: cadê os milhares? Ou as centenas? As dezenas? Se, perscrutando mil anos de alegada perseguição científica, os inimigos da Igreja só são capazes de puxar da manga três exemplos (e três exemplos bem questionáveis, é bom não esquecer) de cientistas perseguidos pela Inquisição, não seria algo perfeitamente sensato e razoável questionar a verossimilhança dos pressupostos adotados?

Se a Igreja perseguiu e matou milhares de cientistas na Idade Média, como é possível que ninguém possa nos dar exemplos de alguns destes mártires da Razão contra o obscurantismo religioso? É óbvio que, se houve uma “perseguição” com as proporções que a mentalidade média acredita ter havido, deve haver algum registro disso. A resposta-padrão a este questionamento é: “mas a História é escrita pelos vencedores”. Extremamente cômodo, e extremamente nonsense. Eis a “lógica”: se não há registros dos cientistas que arderam nas fogueiras da Inquisição, é precisamente pelo fato de que eles foram queimados e a Igreja malvada encobriu tudo: ou seja, prova-se que a Igreja perseguiu uma multidão de cientistas do fato mesmo de ninguém saber absolutamente nada sobre esta multidão de cientistas perseguidos! E ninguém parece ver nada de errado com isso – é impressionante. A força do absurdo que é inculcado pacientemente ao longo dos anos, desde a infância, acaba com todo o senso crítico. As pessoas apenas repetem bovinamente: “mas a Igreja perseguiu e matou milhares de cientistas durante a Idade Média”.

Os que se preocupam com as regras básicas para debater já concluíram que ausência de evidência não é evidência de ausência. Não perceberam ainda eles, no entanto, esta metamorfose argumentativa que faz com que, para atacar a Igreja Católica, a ausência de evidência degenere na prova cabal e demonstração incontestável da existência. “É lógico que não se conhecem os cientistas, exatamente porque eles foram perseguidos e mortos!”. E não adianta redargüir “tá, mas como é que se sabe, então, que eles foram perseguidos e mortos?”, porque a resposta é invariavelmente a mesma: “todo mundo sabe disso”. E depois somos nós os dogmáticos e os fanáticos? Por que ninguém se preocupa com esta calúnia institucionalizada que é a atribuição virtualmente onipresente de um rótulo odioso à Igreja Católica? Por que a afirmação “a Igreja perseguiu cientistas” deve ser aceita como um dogma incontestável?

Miscelânea

Panayiotis Zavos Has Cloned Dead Humans, Implanted Other Cloned Embryos, notícia absolutamente bizarra: o sujeito está pegando DNA de gente morta e implantando em óvulos de vacas (!) “para estudar a clonagem humana”. Ver também a notícia do The Guardian. É um passo a mais nas aberrações éticas: não é suficiente clonar, não é suficiente criar híbridos, é preciso “ressuscitar os mortos”. Loucuras de um mundo sem Deus.

Brhadaranyakopanishadvivekachudamani batiza filho com mesmo nome, é outra notícia quase inacreditável. Este gosto pelo tosco, pelo feio, pelo estranho, pelo bizarro, é mais uma das loucuras a que se entregam os homens quando perdem de vista o Deus que é o Belo. Se é verdade que a beleza salvará o mundo, então ele está muito longe de ser salvo. E Satanás sabe muito bem o que faz…

Movimento lança campanha polêmica, é matéria de ontem do Diário de Pernambuco. Coisa estranha. “O nome do movimento é Javé Nossa Justiça. O emblema é um arco-íris e a polêmica em torno do que pregam seus integrantes promete ser das maiores”. Ao contrário do que pense à primeira vista, não é um movimento “religioso gay”, mas precisamente o contrário: “Tanto o aborto, quanto a homossexualidade são combatidos, na opinião do movimento, dentro da ótica dos preceitos bíblicos”. A julgar pelo que foi apresentado na matéria, no entanto, o movimento é inócuo e contra-producente. Vejam só o que o jornal veiculou como sendo posição do coordenador do movimento: “a própria Organização Mundial de Saúde reconhece o homossexualismo como uma doença, tratável”. Bom seria se assim fosse…

