Um vitral de louvor ao Altíssimo

Sainte Chapelle, por Jorge Ferraz

Um amigo está na Europa, e ele comentou conosco ter visitado a Sainte Chapelle recentemente. Eu também lá estive, há dois anos, e lembro-me bem de que os vitrais daquela igreja são, definitivamente, de tirar o fôlego.

A foto acima foi tirada por mim, quando lá estive. Não é nem de longe a mesma coisa que estar lá, mas dá para se ter uma idéia da magnitude da obra. De uma época em que as coisas eram feitas primordialmente para Deus. E, em muitos casos, é visível que eram feitas para Deus somente.

Por exemplo, ninguém sabe quem foram os autores destes vitrais magníficos. Apenas Deus sabe. Que grande artista não gostaria de ter o seu talento reconhecido, de ser louvado pelos homens e de deixar o seu nome para a posteridade? Este artista, incompreensível nos dias de hoje, existiu na Idade Média. Ou melhor, existiram na Idade Média – é muito comum na história da Igreja encontrar obras cuja autoria se perdeu no tempo. A Sainte Chapelle é um exemplo que se destaca porque os vitrais são assombrosos.

Também por exemplo: estes vitrais são tremendamente altos. Do chão, simplesmente não dá para ver os detalhes que estão próximos ao topo das ogivas. Lembro-me de que tiramos fotos, para que com o zoom da câmera pudéssemos ver os detalhes superiores, que do chão não eram perceptíveis. E a qualidade das obras que estão no alto – longe dos olhares dos povos, completamente imperceptíveis para todo mundo, visíveis somente para Deus – é exatamente a mesma de todas as demais: magnífica. Estas pessoas não faziam obras de arte para serem admiradas pelos homens; ofereciam o melhor a Deus porque Deus é digno de receber o que os homens têm de melhor.

E uma amiga lembrou, muito oportunamente, uma homilia de S. Josemaría Escrivá sobre o assunto:

Gostava de subir a uma torre [em Burgos], para que contemplassem os lavores cimeiros, um autêntico rendilhado de pedra, fruto de um trabalho paciente, custoso. Nessas conversas, fazia-os notar que aquela maravilha não se via lá de baixo. E, para materializar o que com repetida freqüência lhes havia explicado, comentava-lhes: Assim é o trabalho de Deus, a obra de Deus!: acabar as tarefas pessoais com perfeição, com beleza, com o primor destas delicadas rendas de pedra. Diante dessa realidade que entrava pelos olhos dentro, compreendiam que tudo isso era oração, um diálogo belíssimo com o Senhor. Os que haviam consumido as suas energias nessa tarefa sabiam perfeitamente que das ruas da cidade ninguém apreciaria o seu esforço: era só para Deus. Entendes agora como é que a vocação profissional pode aproximar de Deus? Faze tu o mesmo que aqueles canteiros, e o teu trabalho será também operatio Dei, um trabalho humano com raízes e perfis divinos.

Amigos de Deus, ponto 65

Trabalhar para Deus somente; fazer as coisas o melhor possível; não se preocupar com os olhares da multidão; ter consciência de que Deus conhece aquilo que os homens não percebem. Eis o ensino do Cristianismo, expresso nos vitrais da Sainte Chapelle que são visitados diariamente por centenas de pessoas do mundo inteiro. Quantas, no entanto, se apercebem disso? Quantas se preocupam em colocá-lo em prática?

Façamos nós o mesmo, como disse San Josemaría. Peçamos a Deus a graça de olharmos para Ele, primordialmente para Ele, somente para Ele. A glória não está nas coisas do mundo, ensinam-nos as catedrais medievais. Mas as coisas do mundo podem e devem ser usadas para glorificar a Deus. Que a Virgem Santíssima nos ajude a fazermos, da nossa vida, um hino de glória a Deus. Um vitral de louvor ao Altíssimo.

Apanhado de notícias

Relíquias de Dom Bosco em Curitiba, desde ontem: para quem estiver na cidade, hoje “a urna estará na Paróquia São Cristóvão (Rua Santa Catarina, 1.750, Vila Guaíra), também podendo ser visitada durante todo o dia, com missas às 10, 15 e 20 horas”.

– Aproveitando, sobre relíquias, ver Dom Estêvão em uma Pergunte & Responderemos de 1960, pp. 194-202. “Com estas palavras [Mc 14, 6-9; elogio “a respeito de Maria de Betânia, que ungira o corpo do Mestre pouco antes do desenlace final”] Jesus aprovava solenemente a veneração póstuma do seu corpo sagrado. Os dizeres do Divino Mestre implicavam outrossim um convite a que se tratassem de modo semelhante os despojos de todos os justos que Ele no decorrer dos tempos enxertaria em seu Corpo Místico”.

– Reportagem que não entendi: Bispos anglicanos recusam proposta do Papa. “Cerca de 30 bispos e arcebispos anglicanos, opostos à linha liberal da Igreja no que se refere à homossexualidade, recusaram esta quarta-feira a proposta do Vaticano de se converterem ao catolicismo” – grifos meus. Hein?! Que linha liberal da Igreja? Será que estes anglicanos apedrejam homossexuais?

Audiência Geral do Sumo Pontífice: arte e verdade, a Beleza como um caminho para encontrar Deus. O Papa falou sobre as catedrais medievais. Leiam na íntegra, pois não consigo citar tudo que gostaria! “O impulso ao alto [das catedrais góticas] queria convidar à oração e era em si mesmo uma oração. A catedral gótica queria traduzir, assim, em suas linhas arquitetônicas, o desejo das almas por Deus. (…) Das vidreiras pintadas se derramava uma cascata de luz sobre os fiéis para narrar-lhes a história da salvação e envolvê-los nesta história”.

Comissão da CNBB prepara Seminário Nacional de Liturgia. “A equipe lembrou também o início do movimento litúrgico impulsionado por Lambert Beaudin ao afirmar, em 1909, a necessidade de ‘democratizar a liturgia'” – valei-nos Deus! A tradução da Editio Typica Tertia do Missal Romano, no entanto, que aliás já tem até uma versão corrigida, não aparece nesta Terra de Santa Cruz. Domine, usquequo?

