O Escapulário da Virgem do Carmo

Hoje é a festa de Nossa Senhora do Carmo e eu me lembrei do artigo da semana passada de D. Fernando Rifan que falou sobre Ela. Recomento a leitura do texto do grande bispo de Cedamusa sobre os aspectos históricos da devoção à Virgem do Monte Carmelo (à guisa de exemplo: «[n]a pequena nuvem portadora da chuva após a grande seca, Elias viu simbolicamente Maria, a futura mãe do Messias esperado»), mas também sobre o Santo Escapulário e os privilégios que a Virgem Mãe de Deus prometeu aos que o usassem devotamente.

O Escapulário do Carmo! É possível conhecer um pouco mais sobre o pequeno sacramental aqui. Mas, para além destas (importantes) “especificações técnicas”, pode ser muito proveitosa no dia de hoje a leitura desta mensagem de Sua Santidade o Papa João Paulo II à Ordem do Carmelo em 2001. Das palavras do Papa, eu destaco (grifos meus):

5. No sinal do Escapulário evidencia-se uma síntese eficaz de espiritualidade mariana, que alimenta a devoção dos crentes, tornando-os sensíveis à presença amorosa da Virgem Mãe na sua vida. O Escapulário é essencialmente um “hábito”. Quem o recebe é agregado ou associado num grau mais ou menos íntimo à Ordem do Carmelo, dedicado ao serviço de Nossa Senhora para o bem de toda a Igreja (cf. Fórmula da imposição do Escapulário, no “Rito da Bênção e imposição do Escapulário”, aprovado pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, 5/1/1996). Por conseguinte, quem veste o Escapulário é introduzido na terra do Carmelo, para que “coma os seus frutos e produtos” (cf. Jer 2, 7), e experimente a presença doce e materna de Maria, no empenho quotidiano de se revestir interiormente de Jesus Cristo e de o manifestar vivo em si para o bem da Igreja e de toda a humanidade (cf. Fórmula da imposição do Escapulário, cit.).

São portanto duas as verdades recordadas no sinal do Escapulário: por um lado, a protecção contínua da Virgem Santíssima, não só ao longo do caminho da vida, mas também no momento da passagem para a plenitude da glória eterna; por outro, a consciência de que a devoção a Ela não se pode limitar a orações e obséquios em sua honra em algumas circunstâncias, mas deve constituir um “hábito”, isto é, um ponto de referência permanente do seu comportamento cristão, tecido de oração e de vida interior, mediante a prática frequente dos Sacramentos e o exercício concreto das obras de misericórdia espiritual e corporal. Desta forma o Escapulário torna-se sinal de “aliança” e de comunhão recíproca entre Maria e os fiéis: de facto, ele traduz de maneira concreta a entrega que Jesus, na cruz, fez a João, e nele a todos nós, da sua Mãe, e o acto de confiar o seu apóstolo predilecto e a nós a Ela, constituída nossa Mãe espiritual.

E estas palavras do Papa parecem-me excelentes para responder tanto à sanha iconoclasta dos inimigos da Mãe de Deus quanto a algum presunçoso laxista que porventura exista entre os cristãos e que, enganosamente, acredite ou se queira fazer acreditar ser devoto da Virgem do Carmo. A concepção de mundo expressa nestas palavras do Vigário de Cristo assinala a radical diferença entre uma concepção “mágica” ou “supersticiosa” do Cristianismo e a sua dimensão real: os sinais externos não apenas não substituem uma vida moral reta como também eles só fazem sentido se forem a sincera expressão exterior de uma vida agradável a Deus. O Escapulário do Carmo não é um amuleto da sorte nem um talismã mágico para livrar as pessoas do inferno, e usá-lo desta maneira significa, simplesmente, não usar o escapulário.

Aos que o usam devota e sinceramente, no entanto, ele se transforma em penhor de salvação, como as flores abertas e vistosas de um jardim bem cuidado revelam a vitalidade do jardim e o empenho do jardineiro no seu cultivo. Da mesma forma que jogar um belo ramalhete de flores sobre um terreno descuidado e repleto de ervas daninhas não o transforma em um jardim, cobrir com um escapulário uma alma imunda e repleta de pecados não a transforma em serva dedicada da Rainha do Carmelo. Os devotos da Mãe de Deus o são antes e primordialmente na alma, e os sinais externos são (sempre!) frutos desta fecundidade anterior e interior. O escravo da Rainha do Carmelo não perde a sua dignidade quando o seu hábito lhe é tirado, assim como uma roseira não deixa de ser uma roseira se lhe arrancam uma rosa: com o tempo, um e outra irão se revestir novamente – de escapulário ou de rosas. Ao contrário, um vaso de flores não vira uma roseira nem mesmo se lhe adornam com as mais belas rosas do mundo, pois estas cedo ou tarde fenecerão, deixando o vaso de novo vazio. E o escapulário sobre os ombros do católico deve ser como as rosas da roseira, e não como as do estéril e frio vaso de flores. Se não for assim, ele não é verdadeiro escapulário e não faz sentido utilizá-lo.

