Notre-Dame caiu e está de pé

O mundo inteiro voltou seus olhos para a França esta semana. Uma catedral pegou fogo! Toda a preocupação humanista que se viu na mídia secular não é capaz de atingir a dimensão deste incidente; é preciso olhá-lo com os olhos da Fé. Porque uma catedral não é um monumento histórico: é um símbolo sagrado, é uma síntese da humanidade, é algo tão caro ao mundo que conhecemos que se pode até mesmo dizer — como ouvimos nos últimos dias — que uma catedral é um arquétipo da própria civilização.

Na segunda-feira santa, à tarde, caíram-me como uma bomba as notícias sobre o incêndio de Notre-Dame. Nas imagens que me chegavam pela internet eu não via apenas um prédio antigo que queimava: era toda a civilização em chamas, abandonada ao descaso, caindo aos pedaços, desmoronando sob os nossos olhares impotentes. O primeiro sentimento, quase imediato, quase instintivo, foi, assim, o de tristeza. Por tudo o que perdemos, pela tragédia que se abateu sobre nós.

À tristeza seguiu-se — confesso-o embaraçado — o desespero. Primeiro porque parecia que tudo iria cair, que o fogo iria destruir tudo, que a incompetência e a impiedade dos homens iriam colocar tudo a perder. O tempo passava e a catedral queimava e parecia que não iria restar pedra sobre pedra; quando a flecha da torre desmoronou — e nós o vimos quase ao vivo pela internet –, parecia que, com ela, todo o edifício viria abaixo.

Foto: Geoffroy Van Der Hasselt / AFP / CP

E, depois, havia o sentido simbólico por trás de tudo, maior, muito maior do que o telhado centenário que ruía: era a própria Fé Católica que se consumia e virava cinzas no coração da Filha Primogênita da Igreja. Era como se os Céus nos estivessem mandando um recado, e a destruição de Notre-Dame fosse uma terrível e providencial metáfora da destruição do Catolicismo no mundo.

Até porque Notre-Dame era, desde há muito, uma sobrevivente. Olhávamos para aquele edifício, ainda que não o soubéssemos verbalizar, com um misto de reverência e admiração: no contraste entre a Paris medieval e a França moderna, qualquer um podia perceber que aquele mundo não mais existia. Notre-Dame estava lá, encrustada no meio da cidade, no coração da Île-de-France, inundada de turistas, como uma testemunha silenciosa de um tempo áureo há muito perdido nas brumas da História. Por aqui passou uma raça de homens superiores, a velha catedral nos dizia, e os seus arcos e ogivas vertiginosos se impunham ao homem moderno como vestígios de um tempo de glória. E quando os católicos já há muito se haviam calado, aquelas pedras medievais permaneciam ecoando ao mundo as glórias do Deus Altíssimo.

Como não enxergar na queda da catedral a mais perfeita e lógica decorrência natural do abandono da Fé nas almas?

E, no entanto, a vigília espiritual em que imediatamente nos pusemos fez aquele desespero arrefecer. O passar das horas nos deu notícia de que nem tudo caiu na Sé de Paris; poder-se-ia até mesmo dizer que caiu muito pouco, somente o telhado, apenas o pináculo. O espetáculo era terrível para quem via de fora; por dentro, no entanto, a Catedral sobrevivia.

Toda a estrutura da Igreja resistiu ao fogo, assim como o altar-mor, com a Pietà ladeada por dois reis de França, Luís XIII e Luís XIV. Foi preservada também a maior parte dos vitrais, estátuas, púlpitos, mesmo os bancos. O órgão não foi destruído. A majestosa rosácea — cujos vidros coloridos, segundo se ouviu dizer, foram fabricados pelos antigos alquimistas — também continua lá. Por fora, a destruição parecia total. Mas apenas por fora. Apenas parecia.

Foto: Fr. Z’s Blog

E tudo isso, apesar de toda a dor, de toda a tragédia, nos encheu de esperança. O incêndio nos revelou algo de mais profundo sobre a nossa história, sobre as nossas raízes: é que nós tendemos a aquilatar as coisas pela estatura do nosso tempo. Aquele fogo que nós vimos segunda-feira teria reduzido a pó qualquer coisa construída nas últimas décadas; mas ele não pôde ombrear-se ao gênio da antiga Cristandade. Pensávamos que Notre-Dame fosse tão frágil quanto um Shopping Center; contudo, a velha catedral se mostrou tão inquebrantável quanto a Fé dos que a construíram. Vimos o fogo, e Notre-Dame havia caído; entramos por seus pórticos, e Notre-Dame estava de pé.

E, assim, aquele simbolismo funesto que entrevíamos à primeira vista se inverte por completo, dando lugar a um alento de esperança: no interior do templo sagrado, no coração da catedral, a Cruz permanece de pé, refulgente, mesmo em meio ao fogo e à destruição. A Fé Católica fincada um dia no coração da França é firme, é forte, como as paredes juncadas de gárgulas que resistem a incêndios: afinal de contas, não vimos os franceses, muitos deles jovens!, cantando e rezando de joelhos diante do incêndio? Essa manifestação espontânea de Fé, em meio à impiedade generalizada das nossas metrópoles, não é um milagre tão portentoso quanto os vitrais de Notre-Dame resistindo ao fogo?