Good bye, bad bishops: site que mostra contadores em tempo real indicando quanto tempo falta para alguns purpurados apresentarem a sua renúncia. A grande maioria é de bispos americanos, embora estejam lá o Schönborn e o Kasper. A versão tupiniquim de um site desses… deixa para lá.

Discurso do Papa aos bispos da Regional Sul 1. “Dado que a consciência bem formada leva a realizar o verdadeiro bem do homem, a Igreja, especificando qual é este bem, ilumina o homem e, através de toda a vida cristã, procura educar a sua consciência. O ensinamento da Igreja, devido à sua origem – Deus –, ao seu conteúdo – a verdade – e ao seu ponto de apoio – a consciência –, encontra um eco profundo e persuasivo no coração de cada pessoa, crente e mesmo não crente”.

Divulgação – V Jornada Tomista de Pernambuco

V JORNADA TOMISTA DE PERNAMBUCO

Recife, 04, 05 e 06 de Novembro de 2009

TEMA

“TOMÁS DE AQUINO E A MÍSTICA MEDIEVAL”

ATIVIDADES

Conferência de Abertura: Prof. Dr. Paulo Faitanin (Univ. Federal Fluminense): “A hierarquia celeste: iniciação à doutrina dos anjos de São Tomás de Aquino”.

ATIVIDADES DAS NOITES

Quarta-feira (04/11):  Conferência –  das 19h às 22h – Auditório do CIRCAPE – Rua do Riachuelo, 105, 10o andar

–   Prof. Dr. Paulo Faitanin  – Univ. Federal Fluminense: “A hierarquia celeste: iniciação à doutrina dos anjos de Santo Tomás de Aquino”.

Quinta-feira (05/11): Comunicações – das 19h às 22h – Auditório do CTCH – 1o Andar – Bloco B – UNICAP

–    Prof. Dr. Ivanaldo Santos – UERN: “O tomismo analítico”.

–    MSc. Nalfran Modesto Benvinda – Doutorando em Filosofia – UFPB/UFPE/UFRN: “As qualidades requeridas na oração a partir do Comentário ao Pai Nosso de Santo Tomás”.

–  Ricardo Evangelista Brandão – Mestrando pela UFPB ; Prof. Dr. Marcos Nunes – UNICAP/INSAF: “Há possibilidade das paixões do corpo afetarem a alma, segundo Santo Agostinho?”

Sexta-feira (06/11):  Comunicações – das 19h às 22h – Auditório do Bloco D – 1o andar  – UNICAP

–    Prof. Dr. Witold Skwara – UFPE: “O tempo qualitativo em Santo Agostinho e o tempo quantitativo em Tomás de Aquino”.

–    Jair Lima dos Santos – Curso de Direito – PIBIC/UNICAP ; Prof. Dr. Marcos Nunes – UNICAP/INSAF: “A Lei Natural em Tomás de Aquino e sua Repercussão na Doutrina Política de Marsílio de Pádua”.

–   Carlos Alberto Pinheiro Vieira – Mestrando em Ciências da Religião – UNICAP; Prof. Dr. Marcos Nunes – UNICAP/INSAF: “O amor como fundamento da ordem social em Santo Agostinho”.

ATIVIDADE DAS TARDES

Quarta a sexta feira (04, 05, 06/11):  minicurso – das 14h às 17h – Sala 005 – Térreo – Bloco G4 – UNICAP

– Prof. Dr. Paulo Faitanin  (Univ. Federal Fluminense): “O único necessário: iniciação à ascética e mística de Santo Tomás de Aquino”

INSCRIÇÕES

(na Secretaria do CTCH – 1o Andar – Bloco B – UNICAP)

Inscrições de Comunicações

As inscrições para apresentação de comunicações (30minutos cada, incluindo debate), vão até o dia 25.10.2009. Para tal, enviar título de trabalho e resumo (com, no máximo, 200 palavras acompanhadas de 3 a 5 palavras-chave) para o seguinte endereço eletrônico: marcos@unicap.br

Inscrições de Ouvintes

(A partir de 19.10.2009, na Secretaria do CTCH – 1º andar – Bloco B – UNICAP)

Para as atividades das noites serão fornecidos Certificados gratuitos a quem tiver freqüência de, pelo menos, 75%

Para emissão do Certificado do Minicurso da Tarde será cobrada uma taxa de R$ 20,00.

Coordenação:

Prof. Dr. Marcos Costa – UNICAP/INSAF e Prof. Dr. Elcias da Costa – Presidente do Instituto Tomista

Realização:

Instituto de Pesquisa Filosófica Santo Tomás de Aquino/CIRCAPE – INSAF – UNICAP

Teologia Monástica e Teologia Escolástica

Original: Vaticano

Tradução: Wagner Marchiori

TEOLOGIA MONÁSTICA E TEOLOGIA ESCOLÁSTICA

Bento XVI – Audiência de 28 de outubro de 2009

Caros irmãos e irmãs,

vou me deter hoje sobre uma interessante página da história, que diz respeito ao florescimento da teologia latina no século XII e que veio à luz por uma série providencial de coincidências. Nos países da Europa ocidental reinava, então, uma relativa paz que assegurava à sociedade o desenvolvimento econômico e a consolidação da estrutura política e, ao mesmo tempo, favorecia uma vivaz atividade cultural graças a contatos com o Oriente. A Igreja, internamente, se beneficiava da vasta ação da chamada “reforma gregoriana que, promovida vigorosamente no século anterior, havia aportado uma maior pureza evangélica na vida da comunidade eclesial, sobretudo no clero, e havia restituído à Igreja e ao Papado uma autêntica liberdade de ação. Também estava em curso uma vasta renovação espiritual apoiada no exuberante desenvolvimento da vida consagrada: nasciam e se expandiam novas Ordens religiosas, enquanto as já existentes conheciam uma promissora renovação.

