A má formação do clero e a validade dos Sacramentos

Uma leitora me perguntou por email se a falta de Fé dos sacerdotes poderia macular a eficácia dos sacramentos ministrados por eles. Por exemplo, se um sacerdote que não acredita na Transubstanciação poderia celebrar uma Missa válida (ou seja, uma Missa na qual a Hóstia Consagrada se tornasse, real e substancialmente, no Deus Vivo e Verdadeiro), ou se um bispo que descrê na Igreja Hierárquica poderia ordenar verdadeiros sacerdotes (ou seja, homens capazes de “confeccionar” os Sacramentos da Nova Aliança).

A resposta curta e direta para a pergunta é que os ministros celebram validamente os Sacramentos ainda que particularmente não tenham Fé. É o que consta nos manuais de teologia sacramental: “La validez y eficacia de los sacramentos no dependen de la ortodoxia ni del estado de gracia del ministro” (OTT, Manual de Teologia Dogmática, Livro IV, Parte III, Seção I, Cap. IV, §9., 1., b.). Quanto a este ponto não parece haver polêmica digna de nota, estando as posições donatistas já derrotadas há muitos séculos pela Igreja.

Mas há uma outra questão afim. É que todo Sacramento exige matéria, forma e ministro com intenção de fazer o que faz a Igreja. Sabe-se que a intenção suficiente para a validade dos sacramentos é a mera intenção virtual (Summa, IIIa, q.64, a.8, ad.3); no entanto, mesmo esta precisa ser minimamente qualificada. O próprio Aquinate, dois artigos depois, diz que se alguém quiser realizar não um sacramento, mas uma paródia, este anula o sacramento (id. ibid., a.10, Resp.). E o mesmo Ludwig Ott afirma poucos parágrafos depois (id. ibid., 2., b., c’.) o seguinte (tradução livre):

Segundo a opinião hoje quase geral dos teólogos, para a administração válida dos sacramentos requer-se [da parte do ministro] a intenção interna, isto é, uma intenção tal que não apenas tenha por objeto a realização externa da cerimônia sacramental, mas também o seu significado interno. É insuficiente a intenção meramente externa que foi considerada como suficiente por numerosos teólogos da escolástica primitiva (…) e muitos teólogos dos séculos XVII/XVIII.

Esta intenção meramente externa tem por objeto a realização da cerimônia religiosa com seriedade e nas circunstâncias devidas, porém deixando de lado o seu significado religioso interno. Como é natural, essa intenção não responde ao dever de fazer o que faz a Igreja, nem ao papel do ministro como servidor de Cristo, nem à finalidade do signo sacramental que em si é ambíguo e recebe sua determinação da intenção interna; nem tampouco está de acordo com as declarações do Magistério (cf. Dz 424, «fidelis intentio»).

A distinção é relevante. A lhe dar crédito, parece que é preciso matizar a resposta anteriormente dada. Parece, assim, que a mera falta de Fé do ministro não é suficiente para invalidar o Sacramento ministrado; no entanto, é possível cogitar de invalidade por defeito de intenção (não meramente “por falta de Fé”) se o ministro deliberada e conscientemente descrer da realidade sacramental.

Alguns exemplos. Certo padre nutre dúvidas sobre a realidade da transubstanciação; não consegue crer na Presença Real, mas sofre por conta disso, e celebra reta e zelosamente a Santa Missa. O Sacramento é válido; tal é, precisamente, a história do milagre de Lanciano. A intenção, neste caso, era reta, ainda que faltasse ao padre, em certa medida, a fé eucarística.

Outro exemplo. O sujeito rompe formalmente com a Igreja Católica. No entanto, incoerente mas honestamente, continua acreditando em Nosso Senhor Jesus Cristo. Batiza, respeitando a fórmula trinitária. O Sacramento é válido, sem dúvidas: esta é uma das definições doutrinárias mais antigas, da época do Cristianismo Primitivo.

Terceiro exemplo. O indivíduo é um simplório, tem uma profunda limitação intelectual, ou quem sabe pertence a uma cultura estranha (digamos, é um silvícola em seu primeiro contato com o europeu), mas se encantou com a pregação dos missionários, largou tudo o que tinha e se fez ordenar sacerdote. Não entende, absolutamente!, todos os detalhes da teologia sacramental católica, mas decorou os ritos da Santa Missa e, quando a celebra, entende estar praticando o culto dos católicos. Ainda neste caso o Sacramento é válido pela retidão do sacerdote.

Ou seja, o sacramento é válido, ainda que o ministro não acredite nele, se essa descrença for uma mera fraqueza; é válido, ainda que o ministro negue o dogma católico, se a negação do dogma versar sobre um ponto alheio ao Sacramento que se está ministrando; e é válido, ainda que o ministro não compreenda direito o que está fazendo, se essa incompreensão for fruto de uma formação insuficiente e não-culposa. Não há, nestes casos, defeito de intenção capaz de invalidar o Sacramento.

Caso diferente ocorre quando o padre conhece o ensino da Igreja sobre determinado sacramento e, conscientemente, com malícia, quer fazer algo diferente do que a Igreja entende com o sacramento. Por exemplo, se o padre sabe que a Igreja ensina ser a Missa a renovação incruenta do Sacrifício do Calvário, mas acha que a Igreja está errada, e quando ele “preside a Eucaristia” o que ele efetivamente quer celebrar é um banquete simbólico festivo, então neste caso o Sacramento é inválido. Não porque — atenção! — falte-lhe Fé, mas porque lhe falta a intenção de fazer o que faz a Igreja neste caso específico. No mesmo exemplo, se este mesmo padre acredita ter o poder de perdoar os pecados, e se ao ouvir confissão ele quer realmente absolver o penitente de suas faltas, então a sua confissão é válida mesmo que a sua Missa não o seja.