As catedrais legadas por nossos antepassados são mais fortes do que acreditamos. E mais forte, muito mais sólida do que as paredes de pedra, é a Fé Católica pela qual os mártires verteram o seu sangue e de cuja vivacidade os santos deram testemunho com a própria vida. O que recebemos do passado é mais duradouro do que aquilo que encontramos no presente. Notre-Dame resistiu ao fogo no centro da França; como seria possível que a Fé Católica não sobrevivesse aos assaltos do mundo no coração dos franceses? Não é a Fé da Igreja muito mais indestrutível do que as antigas catedrais? Se estas resistem aos séculos, como poderia aquela vir a perecer?

Obrigado, Notre-Dame! A Semana Santa iniciou com a catedral em chamas. Que saibamos discernir os sinais dos céus. Que possamos nos arrepender e fazer penitência por nossos pecados; que possamos seguir os passos de Nosso Senhor. Com os olhos fitos na Ressurreição d’Aquele que venceu o mundo. Com a certeza de que as portas do Inferno não prevalecerão jamais contra a Igreja.

A escravidão e o drama da história da humanidade

Ao contrário do que possa parecer à nossa experiência de mundo mais imediata, a escravidão não é uma questão racial. Na verdade, ela não tem nada a ver com raça, e é apenas o nosso provincialismo histórico que nos faz pensar diferente disso. Se é verdade que aqui na América os negros foram escravizados, não é menos verdade que soubemos nos utilizar, também e sem nenhum preconceito, de mão-de-obra escrava indígena. Ao mesmo tempo, os índios do Novo Mundo escravizavam outros índios e as tribos negras africanas escravizavam outros negros (e os vendiam aos brancos traficantes de escravos – isso quando não escravizavam brancos também). Antes disso, na Europa medieval, os mouros escravizavam os cristãos e, estes últimos, os mouros. Ainda antes, os judeus foram escravizados no Egito dos Faraós. E para não parecer que os caucasianos formam a única odiosa raça que neste jogo de forças sempre esteve em confortáveis posições senhoriais, lembro que nem mesmo os povos da Escandinávia, com seus cabelos loiros e belos olhos azuis, foram poupados dos trabalhos escravos que os Vikings lhes impuseram.

No meu texto de ontem eu abri um parêntese para dizer que o próprio instituto da escravidão, analisado sem anacronismos, significou um importante avanço no reconhecimento da dignidade humana. Isto porque, durante muito tempo, a (única) opção à escravidão era a morte pura e simples. Para que se entenda isso é preciso abrir mão da mentalidade escravocrata que nos foi legada pelos versos de Castro Alves; no geral, reduzia-se alguém à condição de escravo não como o caçador que vai à selva capturar um animal para, domesticando-o, colocá-lo a seu serviço, mas sim como uma punição imposta a um outro ser humano – justa ou injustamente – por conta de algo que ele havia feito.

Assim, por exemplo, na Roma Antiga havia a escravidão por dívidas: se alguém não fosse capaz de saldá-las, deveria tornar-se escravo dos seus credores como pagamento pelos débitos contraídos. No Antigo Testamento, todas as vezes em que o Senhor autoriza Israel a escravizar alguém, trata-se sempre de prisioneiros de guerra ou povos conquistados. Esta última modalidade de escravidão, aliás, foi praticamente uma constante na história da humanidade, sendo praticada pela virtual totalidade dos povos e culturas. Se hoje a prática nos parece – graças a Deus! – bárbara e incompreensível, é geralmente porque nos falta horizonte histórico para contemplá-la como se exige a quem pretenda colocar a compreensão do comportamento humano acima do julgamento sumário dele.

Parece-me que está bem definida a escravidão se, pelo termo, entendemos a coação da liberdade de um homem ao serviço de um terceiro. Se esta coação se dá por meio de força física ou de ameaça, se ela é temporária ou permanente, se ela decorre de punição legal ou de capricho, tudo isso me parece fugir ao essencial. Grosso modo, um escravo é isto: é um ser humano que eu constranjo a meu serviço. Cabe perguntar por qual motivo alguém poderia, em consciência, impôr semelhante fardo a um seu semelhante. Ou ainda, se existe – mesmo em abstrato – uma razão que possa, ainda que remotamente, justificar tão cruel e repugnante imposição.

Resistamos à tentação de abordar o problema unicamente sob a ótica do Condoreirismo! Porque aqui, de fato, não cabe discussão alguma. Se à pergunta sobre “quem são estes desgraçados / que não encontram em vós / mais que o rir calmo da turba / que excita a fúria do algoz” a gente responde com a grandiloqüência da Musa que Castro Alves chama a depôr n’O Navio Negreiro, então realmente não há nada que se possa fazer aqui a não ser condenar, em absoluto e com a mais apaixonada veemência, este tratamento vil e desprezível ao qual foram desgraçada e incompreensivelmente constrangidas multidões de seres humanos ao longo da história humana. Se os fatos são aqueles colocados no Canto V da obra-prima do poeta, então não há desculpas possíveis. Se os escravos viviam “ontem, plena liberdade, / a vontade por poder” e “hoje, cum’lo de maldade, / nem são livres pra morrer”, então é impossível perdoar os crimes dos que escravizaram e dos que permitiram a escravidão.