Floresceu, também, a teologia, adquirindo uma maior consciência de sua própria natureza: refinou seu método, afrontou novos problemas, avançou na contemplação do Mistério de Deus, produziu obras fundamentais, inspirou iniciativas importantes na cultura – da arte à literatura -, e preparou as obras-primas do século seguinte, o século de Tomás de Aquino e de Boaventura da Bagnoregio. Dois foram os ambientes em que surgiu com vigor esta atividade teológica: os mosteiros e as escolas das cidades, as “scholae”, algumas das quais rapidamente haveriam de dar vida à Universidade, que se constituiu em uma dessas típicas “invenções” do Medievo cristão. Partindo destes dois ambientes, os mosteiros e as scholae, pode-se falar de dois diferentes modelos de teologia: a “teologia monástica” e a “teologia escolástica”. Os representantes da teologia monástica eram os monges, em geral abades, dotados de sabedoria e fervor evangélico, dedicados essencialmente  a suscitar e a alimentar  o desejo amoroso de Deus. Já os representantes da teologia escolástica eram homens cultos, apaixonados pela investigação; os ‘magistri’ (mestres) desejosos de mostrar a racionalidade e o fundamento do Mistério de Deus e do homem, acreditado com a fé, certamente, mas que inclui a razão. As diferentes finalidades explicam a diversidade de método e do modo de fazer teologia entre eles.

Nos mosteiros do século XII o método teológico era relacionado principalmente com a explicação da Sagrada Escritura, da “sacra pagina”, para se exprimir como os autores daquele período; praticava-se especialmente a teologia bíblica. Os monges eram, portanto, devotos ouvintes e leitores da Sagrada Escritura e uma de suas principais ocupações consistia na ‘lectio divina’, isto é, na leitura rezada da Bíblia. Para eles, a simples leitura do Texto Sagrado não era suficiente para se perceber o sentido profundo, sua unidade interior e sua mensagem transcendente. Importava, portanto, praticar uma “leitura espiritual”, conduzida em docilidade pelo Espírito Santo. Como na escola dos Padres, a Bíblia vinha interpretada alegoricamente para descobrir, em cada página tanto do Antigo como do Novo Testamento, tudo o que diz de Cristo e da sua obra de salvação.

O Sínodo dos Bispos do ano passado que versou sobre o tema “Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja” chamou a atenção para a importância da leitura espiritual da Sagrada Escritura. Para tal escopo, é útil fazer uso do tesouro da teologia monástica, uma ininterrupta exegese bíblica, assim como das obras compostas por seus representantes, preciosos comentários ascéticos aos livros da Bíblia. Ao conhecimento literário a teologia monástica unia a espiritualidade. Havia consciência de que uma leitura puramente teórica e profana não basta: para entrar no coração da Sagrada Escritura é preciso lê-la no espírito com que foi escrita e criada. O conhecimento literário era necessário para conhecer o exato significado da palavra e facilitar a compreensão do texto, refinando a sensibilidade gramatical e filológica. O estudioso beneditino do século passado, Jean Leclercq, assim intitulou um ensaio  em que apresenta a característica da teologia monástica: “L’amour des lettres et le désir de Dieu” (O amor da palavra e o desejo de Deus). De fato, o desejo de conhecer e de amar a Deus, que vem a nosso encontro através do acolhimento, meditação e prática de Sua Palavra, conduz a procurar se aprofundar no texto bíblico em todas as suas dimensões. Não pode assumir outra atitude aqueles que praticam a teologia monástica a não ser uma íntima postura orante, que deve preceder, acompanhar e completar o estudo da Sagrada Escritura. Em última análise, porque a teologia monástica é escuta da Palavra de Deus, não se pode não purificar o coração ao acolhê-La e, sobretudo, não se pode não acender o coração de fervor por encontrar o Senhor. A teologia se torna, então, meditação, oração, canto de louvor e leva a uma conversão sincera. Muitos dos representantes da teologia monástica atingiram, por esta via, estágios mais elevados da experiência mística e se constituem num convite a nós para nutrir nossa existência da Palavra de Deus mediante, por exemplo, uma escuta mais atenta da leitura do Evangelho, especialmente na Missa dominical. É também importante reservar um tempo a cada dia para a meditação da Bíblia, a fim de que a Palavra de Deus seja luz que ilumina nosso caminho cotidiano sobre a Terra.

A teologia escolástica, por sua vez – como já afirmei -, era praticada nas ‘scholae’, que surgiram junto às grandes catedrais da época, para a preparação do clero, ou em torno de um mestre de teologia e seus discípulos, para formar profissionais da cultura, em uma época na qual o saber era cada vez mais apreciado. No método dos escolásticos era central a ‘quaestio’, isto é, o problema que se coloca o leitor ao se defrontar com a palavra da Escritura e da Tradição. Ante o problema que estes textos “de autoridade” põem, surgem questões e nasce o debate entre o mestre e os estudantes. Apoiado, de um lado, nos argumentos “de autoridade” e, de outro, nos argumentos da razão, o debate se desenvolve  buscando encontrar, ao final, uma síntese entre “autoridade” e razão para chegar a uma compreensão mais profunda da palavra de Deus. A esse respeito, São Boaventura diz que a teologia é “per additionem” (cfr “Commentaria in quatuor libros sententiarum”, I, proem., q. 1, concl.), isto é, a teologia acrescenta a dimensão da razão à palavra de Deus e, assim, cria uma fé mais profunda, mais pessoal e, portanto, também mais concreta na vida do homem. Neste sentido, encontravam-se diversas soluções e se chegavam a conclusões que começavam a construir um sistema de teologia. A organização das “quaestiones” conduzia à compilação de sínteses cada vez maiores, ou seja, compunham-se as diversas “quaestiones” com as respostas encontradas, criando, assim, uma síntese, as chamadas “summae”, que eram, na realidade, amplos tratados teológico-dogmáticos nascidos do confronto da razão humana com a palavra de Deus. A teologia escolástica almejava apresentar a unidade e a harmonia da Revelação cristã através de um método – chamado “escolástico“, da “escola” – que dá confiança à razão humana: a gramática e a filologia a serviço do saber teológico, mas, mais ainda, a lógica, que é a disciplina que estuda o “funcionamento” do raciocínio humano de modo a tornar evidente a verdade de uma proposição. Ainda hoje, ao ler as “Summae” escolásticas, chama a atenção a ordem, a clareza, a concatenação lógica dos argumentos e a profundidade de algumas intuições. Com linguagem técnica, é atribuída a cada palavra um significado preciso e, entre crença e compreensão, estabelece-se um recíproco movimento de clarificação.