Pelo que vejo, eu acredito que o problema da má-formação dos sacerdotes, no geral, enquadra-se no exemplo da formação insuficiente que referi acima. São pessoas de reta intenção que podem até ter idéias bem equivocadas sobre o dogma católico; mas não o fazem com o animus específico de agir contra o que a Igreja ensina, o que faz toda a diferença. Na pior das hipóteses, têm a intenção de celebrar a cerimônia cristã que (acreditam que) a Igreja celebra, e isso é suficiente para garantir a intenção virtual capaz de conferir validade aos sacramentos. Com esses não é preciso se preocupar.

Ao contrário, é preciso se acautelar dos padres orgulhosos, rebeldes, que negam conscientemente o ensino sacramental da Igreja; e dos que celebram de maneira debochada, ou mecânica. Um e outro podem ministrar sacramentos inválidos por defeito de intenção. Não simplesmente por conta de má formação, mas de uma formação má. Porque para invalidar um sacramento não é suficiente ser ignorante, é preciso saber que está fazendo errado, é preciso querer fazer errado. Por mais que a situação do clero atual seja deplorável, não me parece que haja entre ele tanta perversidade a ponto de transformar a validade dos sacramentos em uma questão exageradamente preocupante.

A canonização de santos não virtuosos

Uma «canonização» de um santo é um ato jurídico por meio do qual a Igreja atesta fundamentalmente duas coisas: que o canonizado está no Céu gozando de visão beatífica e que é modelo de virtudes a ser imitado pelos fiéis. Cumpre entender corretamente os limites desse ato canônico, a fim de não expôr a Igreja ao ridículo sustentando certas concepções dos santos canonizados que a Igreja, absolutamente, não reconhece como Suas.

Quanto à primeira garantia da canonização, que o santo goza de visão beatífica, basta para defender a posição da Igreja que tal seja possível, uma vez que o seu contrário não poderá jamais ser provado. Ora, é certamente possível que qualquer pessoa, rigorosamente qualquer pessoa, esteja no Céu, independente da vida que tenha levado, uma vez que um arrependimento in articulo mortis é sempre suficiente para a salvação eterna. A soteriologia cristã não é uma função matemática relacionando indiscriminadamente os atos da vida terrena com a sorte da vida eterna. Em última instância, o que conta é o estado da pessoa no momento em que ela se apresenta diante do Justo Juiz. É evidente que os hábitos de vida da pessoa influenciam sobremaneira o referido estado – e dessa maneira uma pessoa acostumada a levar uma vida virtuosa tem maior facilidade de se encontrar voltada para Deus no momento em que for colhida pela morte, e de modo inverso alguém que tenha levado uma vida de crimes só a muito custo conseguiria um amor verdadeiro a Deus e um sincero desprezo por seus pecados no instante derradeiro -, mas não há nenhum determinismo aqui e não se pode negar a possibilidade de que mesmo um pecador empedernido seja tocado pela graça de Deus ao último alento.

A segunda garantia da canonização é um pouco mais excludente e não abrange todos os homens do mundo. Ao propôr alguém como modelo de virtudes, a Igreja está certamente atestando a existência de virtudes na vida do canonizado, e de virtudes públicas, uma vez que as disposições interiores e ocultas não poderiam servir para ninguém nelas se espelhar. Se qualquer pessoa passaria no primeiro escrutínio da santidade, neste segundo muitos são deixados de fora. O “Mau Ladrão” pode perfeitamente ter chegado ao Céu, mas a Igreja não o pode canonizar porque não há virtude pública que ele tenha exercido e, portanto, não há em quê ele possa ser modelo proposto à imitação dos católicos.

Dizer que alguém é detentor de virtudes a serem imitadas é diferente de dizer que este alguém exercitou todas as virtudes possíveis em grau máximo. No meu entender, apenas a primeira proposição é fiel ao que a Igreja entende por «santo canonizado». Há uma miríade de virtudes nos santos de Deus: em alguns deles é possível que resplandeça mais a sua humildade, noutros o seu zelo apostólico, em um a sua Teologia, em outro ainda a sua caridade para com os pobres, etc. Um santo pode ser um modelo por algumas virtudes e não por outras. Alguém pode merecer a honra dos altares por conta de sua dedicação apaixonada à expansão do Evangelho, ainda que não tenha se destacado na virtude da humildade. Vou mais além e digo: ainda que tenha sido orgulhoso, desde que este defeito não seja objeto de imitação. Do mesmo modo e inversamente, alguém pode ser proposto pela Igreja como modelo por conta da sua resplandecente humildade, ainda que não se tenha destacado no zelo apostólico. E de novo acrescento: ainda que tenha sido negligente nesse específico dever cristão, contanto que a negligência não seja indissociável do seu caráter a ponto de se tornar escandalosa.

Do exposto, segue-se que a nenhum santo canonizado exige-se que «sua teologia dev[a] ser impecável, até o mais mínimo detalhe», como pretendeu recentemente um sacerdote da FSSPX. Não, não deve. Contanto que o candidato à honra dos altares tenha virtudes – quaisquer verdadeiras virtudes – a serem imitadas, ele não precisa ser “impecável” em nenhuma delas em particular. A teologia de qualquer santo só precisa ser católica, não lhe sendo estritamente necessário nenhum refinamento acima do comum, nenhuma sensibilidade extraordinária.