Mas as coisas não eram rigorosamente assim na época do Brasil Império e nem muito menos ao longo da história da humanidade. Ir à caça de seres humanos inocentes, livres e soberanos para reduzi-los à escravidão é sem dúvidas uma coisa abominável. Acontece que quando os israelitas venciam Amalec no deserto e só o que podiam fazer era largar os derrotados ao frio, à fome e às feras, passá-los a fio de espada afigurava-se como uma obra de misericórdia. Acontece que quando os ibéricos retomavam as terras dos seus antepassados e se viam diante daqueles que por séculos os haviam saqueado, matado seus filhos e estuprado as suas mulheres, resistir à tentação de massacrá-los era magnânima benevolência e conservar-lhes a vida enquanto escravos era o supra-sumo da caridade.

Historicamente, a escravidão não se define por caçar seres humanos inocentes para transformá-los em alimária particular. No geral, como foi dito, tratava-se de uma punição de guerra ou por supostos crimes cometidos, sobre a qual devemos ser um pouco reticentes em emitir julgamentos peremptórios. É degradante? Sem dúvidas; mas não existe nenhuma pena humana que não degrade em alguma medida o ser humano. Tenho certeza de que, daqui a alguns séculos, leremos “Estação Carandiru” e nos perguntaremos como foi possível que a sociedade tivesse permanecido inerte diante da infâmia do sistema prisional brasileiro do século XX. E tomara que não sejamos então vítimas da mesma incompreensão que, hoje, temos o mau hábito de devotar aos nossos antepassados.

E quanto ao Cristianismo? Ele foi fundamental para que chegássemos ao elevado patamar moral contemporâneo de cuja altura, hoje, os anti-clericais sentem-se no direito de escarnecer da Igreja. A doutrina da igualdade essencial entre os homens – com São Paulo afirmando taxativamente que «[j]á não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gl 3, 28) – é a verdadeira revolução na história do pensamento humano e na obrigação moral que os homens agora passam a ter para com os seus semelhantes. É somente a partir daqui que podemos falar propriamente em dignidade humana – naquela que não conhece sexo, raça ou condição social, mas que compete a todos os homens e a cada um deles em particular.

Autorizou-se ainda assim a escravidão? É porque, em si, esta punição privativa de liberdade, nos moldes em que passou a ser entendida, não é intrinsecamente má. Após o surgimento da Igreja, ela não mais significava uma diminuição ontológica do ser humano tornado escravo, uma sua coisificação; mas, ao contrário, era uma forma (ainda) socialmente aceita de fazer um indivíduo pagar pelas próprias dívidas ou pelas de outrem (v.g. dos seus pais ou do seu povo). Com o Cristianismo, mesmo os escravos são seres humanos que como tais devem ser tratados, e esta é a novidade radical do Evangelho em relação à escravidão pagã. Se o Paterfamilias romano tinha vitae necisque potestas – poder de vida e de morte – sobre seus escravos, seus filhos e até sua esposa, o mesmo não se pode jamais dizer do cristão sobre sua esposa, seus filhos ou mesmo seus escravos. Se isso nos parece pouco, tal é um tributo que pagamos ao nosso tempo – pelo qual devemos ser gratos e para cuja existência ser possível foi necessário que os influxos benéficos do Cristianismo o engendrassem (por vezes silenciosamente…) nas almas por séculos a fio.

É claro que se pode dizer que a escravidão é um castigo desproporcional, que não está em conformidade com a dignidade humana, que é indigno de povos civilizados, e eu serei o primeiro a concordar: tudo isso deve ser dito! A questão não é contudo sobre idealismos abstratos, e sim sobre o drama da história da humanidade. Transformar a ação dos cristãos ao longo dos séculos num lacônico “apoio à escravidão” é uma inverdade histórica e uma injustiça. A mensagem cristã ressignificou a forma como os homens viam seus escravos, impôs-lhes exigências até então inconcebíveis para com eles, reduziu drasticamente a abrangência da escravidão e, por fim, aboliu-a por completo! Sentar-se diante de um computador no século XXI e reclamar que isso demorou demasiado para ser feito é padecer de graves preconceitos anacrônicos, que em nada nos tornam melhores do que os que nos precederam.

Pedido pela beatificação da Princesa Isabel

Eu vou remeter a dois textos d’O Possível e o Extraordinário: “Quem foi a Princesa Isabel?” e “Prólogo da Beatificação da Princesa Isabel”. Destaco apenas a seguinte frase (do primeiro texto): «A Princesa Isabel herdou da mãe dela o catolicismo ultramontano e era devota de Santa Isabel da Hungria e Santa Isabel de Portugal!»