Bispo alerta para preconceitos da Igreja contra ciência. Notícia trazida pelo Argo, no estilo flooder dele, e devidamente classificada como lixo no post onde foi originalmente colocada. É do início do mês (02 de julho). Provavelmente trata-se da visão leiga da matéria veiculada em ZENIT no mesmo dia. Aliás, sobre a infelicíssima declaração de Dom Pagano, eu já tive oportunidade de comentar aqui, onde cheguei inclusive a dizer: “Não sei como foi que a segunda [parte da declaração de Dom Pagano] ainda não ganhou manchetes mundo afora, do tipo ‘Igreja precisa aprender com Galileo, segundo prelado vaticano’ ou qualquer outro título cretino como os que estamos acostumados a ver quando o assunto é a Igreja Católica”. Batata! Já tinha ganho e eu é que não tinha visto. O anti-clericalismo é tão previsível…

Mas é dita uma coisa boa na mesma notícia que eu não sabia e, se for verdade, Deo Gratias: “No fim de 2008, a Santa Sé anunciou que arquivaria o projeto de erguer uma estátua em homenagem ao físico nos jardins do Vaticano, proposta da Pontifícia Academia de Ciências”. Tomara.

Galileo, Fé e Ciência

I documenti vaticani del processo di Galileo Galilei; é o nome do livro sobre o cientista cuja nova edição foi apresentada ontem na Sala de Imprensa da Santa Sé. Foi Dom Sergio Pagano, prefeito do Arquivo Secreto Vaticano, o responsável por ela. Na opinião do prelado Vaticano: “O caso de Galileu ensina a ciência a não se considerar professora da Igreja em matéria de fé e de Sagradas Escrituras […]. E, ao mesmo tempo, ensina a Igreja a abordar os problemas científicos – também os relacionados com a mais moderna pesquisa sobre as células estaminais, por exemplo – com muita humildade e circunspecção”.

Eu nunca entendi a súbita “canonização” de Galileo. Desculpas, estátuas em sua homenagem, congressos, livros… tudo isso sempre me pareceu francamente exagerado. O “Caso Galileo” é precisamente um exemplo de como não devem ser as relações entre cientistas e religiosos, vá lá, e é importante aprender com os erros de antigamente; mas, como em tudo o que se refere à Igreja Católica, o que o mundo exige d’Ela é um aprendizado de mão única. “Galileo estava certo, a Igreja estava errada”.

Veja-se, p.ex., a intervenção do prefeito do Arquivo Secreto Vaticano: ensinar à ciência… ensinar à Igreja. A primeira parte, sem dúvidas, vai ser completamente descartada. Não sei como foi que a segunda ainda não ganhou manchetes mundo afora, do tipo “Igreja precisa aprender com Galileo, segundo prelado vaticano” ou qualquer outro título cretino como os que estamos acostumados a ver quando o assunto é a Igreja Católica. E, pra ser sincero, ao mesmo tempo em que eu não entendia a rasgação de seda, achava a idéia perigosa.

Perigosa, sim. Veja-se a declaração que Dom Pagano teve a capacidade de dar: a Igreja precisaria examinar as pesquisas científicas com células estaminais com muita humildade e circunspecção – isso dito, registre-se, em alusão ao “mártir da Ciência”! Será que é preciso ser paranóico para perceber a insinuação de que o ensino moral da Igreja sobre a inviolabilidade da vida humana “desde a concepção até a morte natural” estaria no mesmo saco das querelas científicas renascentistas? Esta inferência por acaso é verdadeira? Toda a louvação ao astrônomo italiano feita nos últimos anos não induz inexoravelmente a estas conclusões? Isso não é mais do que previsível? O que se pretende, portanto, com o revisionismo eclesiástico sobre Galileo?