Caros irmãos e irmãs, ecoando o convite da Primeira Carta de São Pedro, a teologia escolástica nos estimula a estarmos sempre prontos a dar a todo aquele que nos pede a razão da esperança que está em nós (cfr 3,15). Sentir a pergunta como nossa e, assim, sermos capazes também de dar uma resposta. Recorda-nos que entre a fé e a razão existe uma amizade natural, fundada na própria ordem da criação. O Servo de Deus João Paulo II, no ‘incipit’ da encíclica “Fides et Ratio, escreve: “A fé e a razão são como as duas asas com as quais os espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”. A fé se abre ao esforço de compreensão da razão; a razão, por sua vez, reconhece que a fé não a fere, e, sim, possibita-lhe alcançar horizontes mais amplos e elevados.  Insere-se aqui a perene lição da teologia monástica. Fé e razão, em recíproco diálogo, vibram de alegria quando juntas estão animadas na busca da união íntima com Deus. Quando o amor vivifica a dimensão orante da teologia os conhecimentos adquiridos pela razão se alargam. A verdade se busca com humildade e se a recebe com assombro e gratidão: em uma palavra, o conhecimento cresce somente se se ama a verdade. O amor se converte na inteligência e a teologia em autêntica sabedoria do coração que orienta a fé e a vida daquele que crê. Oremos para que o caminho do conhecimento e do aprofundamento nos mistérios de Deus seja sempre iluminada pelo amor divino.

A Igreja Católica: construtora da civilização

A quantidade de material relevante produzido no exterior e traduzido para o português é extremamente limitada. Há muita coisa que faz muita falta. É por isso que fiquei bastante feliz ao encontrar a tradução da “The Catholic Church: Builder of Civilization”, série do EWTN apresentada pelo Thomas Woods. Ainda não está completa, mas vale muito a pena ficar acompanhando. O vídeo abaixo é a primeira parte do primeiro programa.

Quem está postando os vídeos no youtube é o kandungus (acompanhem os próximos lá). A dica eu recebi via Tubo de Ensaio e Acarajé Conservador.

Cidade dos Homens, Cidade de Deus

Não tenho tempo nenhum para traduzir este interessante texto, de um jesuíta que leciona filosofia política em Georgetown, sobre a Caritas in Veritate. Apenas um período: “Assim, [a] Caritas in Veritate é uma encíclica social que não se resume a uma abordagem sobre ‘problemas sociais’, mas é uma reorientação [refocusing] do plano de nossa salvação em sua integridade, que toma lugar na arena de nossas vidas reais, em cidades de todas as constituições. Trabalhamos com o que nós temos. Fomos feitos para a vida eterna, a vida da Trindade, [concedida-nos] como um dom”.

E trago também, para comparação, algumas linhas que Daniel-Rops escreve sobre a Cristandade Medieval:

A “Cidade da Terra” encontra o seu sentido em função da “Cidade de Deus” que ela prepara. Como se vê no afresco de Santa Maria Novella, estão vinculadas uma à outra. Todos os batizados constituem desde já, na terra, uma entidade viva, fraternal, harmonizada pelos mesmos princípios, unida num mesmo esforço. Essa entidade recebe agora um nome: chama-se Cristandade.

[…]

O que é então a Cristandade no momento em que atinge o seu pleno desenvolvimento, isto é, no século XII? Dependendo da perspectiva de que se olhe (do céu ou da terra), podem-se dar duas definições, ambas solidárias. Em sentido lato, a Cristandade é o conjunto de homens regenerados por Cristo, que aspiram ao seu reino; em sentido estrito, é a sociedade dos cristãos enquanto vivem na terra e buscam fins temporais, partindo, porém, da base de que esses fins devem ser ultrapassados e realizados em Deus. A Cristandade é, portanto, um povo, a linhagem que nasceu de Cristo, que se nutre dEle e se dessedenta no seu sangue. É uma “nação”, uma comunidade que não está necessariamente ligada a um quadro geográfico e na qual todos os membros se sentem em sua própria casa. É uma sociedade, populus christianus, em que todas as desigualdades sociais e profissionais devem conciliar-se. É, enfim, uma pátria, por cujos interesses cada membro deve estar disposto a sacrificar a vida.

Fonte: A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, Daniel-Rops, Ed. Quadrante, 1993, págs. 39-40.

Um afresco florentino – Daniel-Rops

[Fonte: sumateologica.wordpress.com

Belas linhas que estão logo no início do terceiro volume da História da Igreja de Cristo do Daniel-Rops. Quando li o texto, não encontrei a imagem à qual o historiador francês se referia; topei com ela hoje na internet, e reproduzo-a aqui. Cliquem para ampliar, é enfaticamente recomendado.

Uma nota de rodapé neste capítulo fala que foi diante deste quadro que um historiador agnóstico lamentou não existir em nossas dias “uma instituição fundada sobre a fé na unidade fraterna do gênero humano sob a paternidade de Deus”. Quanto mais nós, que temos Fé, não sentimos falta do tempo “em que a Filosofia do Evangelho governava as nações”, como disse Leão XIII! Rezemos ao Altíssimo, para que tenha misericórdia de nós e, após tudo o que foi perdido, que Ele não Se afaste da humanidade pecadora.]

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Um afresco florentino

Numa das paredes da sala do capítulo, no convento dominicano de Santa Maria Novella, em Florença, há um afresco diante do qual a maioria dos visitantes passa apressadamente e que, no entanto, se presta a uma inesgotável reflexão. Intitulam-no “os cães de Deus”, por causa dos molossos malhados de branco e negro que, na parte inferior do quadro, combatem uma horda de lobos. Na verdade, porém, esta batalha significa algo mais que a luta dos domini canes, dos filhos de São Domingos, contra a terrível matilha de tentações, pecados e heresias que ronda ininterruptamente a pobre humanidade. Seu autor, Andrea de Firenze, não é um mestre de primeira fila; a sua obra não poderia ser comparada aos Duccio, aos Ghirlandaio, aos Orcagna ou aos assombrosos Paolo Uccelo que, a dois passos dali, a ofuscam. Contudo, talvez nenhum outro artista cristão tenha sabido captar melhor do que ele, utilizando apenas alguns metros quadrados de superfície mural, tudo o que uma sociedade inteira quis, sonhou e tentou realizar na terra. Plasmada numa composição única, resume-se nesse afresco a síntese de uma civilização, tal como ela própria se concebeu.