A João Paulo II (e a qualquer outro) basta, portanto, não ser herege para que possa ser proposto pela Igreja à imitação dos fiéis. Assim, os argumentos que tornam possível a sua canonização são rigorosamente os mesmos que defendem ter ele sido Papa legítimo. Se a sua Teologia possuísse problemas que o impedissem de ser canonizado, ele estaria pela mesmíssima razão impedido de ser verdadeiro Papa. Dizer que ele foi efetivamente Papa até o fim da vida e ao mesmo tempo considerar a sua Teologia um óbice verdadeiro à sua canonização é uma posição contraditória e que não tem nenhum sentido.

Abertura do Ano da Fé

A Fé é aquela virtude teologal pela qual o indivíduo humano, movido pela graça divina, presta a adesão do seu intelecto e da sua vontade às verdades reveladas por Deus e propostas pela Igreja. A definição é talvez a mais clássica possível; no entanto, longe de se encontrar desgastada pelo uso ao longo dos séculos, reveste-se de uma – imperecível! – luminosa vitalidade também nos dias de hoje, somente à luz da qual o homem dos tempos modernos pode encontrar a Deus e, encontrando-O, descobrir o verdadeiro sentido da sua existência e realizar plenamente a sua vocação nesta terra.

Vivemos em uma terrível crise de Fé: imagino que ninguém o ignore. No entanto, o que eu percebo que muitas vezes se ignora é o significado mais profundo desta crise. Muitas vezes costuma-se percebê-la como a simples falta de clareza na expressão do Dogma católico, não raro com injustas e pouco reverentes acusações aos Legítimos Pastores da Igreja – o Sumo Pontífice em particular – e ao próprio Magistério Católico recente. Isto, no entanto, é perder de vista o essencial. Sem (absolutamente!) desprezar o valor das formulações dogmáticas históricas, é preciso ter sempre em mente que o Depositum Fidei não se confunde com elas. A Fé pressupõe esta colaboração entre dois elementos: por um lado o dogma católico (mediante a sua formulação) e, pelo outro, a razão humana que livremente lhe presta assentimento. Tenho a impressão de que hoje muitas vezes se insiste em demasia nas deficiências da formulação dogmática, sem no entanto prestar atenção à malícia humana que, por conta do pecado, insiste em rejeitar o conteúdo da Fé.

A mais perfeita e cristalina exposição da Doutrina Católica não seria capaz de, sozinha, produzir nas almas a virtude da Fé: este é um fato incontestável que decorre imediatamente da própria definição de “Fé” como resposta livre e pessoal ao Deus que Se revela e que convida a crer. Temos problemas com a exposição sistemática da Fé Católica? Sem dúvidas que sim! No entanto, temos também o problema – no meu entender ainda mais grave do que o anterior – de uma humanidade orgulhosa e fechada à transcendência, sem interesse algum pelo dogma católico (bem ou mal formulado).

Hoje é a abertura do Ano da Fé. Sem dúvida, e isto provavelmente nunca será repetido tanto quanto necessário, é preciso insistir na clareza da exposição da Fé (acessível aos homens e livre de erros ou interpretações equivocadas); mas é também da mais alta importância cultivar a “sede de Deus” dos homens, aquela santa inquietação da qual Santo Agostinho fala tão maravilhosamente ao dizer que o coração dos homens – criados para Deus! – vive inquieto enquanto não repousa n’Ele. Hoje, os erros em matéria religiosa são muito mais básicos do que o foram historicamente: enquanto uma heresia é uma opção visceral – ex imo cordis – por uma doutrina errônea, o relativismo dos dias modernos é a negação da própria necessidade de se aderir a qualquer doutrina, errônea ou não. Um herege ao menos entende a importância de se crer em alguma coisa, e erra somente quanto ao objeto da sua crença; muitos dos homens de hoje em dia, ao contrário, não têm sequer este sentido da importância de crer em algo. É por isso que, para estes, debruçar-se sobre o conteúdo específico e detalhado da Fé é não apenas inútil como também maçante. Há, hoje em dia, a exigência de um trabalho (geralmente árduo e demorado) de, antes de dizer aos homens no que eles devem ter Fé, convencê-los simplesmente de que eles devem crer. É por isso que a questão da clareza do dogma é somente uma parte do problema atual: de nada adianta expôr perfeitamente uma doutrina a quem não se convenceu ainda de que precisa de uma. Ambas as questões merecem a nossa atenção.

No dia de hoje, vale ainda fazer referência a quatros textos que, embora bem diferentes entre si, guardam estreita relação com este Annus Fidei que hoje se inicia. São eles:

1. O motu proprio Porta Fidei, com o qual se proclama o Ano da Fé: «Como se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a vontade a quanto é proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico revelado por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se acredita, se aceita livremente todo o mistério da fé, porque o garante da sua verdade é o próprio Deus, que Se revela e permite conhecer o seu mistério de amor».