As relações entre Fé e Ciência são obviamente sempre harmoniosas, porque a Fé e a Razão binae quasi pennae videntur quibus veritatis ad contemplationem hominis attollitur animus. O mesmo não se pode dizer, infelizmente, das relações entre os cientistas e os religiosos. Não há nenhuma novidade nisso. Importa, sim, sem dúvidas, aprender com a História, mas isso não pode ser feito de modo que aparente ser uma capitulação da Igreja ante os famosos do mundo; porque, neste caso, estar-se-ia agravando a falsa discrepância entre Fé e Ciência ao invés de a sanar…

Mais sugestões de leituras diversas

– Não lembro (perdoem-me a minha amnésia pós-carnaval) se já linkei isto aqui antes, mas este texto de um jornal português sobre “Excomunhão e Tolerância” ilustra bem o que se pode falar sobre o caso Williamson. Muitíssimo feliz o autor na forma utilizada para criticar a censura anti-qualquer-coisa-referente-ao-Holocausto:

Num mundo que gosta de se anunciar sem preconceitos e repudia a censura, existe um bloqueio drástico sobre o Holocausto. Comentar o horror nazi não pode ser feito fora da versão oficial. São admitidas todas as opiniões, menos essa. O pior é a forma inquisitorial, fanática e abespinhada com que o assunto é enfrentado. Quem nega as câmaras de gás deveria ser tratado com um sorriso pela ignorância e uma gargalhada pela tolice. Hoje o disparate é tanto que não merece mais. Em vez disso todos estes democratas e republicanos, supostamente tolerantes, condenam da forma mais persecutória o Papa por ele terminado o castigo canónico. Parece que Williamson devia ser excomungado de novo, agora não por insubordinação mas por opinião histórica. E Bento XVI também, mesmo não concordando com ele.

– Dois textos do Heitor de Paola sobre o aborto: “Alguns mitos e fatos científicos no debate sobre o aborto” e “Quando começa a vida”. Excelentes, porque argumentam sob uma ótica estritamente científica, evitando ao máximo (julgo eu, propositalmente) qualquer referência ética ou religiosa a fim de que o discurso seja assimilável por qualquer um e se evitem as cretinas acusações de “ingerência religiosa” e “estado laico” e blá-blá-blá. Do segundo:

[É] inevitável concluir que o aborto é uma espécie de homicídio, ou filicídio, de um ser já com individualidade que tem, in potentia, todas as condições de se desenvolver plenamente. Qualquer decisão, seja pessoal, seja jurídica, não deve evitar este conhecimento.

– Mais do Krause: uma tréplica ao artigo de Lucas Camarotti, no Jus Navigandi. A tréplica chama-se Laicismo antimetafísico e o colapso do Ocidente. O cara é muito bom! Excerto:

Tal conceito [de “laicidade ateu e materialista”], além de insustentável do ponto de vista lógico, é propugnado por uma fragorosa minoria, ainda que influente na sociedade. Nele, vislumbra-se a aversão às religiões positivas e a aversão à metafísica, tão cara aos grandes filósofos gregos. Por melhor que seja Richard Rorty, estou certo de que, diante de Aristóteles, que tanto se preocupou com a “filosofia primeira”, posteriormente denominada “metafísica”, ele é um menino de colo.

– O Gustavo teceu uns comentários sobre o III Fórum Mundial de Teologia e Libertação. A matéria completa está lá (para quem tiver estômago); os comentários sensatos do meu amigo, intercalados ao longo do texto, ajudam a torná-lo menos indigesto.

Querer “desenvolver” (isto é: inventar) uma teologia que sirva às nossas pretensões é desonestidade. É como iniciar uma pesquisa científica com uma conclusão pré-fabricada; é ir a campo querendo apenas coletar dados que corroborem o resultado que se quer obter

– O Marcio colocou no Tubo de Ensaio um texto longo, mas que vale muitíssimo a pena, sobre a controvérsia na qual esteve envolvido Galileo; trata-se de uma resenha de um livro publicado recentemente no Brasil pela Loyola. Recomendo fortemente, por ser um compêndio bem interessante e completo (tanto quanto é possível) sobre o assunto.

O tempo mostrou que Galileu tinha razão – mas as descobertas recentes sobre seu processo desmentem vários mitos e mostram que é impossível dividir os personagens do episódio em mocinhos e bandidos. Então, por que ainda hoje existem pessoas (inclusive professores) que continuam a afirmar coisas como “Galileu foi morto na fogueira”? “Quem tem algum preconceito contra a Igreja vai perpetuar os mitos porque sequer vai procurar conhecer os fatos, ou os argumentos contrários. Enquanto o mundo for mundo, essa postura permanecerá”, avalia dom Sérgio.