Em primeiro plano vê-se o Papa, de pé, revestido de serena majestade, representante visível dos poderes do alto. A seu lado, quase da mesma altura, o Imperador, que diríamos estar com ele em plano de igualdade se não trouxesse nas mãos uma caveira, lembrando que os domínios da terra perecem, ao passo que os do céu não passam. De cada lado, dispõem-se, numa hierarquia estrita, os cargos religiosos e as dignidades laicas: cardeais, bispos e doutores à direita, e à esquerda reis, nobres e cavaleiros. Na base, o rebanho inumerável dos fiéis, ricos e pobres, piores e melhores, todos aqueles que levam para diante na terra a aventura humana do destino e do combate cotidianos. Estão representadas todas as categorias sociais, e cada uma ocupa o seu lugar nesta ordem, cada uma tem um papel a desempenhar. Qual? A obra indica-o por meio de dois símbolos, pois trata-se de uma dupla tarefa: concretamente, edificar com meios humanos a Igreja da terra, a assembléia dos batizados, cuja imagem visível é a recém-construída cúpula de Florença que se ergue no fundo da pintura; e sobrenaturalmente, participar da Igreja mística, transcender as misérias e as insignificâncias da terra, para elevar-se, ao longo do árduo caminho pelo qual avançam as filas dos eleitos, até o trono inefável em que Cristo, o Deus vivo, reina sobre o mundo, entre os cânticos dos anjos e as preces dos santos.

Esta grandiosa imagem, que por uma coincidência irônica o artista florentino pintou em meados do século XVI, ou seja, quando já deixara de corresponder à verdade, foi a imagem que dez gerações de homens albergaram no coração como o ideal de sua existência, como um desígnio e uma promessa, e tentaram transformar em realidade com o seu sangue e os seus esforços. Esta visão do mundo explicava-lhes tudo o que deviam fazer na terra e esperar do além; mostrava-lhes a humanidade perfeitamente ordenada, submetida a Deus, dirigida pelos seus mandamentos, regida por leis justas. Fazia-os compreender que não havia nenhuma instituição válida que não se encontrasse inserida no quadro das intenções divinas e não devesse ajudar o homem a ascender ao céu. Tudo possuía uma finalidade, um sentido, uma razão de ser; a aventura dos mortais não parecia nem absurda nem desesperadora, e cada um sabia por que trabalhava, sofria, vivia, e também porque devia morrer. Imagem grandiosa que a humanidade bem podia apreciar com nostalgia, num momento em que perdeu o sentido do porquê e do como, num momento em que procura inutilmente reencontrar a sua escala de valores e em que o abandono desse ideal se traduziu para ela num trágico caos.

A primavera da Cristandade

Durante três séculos – entre 1050 e 1350, aproximadamente -, a concepção do mundo que prevaleceu foi essa noção de Cristandade. Formou-se lentamente, à custa de sangue e lágrimas, e foi-se também perdendo aos poucos. Por trezentos anos impôs a sua lei, e, evidentemente não por acaso, foi esse talvez o período mais rico, mais fecundo e, sob muitos aspectos, mais harmonioso de todos os que a Europa conheceu até os nossos dias. Saindo das trevas invernais da época bárbara, a humanidade cristã viveu a sua primavera.

O que inicialmente impressiona a quem analisa o conjunto destes trezentos anos é a sua riqueza de homens e de acontecimentos. À semelhança da seiva que jorra por todos os lados na primavera, tudo parece agora germinar e desabrochar numa abundância de folhagem sobre o solo batizado por Cristo. Em todos os âmbitos se manifesta o fervor criativo, a exigência profunda de empreender, de encaminhar a caravana humana para o futuro. Os mais minuciosos quadros cronológicos não seriam suficientes para captar este impulso. Constroem-se catedrais; parte-se para a conquista do Santo Sepulcro, da Espanha que ainda se encontra submetida ao poder mouro, das regiões bálticas ainda pagãs; nas universidades, discutem-se as grandes questões humanas; escrevem-se epopéias, criam-se mitos eternos; milhares de pessoas transitam pelas rotas de peregrinação; no ímpeto de descobrir o mundo, chega-se até o secreto coração da Ásia; elaboram-se novas formas políticas… E tudo isso simultaneamente, num ardor de vida em que todos os acontecimentos se precipitam e interagem, numa complexidade que desencoraja por antecipação quem quiser abarcá-la.

Este impulso prodigioso, contudo, não é uma improvisação de frágeis resultados, não desemboca numa dessas florações prematuras que os primeiros ventos de abril lançam ao chão. Traz frutos, e que frutos! Perto de algumas criações mais imperecíveis que o gênio europeu produz nesta época, as mais ousadas obras modernas tornam-se irrisórias. É o tempo das altas naves góticas, do Pórtico Real de Chartres e das fachadas de Reims e de Amiens, dos vitrais da Sainte-Chepelle e dos afrescos de Giotto. É o tempo em que se erguem, paralelamente aos edifícios de pedra e como eles desafiando os séculos, essas catedrais de sabedoria que são a mística de São Bernardo e a de São Boaventura, a Suma Teológica de São Tomás, as canções de gesta, a obra profética de Roger Bacon e a de Dante. É o tempo ainda em que nascem instituições, tanto religiosas como civis, que servirão de base às gerações futuras, como o Conclave dos cardeais, o Direito Canônico e as diversas formas de governo. Insigne fecundidade. Somente os séculos de Péricles, de Augusto e de Luís XIV podem rivalizar em poder criativo com este período de tempo que vai de Luís VII da França à morte do seu bisneto São Luís, da eleição de Inocêncio II à de São Celestino.