2. Este texto inédito de Bento XVI por ocasião do 50° aniversário do Concílio Vaticano II: «Os Padres conciliares não podiam nem queriam criar uma Igreja nova, diversa. Não tinham o mandato nem o encargo para o fazer: eram Padres do Concílio com uma voz e um direito de decisão só enquanto bispos, quer dizer em virtude do sacramento e na Igreja sacramental. Então não podiam nem queriam criar uma fé diversa ou uma Igreja nova, mas compreendê-las a ambas de modo mais profundo e, consequentemente, «renová-las» de verdade. Por isso, uma hermenêutica da ruptura é absurda, contrária ao espírito e à vontade dos Padres conciliares».

3. A homilia do Santo Padre na Missa de hoje da abertura do Ano da Fé: «É por isso que repetidamente tenho insistido na necessidade de retornar, por assim dizer, à «letra» do Concílio – ou seja, aos seus textos – para também encontrar o seu verdadeiro espírito; e tenho repetido que neles se encontra a verdadeira herança do Concílio Vaticano II. A referência aos documentos protege dos extremos tanto de nostalgias anacrônicas como de avanços excessivos, permitindo captar a novidade na continuidade. O Concílio não excogitou nada de novo em matéria de fé, nem quis substituir aquilo que existia antes. Pelo contrário, preocupou-se em fazer com que a mesma fé continue a ser vivida no presente, continue a ser uma fé viva em um mundo em mudança».

4. Este texto de Dom Fernando Rifan chamado “A Fé em perigo”. «Quando estava em Roma, no ano 2001, assisti admirado, na Praça de São Pedro, à chegada de milhares de fiéis do movimento Kolping, vindos da Alemanha, sobretudo homens, cantando com entusiasmo contagiante. Comentei então com um Cardeal alemão que estava ao meu lado: “Diante disso, Eminência, não se pode dizer que a Alemanha não seja um país católico!” Ele, porém, observou, acalmando um pouco o meu entusiasmo: “É, mas a Fé sempre corre perigo!”. Era o Cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé».

E que a Virgem Santíssima, Mãe de Deus e da Igreja, conceda-nos muitas graças ao longo deste ano que hoje se inicia. Que Ela nos faça crescer sempre em estatura, sabedoria e graça diante do Seu Divino Filho.

HOJE, no Círculo Católico de Pernambuco: pelos verdadeiros direitos humanos!

Recife já está preparado para o Fórum sobre o PNDH-3, que acontecerá logo mais no auditório do Círculo Católico. O evento recebeu notas na imprensa local, tanto na Folha de Pernambuco quanto no Blog do Jamildo.

O primeiro lembra que o príncipe «acredita que os problemas sociais são reflexos de outros problemas, de ordem moral». O Jamildo diz a mesma coisa, de modo mais extenso:

D. Bertrand se posiciona claramente no campo da propriedade privada, livre iniciativa e respeito ao princípio de subsidiariedade, o qual limita o Estado ao âmbito que lhe toca por sua natureza. Tendo bem claro que os problemas sociais não são senão reflexo de outros mais profundos, de ordem moral.

Sim, os problemas da sociedade decorrem de problemas doutrinários. Da mesma forma que a Sã Doutrina influencia positivamente a vida social, desabrochando na bela flor da caridade – bálsamo poderoso para aliviar as conseqüências sociais negativas do pecado humano -, a heresia sempre se degenera em cânceres no tecido social. O fenômeno é tão universalmente repetido que chega a ser previsível. Assim, não existem as (falsas e caluniosas) oposições entre o “conservadorismo” e o “cuidado social”, muito pelo contrário: é preciso pensar com clareza para agir de maneira profícua. O conservadorismo, longe de atravancar o desenvolvimento social, é precisamente o que o possibilita e protege contra as influências nefastas – essas sim desagregadoras – dos erros e das heresias, dos experimentos sociais irresponsáveis, da cupidez de coisas novas que historicamente tanto mal provocou às sociedades e aos povos.

Quanto aos que estiverem hoje à noite no Recife, não percam a oportunidade de participar do evento promovido pelo Círculo Católico em parceria com o Instituto Plinio Corrêa de Oliveira. Ouçamos o que conferencistas tão ilustres – o Dr. Eduardo Barreto Campello, o Coronel da PMESP Paes de Lira e S. A. I. R. o Príncipe D. Bertrand de Orleans e Bragança – têm a nos dizer. E debatamos, sim, os Direitos Humanos, mas os verdadeiros, e não os pseudo-direitos revolucionários e injustos que nos querem impôr na base de canetadas advindas do Palácio do Planalto. Furemos a censura da grande mídia, que – salvo honrosas exceções – está mancomunada com os novos bárbaros inimigos da Pátria: com aqueles que atualmente nos governam e que trabalham pela destruição do Brasil tanto por vias oficiais quanto pelas oficiosas. Levantemo-nos em defesa desta Terra de Santa Cruz, desta Pátria-Mãe Gentil que ora se encontra tão terrivelmente ameaçada. Que a Virgem Aparecida salve o Brasil.

Sobre hereges, cismáticos, batismos e vínculos com a Igreja

Do Vaticano II:

“Pois [os] que crêem em Cristo e foram devidamente baptizados, estão numa certa comunhão, embora não perfeita, com a Igreja católica” (Unitatis Redintegratio, 3).

Do Ludwig Ott:

“Como el carácter bautismal, que obra la incorporación a la Iglesia, es indestructible, el bautizado, por más que cese de ser miembro de la Iglesia, no queda completamente fuera de ella de suerte que quede roto todo vínculo con la misma” (OTT, Ludwig; Manual de Teologia Dogmática, p. 467. Ed. Herder, Barcelona, 1966).