Era católica devota: eis a importante característica da personalidade da princesa Isabel que, não obstante, é-nos sistematicamente ocultada nas aulas de História do Ensino Médio. Sobre a importância deste fato nos fala o Cônego Manfredo Leite (apud segundo texto acima citado): «é mister reconhecer que o manancial onde se lustrou toda essa perfeição moral de d. Isabel, e onde ela hauriu essas energias para as fecundidades da sua bondade e da sua generosidade, foi incontestavelmente a pureza dos princípios cristãos, aos quais tanto se afeiçoou e com os quais se identificou sua larga existência».

Afinal de contas, é somente com o Cristianismo que se coloca a igualdade fundamental entre os homens, uma vez que «já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gl 3, 28). E, portanto, se por um lado o Apóstolo manda que os servos obedeçam aos seus senhores (cf. Cl 3, 22), por outro lado escreve “de próprio punho” a um senhor para pedir a liberdade de um escravo (cf. Fl 19). Na verdade, é com o florescimento do Cristianismo que se extingue a escravidão tão largamente difundida durante a Antiguidade. Apenas mil anos depois, com o Renascimento, é que esta prática voltará a ser praticada.

Nada mais natural, portanto, que a Princesa que aboliu a escravidão no Brasil fosse filha da Igreja – da mesma Igreja que, p.ex., durante a Idade Média criou a Ordem de Nossa Senhora das Mercês para libertar os cristãos cativos que caíam sob o jugo dos sarracenos. Nada mais natural, portanto, que o Papa Leão XIII tenha enviado em 1888 uma rosa de ouro para a Princesa Isabel pela promulgação da Lei Áurea. Nada mais natural que fosse o Cristianismo a força motriz por trás da abolição da escravatura no Brasil.

O pedido é pela beatificação de Dona Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon, a Isabel do Brasil, nossa Princesa Isabel. Foi entregue a Dom Orani Tempesta, Arcebispo do Rio de Janeiro, com a seguinte súplica: «solicitamos a Vossa Reverendíssima, a nomeação de um prelado da vossa Arquidiocese para ser o postulador desta causa, que certamente permitirá aos brasileiros conhecerem melhor e a amar mais aquela que muito fez pelo bem do nosso País. Não temos dúvida, de que o acesso aos documentos, às fontes históricas, revelarão uma vida edificante que muito motivará aos brasileiros e de modo especial aos fiéis católicos, a perseverarem na esperança de seguir o caminho de verdade e vida proposto por Nosso Senhor Jesus Cristo, via certa da salvação. E que a Virgem Maria Santíssima, Mãe de Deus e Rainha do Céu, interceda por esta causa, para o bem de todos» – Amen! Que a Virgem Imaculada, padroeira do Brasil, interceda por esta nobre causa. E, se for para a maior glória de Deus, que a última princesa imperial desta Terra de Santa Cruz possa ser honrada nesta pátria com a glória dos altares.

Foi a Igreja quem inventou a saúde pública!

O Sakamoto (sim, ele de novo!) critica a posição católica sobre os preservativos e propõe ironicamente entregar a saúde pública à Igreja. É uma piada. Esta bravata pueril é apenas mais um sintoma da miséria intelectual na qual se encontra o anti-clericalismo moderno: sim, Sakamoto, foi a Igreja quem inventou a saúde pública, ora bolas!

Bastaria ler (p.ex.) o Thomas Woods Jr. para aprender «[c]omo a Igreja criou praticamente todas as instituições de assistência que conhecemos, dos hospitais à previdência» [a propósito, também valeria a pena mencionar a Régine Pernoud, sobre o ensino medieval]. Mas não seria necessário tanto.

Bastaria saber o que é uma Santa Casa de Misericórdia. Bastaria, aliás, saber que Nosso Senhor mandou “curar os doentes” (cf. Mt 10, 8) e que, desde então, o cuidado dos enfermos sempre esteve entre as obras de misericórdia corporal.

Bastaria procurar o verbete “Hospital” na Wikipedia para saber que, após o Concílio de Nicéia, começaram a ser construídos hospitais em todas as dioceses católicas em profusão jamais vista (aliás, convém lembrar que “Hospital”, na França, se diz “Hôtel-Dieu”). E ainda (na mesma Wikipedia) que «[h]istoricamente, os hospitais foram fundados e financiados por ordens religiosas ou indivíduos e líderes caridosos» [cf. também “O hospital medieval como expressão institucional da caridade cristã”].

Bastaria saber quem são os alexianos, ou São Camilo de Lelis, ou Madre Teresa de Calcutá. Bastaria ter lido o Luis María Anson, miembro de la Real Academia Española (em português aqui), falando (há dois anos) precisamente sobre a Igreja e a AIDS. Bastaria saber que existe no Vaticano um Pontifício Conselho para a Pastoral no Campo da Saúde e que, em 2006, pertenciam «à Igreja Católica 26,7% dos centros no mundo para tratar os enfermos de Hiv/Sida». E que, de acordo com os dados de maio deste ano, há 117.000 centros da Igreja servindo os doentes de AIDS em todo o mundo.