É claro que semelhante fecundidade pressupõe uma enorme riqueza de talentos. A Europa dá-nos a impressão de ter possuído nesta época, em todos os âmbitos, personalidades de primeira ordem, com uma abundância que não voltaria a encontrar depois. A lista é infindável. São os santos, cujo valor de exemplo e de irradiação se mostram admiráveis: São Bernardo, São Norberto, São Francisco de Assis, São Domingos, que podemos citar entre centenas. São os expoentes do pensamento: Santo Anselmo, São Boaventura, São Tomás de Aquino, e Abelardo, e Duns Escoto, e Bacon, e Dante… São os artistas geniais, os inventores de técnicas e os criadores de formas, mestres e artistas cujos nomes estamos longe de conhecer em muitos casos. São homens de Estado, eminentes pela sua sabedoria, como Filipe Augusto ou São Luís, ou pela profundidade da sua visão política, como grande Frederico Barba-Roxa e o inquietante Frederico II. São os chefes guerreiros à testa de tropas imensas, desde  Guilherme o Bastardo, que conquistou a Inglaterra, e os seus primos, que instalaram no sul da Itália a dominação normanda, até os grandes cruzados, um Godofredo de Bulhões e um Balduíno, ou aqueles que, com o Cid Campeador, travaram na Espanha batalhas semelhantes. Não faltam representantes das mais altas categorias, os que fazem progredir a humanidade: escritores, escultores, músicos, sábios, juristas. E qualquer outra categoria que citemos possuirá, entre 1050 e 1350, nomes que a posteridade há de respeitar. E no cimo destas nobres coortes, vemos os papas, muitos dos quais foram personalidades excepcionais, quer se trate de um Gregório VII ou de um Inocêncio III.

Os empreendimentos, os conflitos e até os dramas em que estes homens se envolveram trazem também  sinal da grandeza. Há períodos da história em que os acontecimentos têm qualquer coisa de mesquinho: os tempos merovíngios, por exemplo, ou os do desmembramento do Império de Carlos Magno. Durante os três séculos da Baixa Idade Média, porém, tudo transcorre de outro modo: a Cruzada é uma empresa grandiosa, mas também o é a invasão mongol, apesar da sua crueldade e violência, ou a própria entrada em cena dos almorávidas na Espanha. E mesmo nas desastrosas lutas entre o papado e as potências terrenas, subsiste uma intensidade dramática que atinge a dimensão de um confronto decisivo entre duas concepções do mundo.

Mas esta época dá a impressão de ordem e equilíbrio tanto como de vitalidade e de frondoso desabrochar. As instituições políticas e sociais, bem como o sistema econômico, surgem como entes concretos e reais, proporcionados à estatura do homem. Não se observa neles essa tendência para o desmedido e para a abstração desumana que caracteriza o mundo moderno. Toda essa época assemelha-se à sua mais bela criação – a Catedral -, cuja infinita complexidade e cujos múltiplos aspectos testemunham um caudal inesgotável, mas que obedece a uma evidente ordem preestabelecida, graças à qual o conjunto ganha o seu sentido e cada detalhe o seu alcance.

Muitos filósofos da história, de Oswald Spengler a Toynbee, pensam que as sociedades humanas, à semelhança dos seres individuais, obedecem a uma lei cíclica e irreversível que as faz percorrer estágios bastante parecidos aos da infância, juventude, maturidade e velhice do ser fisiológico. Se tais comparações são válidas, é indubitável que, ao longo destes três séculos, a humanidade cristã do Ocidente conheceu a primavera da vida, a juventude, com tudo o que esta traz consigo de vigor criativo, de violência generosa e por vezes inútil, de combatividade, de fé e de grandeza.

Fonte: A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, Daniel-Rops, Ed. Quadrante, 1993, pág. 9-13.

A Idade Média e as fogueiras

[Baseado em comentários feitos em outro assunto aqui no Deus lo Vult!.]

O preconceito histórico contra o Cristianismo encontrado amiúde nos nossos dias é uma das coisas que mais impede que se tenha uma visão equilibrada sobre a Igreja Católica e o Seu papel na construção da civilização ocidental. A repetição de clichês e de mentiras, de visões simplistas e de reconhecidos preconceitos iluministas, de lendas negras e de anacronismos, tudo isso parece ter se transformado em uma espécie de teste de aferimento intelectual. Parece que ninguém é bom o bastante se não nutrir um grande preconceito contra a Igreja Católica; e, quanto maior for este preconceito, mais inteligente é o preconceituoso em questão.

A Idade Média é evocada como uma época de trevas iluminada tão somente pelas terríveis fogueiras da Inquisição. O cristão-médio é um intolerante truculento que está disposto a trucidar qualquer um que apareça no seu caminho, pregando qualquer coisa que não esteja de acordo com a Doutrina Cristã. O obscurantismo e a superstição tomam o lugar da Ciência, e os cientistas levam uma espécie de vida nas catacumbas, diuturnamente escondidos dos terríveis inquisidores, os quais são, por sua vez, ambiciosos ávidos de riqueza e de poder. Os cristãos são retratados como se fossem o compêndio de todos os vícios.

É tão imponente o edifício preconceituoso que não se sabe muito bem sob qual ponto deve-se começar a demoli-lo. Não tenho a pretensão de esgotar o assunto, até porque é uma tarefa humanamente impossível de ser realizada em um simples texto curto de blog. Já disse outras vezes aqui que é muito mais fácil jogar a calúnia barata do que desmentir a calúnia barata; é muito mais fácil lançar mão da mentira que da verdade. Acontece que a mentira tem pernas curtas, e já está mais do que na hora de ajudá-la, ao menos, a tropeçar.

À Idade Média – e, em particular, à Igreja Católica – coube o incrível milagre de transformar o caos em que se havia transformado a Europa com a queda do Império Romano e as invasões bárbaras na civilização onde nascemos e vivemos. Seria realmente espantoso se esta cruel religião cristã tivesse conseguido um tão extraordinário prodígio, seria verdadeiramente admirável se estes cristãos repletos de defeitos e totalmente carentes de qualidades tivessem operado tão portentosa transformação: portanto, há uma verdadeira ruptura entra a Idade Média e a Idade Moderna, e é esta a tese defendida pelos anti-clericais de todos os naipes. Agem como se todos os bens – inegáveis – da civilização ocidental tivessem brotado ex nihil, aparecido por geração espontânea dos escombros nos quais a Igreja lançou a Europa durante a Idade Média.