Qualquer semelhança não é mera coincidência. Fica – mais uma vez – a dúvida: se há o sentido ortodoxo, o que justifica interpretar o texto no sentido heterodoxo?

Sobre opiniões errôneas na interpretação dos decretos do Concílio Vaticano II [1966]

[Por incrível que pareça, foi publicada pela CNBB (in “Documenta: documentos da Congregacao para a Doutrina da Fe 1965-2010”, Brasília, Edições CNBB, 2011). Dir-se-ia de tal carta “profética”, se o mais provável não fosse que ela simplesmente apontava os problemas que já aconteciam em 1966 e que, desde então, generalizaram-se de uma maneira horripilante. Convém ser lida e relida, estudada e apresentada com vigor aos católicos dos dias de hoje! Rezemos pela Igreja.

Fonte: Cartas a Probo.]

CARTA SOBRE OPINIÕES ERRÔNEAS NA INTERPRETAÇÃO DOS DECRETOS DO CCONCÍLIO VATICANO II
Congregação para a Doutrina da Fé

Depois da promulgação do Concílio Ecumênico Vaticano II, concluído recentemente, sapientíssimos documentos, tanto sobre questões doutrinais, quanto disciplinares, para promover eficazmente a doutrina da Igreja, incumbem a todo o Povo de Deus a lutar com todo o empenho para que se realize tudo o que, com a inspiração do Espírito Santo, foi solenemente proposto ou decretado naquele sínodo de Bispos, presidido pelo Romano Pontífice.

À hierarquia compete o direito e o dever de vigiar, dirigir e promover o movimento de renovação que o Concílio começou, de modo que os documentos e decretos do referido Concílio recebam uma reta interpretação e sejam levados a efeito com exatidão segundo a força e o sentido dos mesmos. Portanto, esta doutrina deve ser defendida pelos Bispos, já que, como tais, gozam do poder de ensinar com autoridade, unidos à cabeça de Pedro. É digno de elogio que muitos Pastores do Concílio já tomaram a iniciativa de explicá-la convenientemente.

Sentimos, contudo, que de diversas partes chegam notícias de como não somente pululam os abusos na interpretação da doutrina do Concílio, como também de como aqui e ali surgem opiniões estranhas e audazes, que perturbam não pouco a alma de muitos fiéis. Devemos louvar os trabalhos ou intentos que buscam penetrar mais profundamente na verdade, distinguindo retamente entre aquilo em que se deve acreditar e o que é opinião; porém, pelos documentos examinados nesta Sagrada Congregação, consta que existem não poucas sentenças que, passando por alto facilmente os limites da simples opinião, parecem afetar o mesmo dogma e os fundamentos da fé.

Convém que expressemos, como exemplo, algumas das sentenças e erros, tal como são conhecidos através da relação de doutores e das publicações escritas.

1) Primeiramente, referimo-nos à Sagrada Revelação: há quem recorra à Sagrada Escritura, deixando de lado intencionalmente a Tradição, porém restringem o âmbito e a força da inspiração e da inerrância, já que pensam equivocadamente sobre o valor dos textos históricos.

2) No que se refere à doutrina da Fé, diz-se que as fórmulas dogmáticas devem ser submetidas à evolução histórica, de tal modo que o sentido objetivo das mesmas seja exposto a mudanças.

3) Esquece-se ou subestima-se o Magistério ordinário da Igreja, principalmente do Romano Pontífice, de tal maneira que se relega ao plano das coisas opináveis.

4) Alguns quase não reconhecem a verdade objetiva absoluta, firme e imutável, expondo tudo a um certo relativismo, alegando o falaz argumento de que qualquer verdade deve seguir necessariamente o ritmo da evolução da consciência e da história.

5) Ataca-se a admirável pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando, ao refletir sobre a Cristologia, utilizam-se tais conceitos de natureza e pessoa, que apenas podem se conciliar com as definições dogmáticas. Insinua-se certo humanismo pelo qual o Cristo é reduzido à condição de simples homem, que foi adquirindo pouco a pouco consciência de sua filiação divina, Sua concepção virginal, seus milagres e sua Ressurreição são concedidos de palavra, porém frequentemente reduzem-se à mera ordem natural.

6) Igualmente, ao tratar da teologia dos sacramentos, alguns elementos são ignorados ou não se lhes presta a suficiente atenção. Sobretudo no que se refere à Santíssima Eucaristia. Não falta quem discuta sobre a presença real de Cristo sob as espécies de pão e vinho, defendendo um exacerbado simbolismo, como se pão e vinho não se convertessem no Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo pela transubstanciação, mas que simplesmente fossem empregados com certa significação. Há quem insista mais no conceito de ágape, com relação à missa, do que no de Sacrifício.

7) Alguns desejam explicar o Sacramento da Penitência como um meio de reconciliação com a Igreja, sem explicar suficientemente a reconciliação com Deus ofendido. Pretendem que, ao celebrar este Sacramento, não seja necessária a confissão pessoal dos pecados, mas somente se preocupem em expressar a função social da reconciliação com a Igreja.

8) Não falta quem menospreze a doutrina do Concílio de Trento sobre o Pecado Original, ou quem a interprete obscurecendo a culpa original de Adão ou, ao menos, a transmissão do pecado.

9) Não são menores os erros que circulam no âmbito da teologia moral. Com efeito, não poucos se atrevem a refutar a razão objetiva da moralidade; outros não aceitam a lei natural e defendem, por outro lado, a legitimidade da chamada “moral de situação”. Propagam-se opiniões perniciosas sobre a moralidade e a responsabilidade em matéria sexual e matrimonial.