Enfim, bastaria usar quinze minutos de Google. Bastaria ser menos ignorante e menos preconceituoso! Mas parece que isso é exigir muito de alguns “livres-pensadores” que, na sua patética cruzada anti-religiosa, não conseguem se desvencilhar das trevas de 1789.

Os resquícios da civilização

Diz-se que o homem é criado à imagem e semelhança de Deus porque é “capaz de conhecer e de amar a Deus, e de gozá-Lo eternamente”; assim nos ensina o Catecismo Maior de São Pio X (Parte I, q. 55). É este – e não outro – o fundamento da dignidade humana, aquilo que faz com que o homem seja detentor de direitos objetivos e lhe salvaguarda das arbitrariedades que alguns indivíduos ou grupos, detentores de força ou de poder, porventura queiram lhe infligir.

Houve um tempo – como nos ensina o Sumo Pontífice Leão XIII – em que a Filosofia do Evangelho governava as nações. E por mais que alguns anti-clericais modernos tenham alguma espécie de prazer sórdido (e ignorante) em lançar lama a esta época gloriosa da civilização humana, o fato é que os homens de então eram tratados com muito mais dignidade do que os de outras épocas da história.

“Ah, foram queimados pela Igreja, foram torturados, fizeram guerras sangrentas, foram impedidos de manifestar livremente os seus pensamentos!”, hão de dizer os livres-pensadores modernos. Mas o fato – que os inimigos da Igreja se esquecem de mencionar – é que os homens foram queimados muito mais vezes fora da Igreja do que nas fogueiras às quais a Santa Inquisição ateou fogo. O fato – relevantíssimo, mas sobre o qual não se fala uma palavra – é que os homens foram torturados mais e de maneira mais cruel por civis do que por religiosos. O fato é que nunca houve guerras tão terríveis quanto as que o mundo assistiu no século passado – em pleno século XX, quando já se encontrava indubitavelmente livre da influência da Igreja (e, diremos  até, justamente por causa disso).

“Mas… mas… mas foram impedidos da livre-expressão de suas idéias, e isto não se pode negar!”, dir-nos-ão desesperados os nossos amigos anti-clericais. E, nisto (descontadas, é óbvio, as falsificações grosseiras), nós deles não discordaremos. Graças a Deus, houve repressão à veiculação de idéias errôneas e perniciosas ao longo da história, e este mecanismo foi fundamental para que a civilização pudesse ser mantida e nós, hoje, fôssemos capazes de discutir a repressão de idéias praticada em épocas passadas.

Isto porque a liberdade é algo que não se pode atribuir às coisas de um modo absoluto. A excessiva e imoral (assim intitulada) “liberdade de expressão” vigente nos dias de hoje jamais seria permitida em outras épocas – nisto, concordamos integralmente com os inimigos da Igreja! Com o que não concordamos é que tal fato demonstre uma superioridade moral do nosso século sobre aqueles que o precederam – aliás, muito pelo contrário.

Como dizíamos acima, o ser humano é detentor de uma dignidade intrínseca que faz com que seja preciso respeitá-lo. Assim, a mera possibilidade de que alguém possa dispôr livremente da vida de outrem – matando-o ou escravizando-o, por exemplo – provoca-nos (ainda…) um sentimento de injustiça; no entanto, aquilo que os revolucionários não percebem é que este “sentimento de injustiça” está alicerçado sobre a dignidade humana, sobre o fato do homem ter sido criado por Deus à Sua imagem e semelhança e, portanto, possuir – intrinsecamente – um quê de sagrado e de inviolável. E permitir que esta verdade fundamental seja questionada ou – pior ainda – negada abertamente não é sinal de avanço, e sim de terrível retrocesso. Não é característica de pessoas civilizadas, e sim de bárbaras.

Não é verdade que nós, hoje, conhecemos o valor do ser humano porque nos livramos do obscurantismo católico medieval, é exatamente o contrário: é devido aos resquícios daquele glorioso tempo – repitamos – no qual a Filosofia do Evangelho guiava as nações que, hoje, nós (ainda) não caímos na barbárie completa e ainda não nos esquecemos (muito) que o ser humano possui uma dignidade intrínseca e que, portanto, deve ser protegido de arbitrariedades de outrem. Por qual outro motivo, afinal de contas, deveríamos falar em “direitos humanos”?

No entanto, na contramão de tudo isto, a brilhante “solução” dada por alguns dos nossos ilustres pensadores para proteger os seres humanos da opressão dos seus semelhantes é postular uma “moral” positivista baseada não em nada objetivo, mas nas “conveniências” e nas “convenções sociais”. Assim, matar pessoas passa a ser errado (ou, melhor dizendo, “ilegal”) não porque as pessoas possuam intrinsecamente um direito inviolável à vida, mas porque “convencionou-se” que é “útil” para a sociedade como um todo que os seus cidadãos não se exterminem mutuamente. O problema, o grande e enorme problema com esta idéia estúpida é que a solução apresentada para proteger as pessoas das arbitrariedades… é ela própria uma arbitrariedade – uma vez que, eliminada a dignidade humana intrínseca, uma convenção social de que é importante para o país que os seus cidadãos não se matem em nada se distingue de uma outra convenção social de que é importante para o país que negros sejam escravizados ou que judeus sejam exterminados. Ou seja: o problema está “resolvido” apenas acidentalmente, uma vez que os princípios são imorais e continuam abertos às maiores injustiças que se poderiam cometer. Deste modo, a gloriosa marcha da vaca para o brejo segue solene e inexorável, e passa a ser somente uma questão de tempo a decadência da civilização na barbárie – cujos sinais já encontramos em profusão por aí.