Porque a Idade das Trevas não pode ter produzido – não, jamais! – nada de bom, nada de civilizado, nada de minimamente aproveitável pelas gerações futuras. Estas tiveram que, sozinhas, reconstruir tudo o que a Igreja destruiu em mil anos. O Renascimento e o Iluminismo, assim, apresentam-se não como simples fenômenos históricos, mas como verdadeiras revelações sobrenaturais: após mil anos de trevas, uma luz resplandeceu, e uma luz tão fulgurante que, em duzentos ou trezentos anos, conseguiu reerguer tudo o que a Igreja tinha Se esforçado para lançar por terra ao longo do último milênio. Eis como pessoas “inteligentes” explicam a história!

É muito difícil argumentar contra pessoas que sustentam uma visão preconceituosa da realidade. Não adianta dizer que a tese deles é absurdamente ridícula, e que é completamente inverossímil que, um belo dia, alguns iluminados tenham resolvido sacudir dos ombros o jugo da tirania eclesiástica e construir o mundo. Eles começarão a ter um ataque histérico e a falar em fogueiras, em trevas, em cruzadas, em obscurantismo, e em meia dúzia de outros chavões que, na cabeça confusa deles, confundem-se com argumentos ou – pior ainda – com fatos históricos. Quando, na verdade, a História é bem mais complexa do que a caricatura ideológica dos anti-clericais os permite enxergar.

As fogueiras! “Milhões de bruxas queimadas” – é a primeira frase dita por um anti-clerical. A segunda, é acrescentar que essas bruxas eram na verdade cientistas (já que bruxas não existem). E então emendam com o “obscurantismo institucionalizado”, com a “hierarquia ávida por poder que tinha medo de perder o domínio exercido sobre o povo”, com a “perseguição de cientistas e proscrição da Ciência”… e, diante do ataque histérico raivoso, você não consegue mais argumentar. Ad baculum, é o modus operandi dos anti-clericais quando estão pontificando história.

Não adianta lembrar que a Inquisição foi instituída com o propósito muito claro e específico de combater os cátaros, que eram vere et proprie uma ameaça à civilização medieval. Não adianta mostrar que não há registro de que as fogueiras tenham extrapolado a casa dos milhares [muito menos dos milhões!] como pretendem os raivosos historiadores anti-clericais. Não adianta nem mesmo lembrar que não foi a Igreja a inventar as fogueiras, sendo esta modalidade de pena capital já amplamente utilizada antes mesmo de que o primeiro inquisidor entregasse ao braço secular o primeiro herege cátaro. Não adianta, porque os anti-clericais não estão preocupados com fatos, e sim com a ideologia deles. Já puseram na cabeça que a Idade Média foi a Idade das Trevas, e qualquer coisa que abale, um mínimo que seja, esta íntima convicção dogmática é sumariamente descartada.

A Idade Média viu levantarem-se na Europa as cúpulas das catedrais, mas os anti-clericais só vêem as fogueiras. A Idade Média viu as Universidades serem fundadas pela Igreja, mas os anti-clericais só vêem as fogueiras. A Idade Média viu os filósofos escolásticos lançarem as bases da ciência experimental, mas os anti-clericais só vêem as fogueiras. A Idade Média viu a Inquisição proporcionar indiscutíveis avanços ao Direito Penal, mas os anti-clericais só vêem as fogueiras. Quando uma pessoa só quer ver uma coisa, não adianta mostrar mais nada. “Intolerância medieval!”, é só o que eles sabem gritar.

Na verdade – e, aqui, rasguem as vestes os inimigos da Igreja de todos os naipes -, a Idade Média foi um excelente exemplo de uma sadia intolerância, da intolerância contra o vício e contra o pecado, da intolerância que é a única capaz de construir e manter alguma coisa duradoura. Na verdade, os pecados são avessos à civilização, e a forma mais eficaz – aliás, a única forma da qual temos conhecimento – de criar e manter alguma sociedade minimamente civilizada é apontando claramente o que deve ser feito e o que deve ser evitado. Não poderia subsistir uma sociedade onde as pessoas roubasssem umas às outras, nem uma onde as pessoas matassem umas às outras. E, sim, qualquer civilização que se proponha a ser duradoura, que tenha um mínimo de “instinto de sobrevivência”, precisa ser intolerante para com aquilo que a pode destruir. Isto é óbvio; tão óbvio que os medievais o entenderam perfeitamente (o que fica mais do que demonstrado pelos excessos – pontuais – cometidos pelos homens daquele tempo), ao passo em que os tolerantes modernos nunca conseguiram fazer com que as suas teses fossem abraçadas pela grande massa da população. Mas, claro, isto deve ser culpa da influência católica!

A “intolerância” da Idade Média, combatida pelos auto-intitulados “livres-pensadores” (que, no entanto, de livres não têm nada, porque só repetem chavões e perconceitos anti-clericais), foi o que construiu o mundo moderno onde estes mesmos livres-pensadores podem vomitar o seu ódio à Igreja Católica. Quer eles gostem, quer não. A despeito da ideologia preconceituosa dos anti-clericais, entre as fogueiras da Idade Média levantaram-se campanários e cúpulas de catedrais aos céus, ergueram-se universidades e lançaram-se as bases do mundo moderno, de modo que resumir os mil anos nos quais “a filosofia do Evangelho guiava as nações” às fogueiras da Inquisição é de um simplicismo criminoso. Mas contra preconceitos – insisto – não há argumentos possíveis. E o preconceito do século XXI parece ser o pior de todos os preconceitos que já se abateram sobre a humanidade.

Papini & I Fioretti di San Francesco

Um amigo mandou-me agora à hora do almoço um bonito texto sobre São Francisco de Assis publicado no site da Quadrante, que vale a leitura; mostra como um dos maiores santos da Igreja é hoje as mais das vezes “caricaturizado” pelo sentimentalismo reinante, e o Francisco que aparece nos nossos dias (e que, infelizmente, está bem impresso na mentalidade da média das pessoas) é bem diferente do São Francisco de Assis que a Providência Divina fez surgir na Idade Média.