10) A todos estes temas, temos de acrescentar uma nota sobre o Ecumenismo. A Sé Apostólica, certamente, louva todos os que, no espírito do Decreto Conciliar sobre o ecumenismo, promovem iniciativas para fomentar a caridade com os irmãos separados e atraí-los à unidade da Igreja; porém lamenta que não falte quem, interpretando a seu modo o decreto Conciliar, exija uma ação ecumênica que vá contra a verdade, assim como contra a unidade da Fé e da Igreja, fomentando um perigoso irenismo e indiferentismo, que é totalmente alheio à mente do Concílio.

Espalhada esta classe de erros e perigos, apresentamo-los sumariamente, nesta Carta aos Ordinários do lugar, para que cada um, segundo seu cargo e ofício, cuide de refreá-los e preveni-los.

Este Sagrado Dicastério roga encarecidamente para que os Ordinários do lugar tratem disso nas reuniões de suas conferências episcopais e enviem relações à Santa Sé, aconselhando o que creem oportuno, antes da festa da Natividade de Nosso senhor Jesus Cristo do ano em curso.

Esta carta, que, por uma óbvia razão de prudência, nos impede de fazê-la de domínio público, deve ser guardada sob estrito segredo pelos Ordinários e por todos aqueles que com justa causa a ensinam.

Roma, 24 de julho de 1966.
A. Card. Ottaviani,
Pró-prefeito.

“Não, não és Franciscano” – Frei Ângelo Bernardo

[Publico, a seguir, a primeira parte de um artigo muito oportuno que me foi enviado por um frei amigo meu. Deveria ter sido publicado ontem – dia de São Francisco de Assis -, mas o corre-corre das atividades quotidianas mo impediram de fazer. Peço desculpas ao meu caro amigo religioso. Faço-o agora, com muita alegria! Importa defender a memória do grande santo de Assis, contra as suas deturpações que grassam tão impiedosamente nos dias de hoje. Em particular, na imagem disseminada pelo sr. Leonardo Boff, sobre quem trata o presente artigo. Que São Francisco de Assis interceda por nós! E nos conceda verdadeiros franciscanos.]

Não, não és franciscano!

frei Ângelo Bernardo, OMin.

Estas são considerações indignadas de um filho do poverello de Assis. Desde a leitura, releitura, apreciação da fala do “Doutor Leonardo Boff”, procurei ler suas obras com afinco, sobretudo a que o ‘condenou’: “Igreja: Carisma e Poder – Ensaios de Eclesiologia Militante”, editado pela Vozes em 1981, bem como outras obras há anos publicadas, como “Jesus Cristo Libertador”, tendo sua primeira edição em 1972 e outras mais recentes. Para não incorrer em erros e contradições, busquei entender o seu pensamento, o modo como, o a partir donde ele escrevia e escreve.

Desde a primeira vez que li a enfadonha entrevista do “Doutor” à revista IstoÉ, em 28 de Maio passado, fiquei espantado com tanta arrogância da parte de quem já foi um dia, um filho de São Francisco. São falas de alguém que, certamente, “já não tem mais nada a perder” e, por isso mesmo, atira qual guerrilheiro para todos os lados, sobretudo, para o coração daquela que lhe acolheu um dia: a Igreja. Manifestamente, ressalta inúmeras vezes, ao longo dos anos e da entrevista, sua ojeriza ao sucessor de Pedro, ao Vigário de Cristo, o Papa Bento XVI.  É claro que todos têm consciência de que quando ele o ataca, o faz não pela investidura papal, mas pelo cardeal que o silenciou, anos atrás, Joseph Ratzinger.

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Comentários sobre a revolução paterna

Gostaria de tecer agora os comentários sobre o Pai-Nosso Revolucionário que não expus anteontem. Não há necessidade, creio eu, de se ser muito sistemático e analisar em pormenores cada um dos versos e estrofes da tal canção. A mensagem anti-católica fala por si só, e às escâncaras, não havendo muito o que esmiuçar.

Indo direto ao ponto: quem escreveu aquela música não tem Fé. Isto não é um juízo temerário, porque é a análise justa e honesta da “poesia” apresentada. O “pai” apresentado na música não é de todos, mas só dos “torturados” [pelo Regime Militar, quiçá], “marginalizados”, etc. A vontade do “deus” lá da música é que não sejam seguidas as “doutrinas corrompidas pelo poder opressor” [no caso, a Doutrina da Igreja Católica]. O que se pede a este “deus” não é a conversão do pecador, mas a destruição dos “reinos em que a corrupção é a lei do mais forte” (seja lá o que signifique esta frase). Este “pai” apresentado pela oração não é o conservador das coisas que criou – ao contrário, é “revolucionário”.

Não é preciso gastar cinco minutos de raciocínio para chegar à conclusão de que este “pai revolucionário” não é o Deus criador dos Céus e da Terra em Quem professamos a nossa Fé todos os dias. Portanto, este “deus dos oprimidos” não é o Deus da Fé Católica e, portanto, quem professa fé neste “deus” não pode, ao mesmo tempo, ter Fé no Deus Único.