Ora, as idéias de um povo determinam a maneira como aquele povo vai se comportar e, em última instância, garantem ou impossibilitam a sua sobrevivência – donde se vê a importância que elas possuem. Diante das loucuras do mundo moderno, é possível que paremos um pouco para nos perguntar: como foi possível que chegássemos a edificar uma sociedade sobre tão frágeis alicerces? A resposta é bastante óbvia: se as idéias corretas não são defendidas e as erradas não são combatidas, o pensamento degenera-se, e isto acontece de modo tão claro e óbvio como uma casa se estraga se não houver quem dela tome conta, ou como um terreno produz abrolhos e ervas daninhas se não houver quem o cultive. E, se é criminoso construir edifícios com material de baixa qualidade pondo em risco a estabilidade da estrutura… quão mais criminoso não será edificar uma sociedade inteira sobre a areia movediça e inconstante destas idéias que são o lugar comum do pensamento moderno?

A civilização moderna não existe por conta do pensamento moderno – ao contrário, ela sobrevive (ainda) dos influxos benéficos do Cristianismo, e apesar de todas as loucuras modernas que a ameaçam destruir a cada instante, solapando-lhe as bases. Aprendemos com os construtores das catedrais medievais que uma base sólida é fundamental para a sustentação do edifício, e sempre soubemos que isto era aplicável tanto aos templos católicos quanto às sociedades. No seu ódio irracional ao glorioso passado da Igreja, os anti-clericais fazem questão de – irresponsavelmente – esquecer este ensinamento tão elementar que os nossos antigos nos legaram. E, agora, os prédios ameaçam ruir, e já aparecem as rachaduras, enquanto os livres-pensadores modernos, perdidos, tentam jogar mais e mais areia em uma patética tentativa de fechar as fendas abertas.

Dois curtas

De assuntos distintos, mas têm em comum o fato de serem ambos muito bons.

1. Entrevista de D. Luiz Bergonzini à VEJA. “O papel do bispo é orientar os seus fiéis sobre a verdade, sobre a justiça e sobre a moral. Ele deve apresentar a verdade e denunciar o erro. Foi o que fiz. Tenho todo o direito – e o dever – de agir do modo que agi. Não me arrependo de ter falado o que falei. Faria tudo de novo! Se surgir um candidato que seja contra os princípios morais, contra a dignidade humana e contra a liberdade de expressão, irei me levantar de novo”.

2. Lendas negras da Igreja. “A quem lhe ocorre perguntar-se, por exemplo, qual foi, na época do caso Galileu, a posição das universidades e outros organismos de relevância social em relação à hipótese copernicana? Quem lhe pede contas a atual magistratura pelas idéias e as condutas comuns dos juizes do século XVII? Ou, para ser ainda mais paradoxal, a quem lhe ocorre reprovar às autoridades políticas milanesas (prefeito, presidente da região) os delitos cometidos pelos Visconti e os Sforza?”

A tortura na Inquisição – João Bernardino Gonzaga

Conforme atestam inúmeros documentos, a antiga Igreja sempre foi radicalmente hostil à utilização de violências nas investigações criminais. Muito citada é a carta que o papa Nicolau I escreveu, no ano 866, a Bóris, príncipe da Bulgária: “Eu sei que, após haver capturado um ladrão, vós o exasperais com torturas, até que ele confesse, mas nenhuma lei divina ou humana poderia permiti-lo. A confissão deve ser espontânea, não arrancada”; e advertiu: “Se o paciente se confessa culpado sem o ser, sobre quem recairá o pecado?”

No século XIII, porém, em meio ao calor da luta contra heresias fortemente daninhas, que cumpria combater com rigor, ingressou a tortura nos domínios da Justiça religiosa. Autorizou-a o papa Inocêncio IV, em 1252, através da bula Ad extirpanda. Esse recurso já se tornara usual no Direito comum, de sorte que, observou-se, seria injustificável conceder tratamento privilegiado aos hereges. Se, ponderou o Papa, tal medida se aplica aos ladrões e aos assassinos, o mesmo deverá ocorrer com os hereges, que não passam de ladrões e assassinos da alma. Igual permissão foi dada por outros atos pontifícios posteriores, notadamente de Alexandre IV, em 1259, e de Clemente IV, em 1265.

Daí por diante, o Direito Canônico acolheu pois a tortura, mas algumas cautelas foram prescritas: ela não deveria pôr em perigo a vida e a integridade física do paciente; vedade era a efusão de sangue; um médico devia estar presente; somente podia ser aplicada uma vez, jamais reiterada; a confissão por meio dela obtida apenas valeria se depois livremente confirmada. Condições muito mais suaves, portanto, do que as vigorantes na Justiça secular. O sofrimento assim produzido devia ser facilmente suportável por pessoas normais; mas seguramente terá havido excessos, por parte de juízes zelosos demais.