Há meio século, e talvez mais [nota: o artigo é de 1922], São Francisco é o único, da legião flamejante dos invasores do Paraíso, que encontrou graça diante dos olhos míopes dos cristãozinhos divididos e até de muitos blasfemos alegóricos a serviço do Demônio. A vida do “Pobre de Assis”, solertemente lapidada para dela retirar tudo o que há de sobrenatural, que enoja os delicadíssimos apêndices olfativos do “homens modernos”, é recebida com cordial condescendência entre os livros de que se podem convenientemente nutrir a senhora e o senhor que estão “à altura dos tempos”.

O autor do ensaio,  Giovanni Papini, alude por diversas vezes aos Fioretti, que eu – apesar de já ter ouvido falar por diversas vezes – ainda não havia lido. Procurei em português e encontrei o Florilégio, que não sei dizer se é a mesma obra. No entanto, achei coisa melhor: I Fioretti di San Francesco em edição bilingüe, italiano – português, disponível na internet!

Dentre as diversas passagens da vida do santo que o livreto contém, destaco a seguinte:

São Francisco, instigado pelo zelo da fé de Cristo e pelo desejo do martírio, foi uma vez ao ultramar com doze companheiros santíssimos, para ir direto ao Sultão da Babilônia. E, chegando a uma região dos sarracenos, onde as passagens eram guardas por homens tão cruéis que nenhum cristão, que passasse por aí, podia escapar sem ser morto. Aprouve a Deus que não fossem mortos mas, presos, espancados e amarrados, foram levados à presença do sultão.

Estando São Francisco diante dele, ensinado pelo Espírito Santo, pregou tão divinamente sobre a fé de Cristo, que por essa fé eles até queriam entrar no fogo. Por isso o sultão começou a ter uma enorme devoção por ele, tanto pela constância de sua fé como pelo desprezo do mundo que nele via, pois não queria receber dele nenhum presente, e mesmo pelo desejo do martírio, que nele via. Daí em diante o sultão o escutava de boa mente, e pediu que voltasse muitas vezes a ele, concedendo livremente a ele e aos companheiros que pudessem pregar onde quer que lhes aprouvesse. E lhes deu um sinal para que não pudessem ser ofendidos por ninguém.

[…]

Nesse tempo [após a morte do santo], São Francisco apareceu a dois frades e mandou-lhes que fossem sem demora ao sultão e cuidassem de sua salvação, conforme lhe havia prometido. Os frades logo se moveram, passaram o mar e foram levados pelos ditos guardas para o sultão. Quando os viu, o sultão teve uma enorme alegria e disse: “Agora eu sei verdadeiramente que Deus mandou-me os seus servos para a minha salvação, de acordo com a promessa que São Francisco me fez por revelação divina”. Tendo, então, recebido a formação da fé de Cristo e o santo batismo pelos ditos frades, assim regenerado em Cristo morreu naquela doença, e sua alma foi salva pelos méritos e pelas orações de São Francisco.

[Fior 24]

Que diferença do verdadeiro São Francisco de Assis para este “Francisco” apresentado nos nossos dias!

Jesuítas e Frades – Castro Alves

[Dia desses, eu conversava com um amigo sobre a colonização do Novo Mundo; e, comentando sobre o papel desempenhado pelos jesuítas nesta Terra de Santa Cruz, lembrei-me de um poema de Castro Alves, que eu havia lido há algum tempo, precisamente sobre os jesuítas e no qual o poeta baiano os apresentava de uma maneira bem elogiosa e bem diferente do que, hoje, escutamos amiúde por aí. Trago-o à apreciação dos leitores.

Apesar do patente preconceito do poeta contra a Idade Média – natural, dado o Iluminismo do qual bebiam os românticos -, o poema serve de eloqüente testemunho histórico para se dizer o seguinte: mesmo um brasileiro nutrido com idéias iluministas e com rasgos de anti-clericalismo como Castro Alves não se abstém de falar em defesa dos clérigos que vieram ao Novo Mundo. Têm particular força essas palavras dirigidas aos Jesuítas e Frades: “O poeta americano / Vos deve amortalhar no verso soberano”…]

JESUÍTAS E FRADES

II

Que o mundo antigo s’erga e lance a maldição
Sobre vós… remembrando a negra Inquisição
A hidra escura e vil da vil Teocracia
O Santo Ofício, as provas, o azeite, a gemonia…
Lisboa, Tours, Sevilha e Nantes na tortura,
Na fogueira Grandier, João Huss na sepultura,
Colombo a soluçar, a gemer Galileu…
De mil autos-de-fé o fumo enchendo o céu…
Que a maldição vos lance à pena do gaulês
Tendo por tinta a borra das caldeiras de pez…
Que o germano a sangrar maldiz em férreos hinos.

É justo!…
A História cega, aquentando o estilete,
Nas brasas que apagar não pôde o Guadalete,
Tem jus de vos marcar com o ferro do labéu,
Como queima o carrasco o ombro nu do réu…

……………………………………………………………..

Mas enquanto existir o grande, o novo mundo
Ó filhos de Jesus!… um cântico profundo
Irá vos embalar do sepulcro no solo…
A América por vós reza de pólo a pólo!
Dizei-o, vós, dizei, Tamoios, Guaranis,
Iroqueses, Tapuias, Incas e Tupis…
A santa abnegação, o heróismo, a doçura,
O amor paternal, a castidade pura
Desses homens que vinham, envoltos no burel,
A derramar dos lábios o amor – divino mel,
O perdão – óleo santo, a fé – mística luz,
E o Deus da caridade – o pródigo Jesus!…

Oh! não! Mil vezes não! O poeta americano
Vos deve sepultar no verso soberano
– Pano negro que tem por lágrimas de prata
As lágrimas que a musa inspirada desata!!!

Se aqui houve cativos – eles os libertaram.
Se aqui houve selvagens – eles os educaram.
Se aqui houve fogueiras – eles nelas sofreram.
Se lá carrascos foram – cá, mártires morreram.
Em vez do inquisidor – tivemos a vedeta.
Loyola – aqui foi Nóbrega, Arbues – foi Anchieta!

Oh! não! Mil vezes não! O poeta americano
Vos deve amortalhar no verso soberano
– Pano negro que tem por lágrimas de prata
As lágrimas que a musa inspirada desata!…

……………………………………………………………..

[Alves, Castro, “Os Escravos”, pp. 116-117, Ed. L & PM, Porto Alegre, 2002]