Argumente-se contra isso que o sujeito pode, de boa fé, escrever e cantar este tipo de lixo. Concedo: o sujeito pode, sim, perfeitamente, ser um ignorante religioso a ponto de não saber mensurar o grau de heresia das coisas que escreve e canta. No entanto, se ele não sabe a Fé que tem, então ele não tem Fé, porque Fé é saber. Ao afirmar isso, está-se apenas fazendo uma constatação factual, sem nenhum juízo sobre o grau de culpabilidade do indivíduo que produz, canta e divulga este tipo de música. “Ah, ele pode ser um ignorante” – sim, pode. Mas isso não torna a sua música menos herética, e nem o autoriza a sair por aí apresentando um “pai revolucionário” como se o Deus Católico fosse.

Argumente-se ainda contra isso que a música apresenta, em suas partes e desconsiderados os significados mais comuns dos seus termos, muitas coisas que são aproveitáveis. Concedo, também; contra isso, no entanto, faço notar que (i) desconsiderar o sentido mais comum dos termos e o “contexto” da música para analisá-la “em si”, concedendo o máximo possível o beneplácito da boa interpretação, é falsear a obra artística, posto que a interpretação resultante deste procedimento pode ser (e, aliás, será quase sempre) completamente irreal; e (ii) qualquer coisa tem pontos aproveitáveis, pois o mal absoluto não existe. Certamente há muitas coisas boas e certas em todos os erros e heresias do mundo, e nem por isso o conjunto passa a ser aceitável por meio do aproveitamento das coisas certas e pela “ressignificação” das erradas. A heresia é condenável, mesmo que possua (como sempre possui) pontos positivos; este “pai-nosso revolucionário” é sim condenável, ainda que se possa encontrar nele algo de bom ou conceder uma interpretação ortodoxa às suas partes mais escandalosas.

Afinal de contas, provavelmente não existe ninguém no Inferno (à exceção talvez dos anjos) que nunca tenha feito, em sua vida, nada que aproveitasse. Do mesmo modo, certamente não existe ninguém no Céu – à exceção da Bem-Aventurada Virgem Santíssima [p.s.: e outras exceções] – que não tenha feito nada de condenável enquanto esteve na terra. Aplicar uma “tesoura” à revolução paterna do “deus” da TL para tentar salvá-lo é não ter respeito à Verdade (uma vez que ou se vai pôr em risco a Fé dos incautos aceitando tudo, ou se vai falsificar a realidade dando aos termos empregados pelos hereges um sentido distinto do que eles claramente possuem) e nem senso de realidade (por achar que semelhante idéia pode dar certo…).

O bordão e o báculo – Bento XVI

No entanto, falando do vale escuro, podemos pensar também nos vales escuros das tentações, do desalento, da provação, que toda pessoa humana deve atravessar. Também nestes vales tenebrosos da vida Ele está ali. Senhor, nas trevas da tentação, nas horas das trevas, em que todas as luzes parecem apagar-se, mostra-me que tu estás ali. Ajuda-nos a nós, sacerdotes, para que possamos estar junto às pessoas que, nessas noite escuras, nos foram confiadas, para que possamos mostrar-lhes tua luz.

“Vosso bordão e vosso báculo são o meu amparo”: o pastor necessita do bordão contra os animais selvagens que querem atacar o rebanho; contra os salteadores que buscam sua vítima. Junto ao bordão está o báculo, que sustenta e ajuda a atravessar os lugares difíceis. Esses dois elementos entram dentro do mistério da Igreja, do mistério do sacerdote. Também a Igreja deve usar o bordão do pastor, o bordão com o qual protege a fé dos farsantes, contra as orientações que são, na realidade, desorientações. Com efeito, o uso do bordão pode ser um serviço de amor. Hoje vemos que não se trata de amor, quando se toleram comportamento indignos da vida sacerdotal. Como tampouco trata-se de amor se deixa-se proliferar a heresia, a tergiversação e a destruição da fé, como se nós inventássemos a fé autonomamente. Como se já não fosse um dom de Deus, a pérola preciosa que não deixamos que nos arranquem. Ao mesmo tempo, no entanto, o bordão continuamente deve transformar-se em báculo do pastor, báculo que ajude aos homens a poder caminhar por caminhos difíceis e seguir a Cristo.

Bento XVI
Homilia no encerramento do Ano Sacerdotal

A tortura na Inquisição – João Bernardino Gonzaga

Conforme atestam inúmeros documentos, a antiga Igreja sempre foi radicalmente hostil à utilização de violências nas investigações criminais. Muito citada é a carta que o papa Nicolau I escreveu, no ano 866, a Bóris, príncipe da Bulgária: “Eu sei que, após haver capturado um ladrão, vós o exasperais com torturas, até que ele confesse, mas nenhuma lei divina ou humana poderia permiti-lo. A confissão deve ser espontânea, não arrancada”; e advertiu: “Se o paciente se confessa culpado sem o ser, sobre quem recairá o pecado?”

No século XIII, porém, em meio ao calor da luta contra heresias fortemente daninhas, que cumpria combater com rigor, ingressou a tortura nos domínios da Justiça religiosa. Autorizou-a o papa Inocêncio IV, em 1252, através da bula Ad extirpanda. Esse recurso já se tornara usual no Direito comum, de sorte que, observou-se, seria injustificável conceder tratamento privilegiado aos hereges. Se, ponderou o Papa, tal medida se aplica aos ladrões e aos assassinos, o mesmo deverá ocorrer com os hereges, que não passam de ladrões e assassinos da alma. Igual permissão foi dada por outros atos pontifícios posteriores, notadamente de Alexandre IV, em 1259, e de Clemente IV, em 1265.