O fato da aceitação da tortura é inegavelmente desconcertante, embora seja forçoso reconhecer que a atitude da Igreja possui fortes circunstâncias atenuantes.

Durante muitos séculos, após a queda do Império Romano, o Direito laico desconheceu os suplícios como instituição oficial, o que não significa sinal de brandura. Ninguém negará que as práticas punitivas dos povos chamados “bárbaros” fossem violentas, e outro tanto terá ocorrido no regime feudal onde, excetuadas as castas superiores, o homem comum ficava inteiramente entregue aos caprichos do seu senhor, sem forma nem figura de Juízo. Dentro desse antigo Direito, tosco e empírico, apenas inexistia a tortura institucionalizada, mas os métodos repressivos eram brutais.

A partir do século XII, no entanto, quando os Estados se foram organizando melhor e adotaram o sistema processual inquisitivo, em que avultava a importância da confissão do réu, já sabemos que os tormentos entraram plenamente nas lides judiciárias seculares. Por influência do Direito romano, eles se tornaram um expediente normal, banal, previsto e disciplinado nas leis. Conforme expusemos no Capítulo I, a tortura passou a ser encarada com absoluta naturalidade, como algo indispensável à boa ministração da Justiça e à tutela do bem comum. Ninguém a impugnava, os mais prestigiosos jurisconsultos a defendiam e a recomendavam. Os juízes, as classes cultas, o inteiro povo a aceitava pacificamente, como legítima, e ela era ademais compatível com a severidade das penas e com as rudes condições de vida então existentes.

Diante desse panorama e preocupada com o alastramento de heresias, a Igreja se deixou influenciar. Enquanto sociedade de homens, ela fica sujeita aos costumes vigentes, naquilo que não contrariem as verdades essenciais da doutrina cristã (2). Afinal, seus membros estão imersos no mundo em que vivem e forçosamente adotam seus sentimentos e seus hábitos. A par disso, o problema com que se defrontava a Igreja tornou-se muito sério: por mandato divino, cabia-lhe o dever de lutar pela salvação eterna do seu rebanho, defendendo-o contra erros que, apesar de perniciosos, eram, por vezes, muito atraentes. Animava-a a absoluta fé nessa missão. Heresias tenazes entretanto se infiltravam sorrateiramente, minando a autoridade eclesial e dissolvendo a unidade religiosa do povo. Como advertira Santo Tomás de Aquino, os hereges são como os delinqüentes que passam moeda falsa.

O herege procura ser sempre astuto, não revela o seu desvio, e este se torna geralmente difícil de descobrir, porque escondido no íntimo da pessoa. Imperioso era pois a Justiça obter a confissão. Difícil se torna para nós hoje decidir retroativamente, dentro da formação mental daquela época, como caberia ao dever de caridade resolver este dilema: deixar o herege impune, para que continuasse a disseminar o mal, e, com essa omissão, arriscar-se a perder incontáveis cristãos; ou extorquir-lhe pela força o reconhecimento do seu crime, a fim de tentar corrigi-lo, e, se isso não fosse possível, eliminá-lo para o bem do povo.

Não nos olvidemos outrossim que no Direito Processual comum da época vigorava o princípio da presunção de culpa (Cap. III, nº 3): o réu, só pelo fato de ser réu, era tido como culpado, enquanto não sobreviesse uma eventual decisão absolutória. Os tribunais eclesiásticos, portanto, seguindo a mesma regra, ao lidarem com algum acusado de heresia partiam do pressuposto de ser verdadeira essa imputação. Logo, ficava mais fácil admitir que esse homem podia ser levado à tortura, visando a confissão, mesmo porque o sofrimento assim infligido era insignificante diante da brutal pena que seria depois imposta pelas autoridades civis, a de morte na fogueira.

[…]

Aqui está, pois, o ambiente jurídico em que nasceu e atuou a Inquisição: religião oficial, apoiada pelo Estado; conseqüentemente, existência, no Direito Penal comum, de crimes consistentes em ofensas à religião ou à Igreja; competência concorrente, dos tribunais seculares e dos eclesiásticos, para perseguirem os autores de tais crimes; métodos processuais e penais rigorosíssimos.

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(2) É o que sucedeu também com a escravatura, que existiu sempre, desde os mais remotos tempos, só vindo a desaparecer recentemente, quase em nossos dias. Sendo uma instituição tradicional, comum, que se reputava indispensável, a Igreja a tolerou. De São Paulo, por exemplo, cfr. Ef 6, 6-9; Col 3, 22-25; Flm. Os apóstolos mais se importaram com a servidão espiritual ou moral do que com a física. Cabe porém dizer que o cristianismo estabeleceu princípios que fatalmente eliminariam a escravidão.

João Bernardino Gonzaga,
“A Inquisição em seu mundo”
pp. 87-91
Ed. Saraiva – 4ª Edição, 1993

Quem são os fanáticos?