Daí por diante, o Direito Canônico acolheu pois a tortura, mas algumas cautelas foram prescritas: ela não deveria pôr em perigo a vida e a integridade física do paciente; vedade era a efusão de sangue; um médico devia estar presente; somente podia ser aplicada uma vez, jamais reiterada; a confissão por meio dela obtida apenas valeria se depois livremente confirmada. Condições muito mais suaves, portanto, do que as vigorantes na Justiça secular. O sofrimento assim produzido devia ser facilmente suportável por pessoas normais; mas seguramente terá havido excessos, por parte de juízes zelosos demais.

O fato da aceitação da tortura é inegavelmente desconcertante, embora seja forçoso reconhecer que a atitude da Igreja possui fortes circunstâncias atenuantes.

Durante muitos séculos, após a queda do Império Romano, o Direito laico desconheceu os suplícios como instituição oficial, o que não significa sinal de brandura. Ninguém negará que as práticas punitivas dos povos chamados “bárbaros” fossem violentas, e outro tanto terá ocorrido no regime feudal onde, excetuadas as castas superiores, o homem comum ficava inteiramente entregue aos caprichos do seu senhor, sem forma nem figura de Juízo. Dentro desse antigo Direito, tosco e empírico, apenas inexistia a tortura institucionalizada, mas os métodos repressivos eram brutais.

A partir do século XII, no entanto, quando os Estados se foram organizando melhor e adotaram o sistema processual inquisitivo, em que avultava a importância da confissão do réu, já sabemos que os tormentos entraram plenamente nas lides judiciárias seculares. Por influência do Direito romano, eles se tornaram um expediente normal, banal, previsto e disciplinado nas leis. Conforme expusemos no Capítulo I, a tortura passou a ser encarada com absoluta naturalidade, como algo indispensável à boa ministração da Justiça e à tutela do bem comum. Ninguém a impugnava, os mais prestigiosos jurisconsultos a defendiam e a recomendavam. Os juízes, as classes cultas, o inteiro povo a aceitava pacificamente, como legítima, e ela era ademais compatível com a severidade das penas e com as rudes condições de vida então existentes.

Diante desse panorama e preocupada com o alastramento de heresias, a Igreja se deixou influenciar. Enquanto sociedade de homens, ela fica sujeita aos costumes vigentes, naquilo que não contrariem as verdades essenciais da doutrina cristã (2). Afinal, seus membros estão imersos no mundo em que vivem e forçosamente adotam seus sentimentos e seus hábitos. A par disso, o problema com que se defrontava a Igreja tornou-se muito sério: por mandato divino, cabia-lhe o dever de lutar pela salvação eterna do seu rebanho, defendendo-o contra erros que, apesar de perniciosos, eram, por vezes, muito atraentes. Animava-a a absoluta fé nessa missão. Heresias tenazes entretanto se infiltravam sorrateiramente, minando a autoridade eclesial e dissolvendo a unidade religiosa do povo. Como advertira Santo Tomás de Aquino, os hereges são como os delinqüentes que passam moeda falsa.

O herege procura ser sempre astuto, não revela o seu desvio, e este se torna geralmente difícil de descobrir, porque escondido no íntimo da pessoa. Imperioso era pois a Justiça obter a confissão. Difícil se torna para nós hoje decidir retroativamente, dentro da formação mental daquela época, como caberia ao dever de caridade resolver este dilema: deixar o herege impune, para que continuasse a disseminar o mal, e, com essa omissão, arriscar-se a perder incontáveis cristãos; ou extorquir-lhe pela força o reconhecimento do seu crime, a fim de tentar corrigi-lo, e, se isso não fosse possível, eliminá-lo para o bem do povo.

Não nos olvidemos outrossim que no Direito Processual comum da época vigorava o princípio da presunção de culpa (Cap. III, nº 3): o réu, só pelo fato de ser réu, era tido como culpado, enquanto não sobreviesse uma eventual decisão absolutória. Os tribunais eclesiásticos, portanto, seguindo a mesma regra, ao lidarem com algum acusado de heresia partiam do pressuposto de ser verdadeira essa imputação. Logo, ficava mais fácil admitir que esse homem podia ser levado à tortura, visando a confissão, mesmo porque o sofrimento assim infligido era insignificante diante da brutal pena que seria depois imposta pelas autoridades civis, a de morte na fogueira.

[…]

Aqui está, pois, o ambiente jurídico em que nasceu e atuou a Inquisição: religião oficial, apoiada pelo Estado; conseqüentemente, existência, no Direito Penal comum, de crimes consistentes em ofensas à religião ou à Igreja; competência concorrente, dos tribunais seculares e dos eclesiásticos, para perseguirem os autores de tais crimes; métodos processuais e penais rigorosíssimos.

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(2) É o que sucedeu também com a escravatura, que existiu sempre, desde os mais remotos tempos, só vindo a desaparecer recentemente, quase em nossos dias. Sendo uma instituição tradicional, comum, que se reputava indispensável, a Igreja a tolerou. De São Paulo, por exemplo, cfr. Ef 6, 6-9; Col 3, 22-25; Flm. Os apóstolos mais se importaram com a servidão espiritual ou moral do que com a física. Cabe porém dizer que o cristianismo estabeleceu princípios que fatalmente eliminariam a escravidão.

João Bernardino Gonzaga,
“A Inquisição em seu mundo”
pp. 87-91
Ed. Saraiva – 4ª Edição, 1993