Amigo 1: A Inquisição matou milhares de cientistas durante a Idade Média, época que ficou conhecida justamente como “Idade das Trevas” devido à perseguição que a Igreja fez à Ciência.

Eu: Tu podes me dizer o nome de um cientista que foi queimado pela Inquisição?

Amigo 1: Tem… tem… tem… qual o nome dele? Poxa… tu sabes, Jorge. Aquele que disse que a terra era redonda.

Amigo 2: Copérnico.

Amigo 1: Isso. Copérnico.

Eu: Copérnico era monge católico e morreu de velho. Próximo. [Eu poderia ter dito, mas não disse para não desviar (ainda) mais o foco da discussão, que Copérnico não disse que a terra era redonda, e sim que ela girava em torno do sol]

Amigo 2: Ele foi queimado sim.

Eu: Foi não.

Amigo 1: Foi sim, Jorge.

Eu: Não foi.

Amigo 1: Aqui tem dois contra um. Foi queimado sim.

O diálogo acima ocorreu exatamente deste jeito, se não com essas exatas palavras, com esta seqüência e este encadeamento de argumentos. E, por maioria simples de votantes (dois contra um) em uma mesa de shopping tomando chopp, Copérnico foi queimado pela Inquisição – e ai de quem ousasse dizer o contrário. Acho até que eu próprio escapei, por pouco, de ser queimado – afinal, estava chovendo.

Óbvio que protestei contra esta loucura metodológica e este ultraje histórico. E o Google depois os convenceu de que Copérnico não fora queimado pelo Santo Ofício (espero que por relevância das referências, e não por um democrático número de resultados). Mas o que me incomodava então não era isso – afinal de contas, uma bobagem pontual é relativamente simples de ser refutada. O que me incomodava e me incomoda são os pressupostos tácitos e universalmente aceitos, o “contexto histórico” genérico e difuso – mas que marca terreno no imaginário popular com a força de um dogma inexpugnável.

Pergunte-se a uma pessoa qualquer no meio da rua, católica ou não, se é verdadeira ou falsa a afirmação “a Inquisição perseguiu e matou milhares de cientistas durante a Idade Média”. Nove entre dez pessoas, no mínimo – que digo eu? Noventa e nove entre cem, provavelmente -, vão responder que é verdadeira. Depois, pergunte-se o nome de alguns desses cientistas que a Inquisição matou. Não vai sair absolutamente nada (e, caso saia, vai ser, na ordem, Galileu, Copérnico e Giordano Bruno – diga-se de passagem, dos três, só este último foi queimado).

Copérnico era monge, Galileu era amigo do Papa, e ambos morreram de velhice. Mas, vá lá, aceitem-se para fins de argumentação estes que são os únicos oferecidos pelos anti-clericais. A pergunta que se impera é: cadê os milhares? Ou as centenas? As dezenas? Se, perscrutando mil anos de alegada perseguição científica, os inimigos da Igreja só são capazes de puxar da manga três exemplos (e três exemplos bem questionáveis, é bom não esquecer) de cientistas perseguidos pela Inquisição, não seria algo perfeitamente sensato e razoável questionar a verossimilhança dos pressupostos adotados?

Se a Igreja perseguiu e matou milhares de cientistas na Idade Média, como é possível que ninguém possa nos dar exemplos de alguns destes mártires da Razão contra o obscurantismo religioso? É óbvio que, se houve uma “perseguição” com as proporções que a mentalidade média acredita ter havido, deve haver algum registro disso. A resposta-padrão a este questionamento é: “mas a História é escrita pelos vencedores”. Extremamente cômodo, e extremamente nonsense. Eis a “lógica”: se não há registros dos cientistas que arderam nas fogueiras da Inquisição, é precisamente pelo fato de que eles foram queimados e a Igreja malvada encobriu tudo: ou seja, prova-se que a Igreja perseguiu uma multidão de cientistas do fato mesmo de ninguém saber absolutamente nada sobre esta multidão de cientistas perseguidos! E ninguém parece ver nada de errado com isso – é impressionante. A força do absurdo que é inculcado pacientemente ao longo dos anos, desde a infância, acaba com todo o senso crítico. As pessoas apenas repetem bovinamente: “mas a Igreja perseguiu e matou milhares de cientistas durante a Idade Média”.

Os que se preocupam com as regras básicas para debater já concluíram que ausência de evidência não é evidência de ausência. Não perceberam ainda eles, no entanto, esta metamorfose argumentativa que faz com que, para atacar a Igreja Católica, a ausência de evidência degenere na prova cabal e demonstração incontestável da existência. “É lógico que não se conhecem os cientistas, exatamente porque eles foram perseguidos e mortos!”. E não adianta redargüir “tá, mas como é que se sabe, então, que eles foram perseguidos e mortos?”, porque a resposta é invariavelmente a mesma: “todo mundo sabe disso”. E depois somos nós os dogmáticos e os fanáticos? Por que ninguém se preocupa com esta calúnia institucionalizada que é a atribuição virtualmente onipresente de um rótulo odioso à Igreja Católica? Por que a afirmação “a Igreja perseguiu cientistas” deve ser aceita como um dogma incontestável?