Quem como Ela?

Um leitor do Deus lo Vult! pediu-me que comentasse uns textos absurdos divulgados por hereges protestantes [texto i, texto ii e texto iii], os quais cometiam a terrível blasfêmia de identificar a Gloriosa Mãe de Deus com um demônio vetero-testamentário. Ele próprio me adiantou que já havia uma refutação católica aqui; tendo isso em vista, passo eu próprio a tecer alguns comentários sobre o assunto. Falando mais sobre a alegação em si do que sobre os devaneios concretos dos quais os textos estão cheios.

Antes de qualquer coisa, cabe apontar que a acusação é totalmente gratuita e descabida, além de ilógica. Do fato de haver um demônio pagão à época do profeta Jeremias que se auto-denominava “rainha dos céus” não segue que não exista a verdadeira Rainha dos Céus, como o fato de Satanás querer tomar o lugar do Deus Altíssimo não implica na inexistência do próprio Deus Altíssimo, ou como (parafraseando Chesterton) uma nota falsa de cinqüenta reais não significa que não exista o Banco Central do Brasil. Aliás, é exatamente o contrário.

Satanás ousou apresentar-se como se fora o Altíssimo. Contra ele, levantaram-se as legiões de anjos fiéis ao Todo-Poderoso gritando-lhe: quis ut Deus?, quem como Deus? Se fossem protestantes as hierarquias angelicais, por certo que combateriam o próprio Deus Altíssimo sob o pretexto de que era exatamente isto o que afirmava de si o primeiro Anjo Caído. Aliás, coisa bastante parecida com isso já aconteceu – não com anjos, claro. E está registrada nos Evangelhos:

“Como pode este homem falar assim? Ele blasfema.
Quem pode perdoar pecados senão Deus?”
(Mc II, 7)

E este diabólico “quem (…) senão Deus?” dos escribas é materialmente muito parecido com o justíssimo “quem como Deus?” de São Miguel. Talvez estes judeus da época de Cristo tenham sido os legítimos antecessores dos hereges protestantes do século XVI – uns e outros negando a Nosso Senhor. Os fariseus e escribas eram incapazes de distinguir o Deus Verdadeiro dos demônios! Analogamente, os hereges dos tempos modernos que negam as honras devidas à Virgem Maria não conseguem diferenciar as santíssimas obras do Deus Altíssimo das pompas diabólicas dos sequazes de Satanás.

Ora, por qual motivo houve um dia um demônio que se apresentasse como rainha dos céus? Qual seria o porquê, senão pelo fato de haver a verdadeira Rainha dos Céus [inclusive registrada explicitamente nas Escrituras Sagradas: Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelasAp 12, 1], de Cujas honras e glórias os demônios são invejosos e as anseiam por roubar? Não é bastante óbvio que a falsificação diabólica aponta precisamente para a existência da obra santíssima do Todo-Poderoso? O fato dos orgulhosos demônios quererem para si este título não demonstra de maneira cabal que ele existe e já pertence por direito a uma Mulher que o inferno não é capaz de suportar?

É justamente a grandeza do Deus Verdadeiro que faz com que um demônio apresente-se aos homens como sendo ele próprio um deus. É também incontestável que o Deus Altíssimo não é a “rainha dos céus” – este título não Lhe é atribuído em lugar algum. Ora, considerando isso, é bastante claro que o demônio auto-apresentado como rainha dos céus não poderia senão estar desejando usurpar o lugar de Alguém – e quem seria Esta senão Aquela grandiosa Mulher coroada no Apocalipse, a Verdadeira Rainha dos Céus, Regina Caeli, a Gloriosa e Imaculada sempre Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa?

Satanás quis ser como Deus e foi resistido à face por São Miguel. Se há um demônio que deseja ser como a Virgem Santíssima, devemos resistir-lhe com coragem: não perseguindo a verdadeira Rainha dos Céus, mas perguntando ousadamente: quem como Ela? Aos demônios pagãos que se apresentam falsamente como rainhas do céu ou do mar, devemos responder com as palavras das Escrituras Sagradas: Quem é esta que surge como a aurora, bela como a lua, brilhante como o sol, temível como um exército em ordem de batalha? É certo que não pode ser demônio algum. É certo que Esta só pode ser aquela Mulher que um dia foi chamada de cheia de graça. Aquela que as Escrituras chamam de Mãe do Senhor. Aquela que todas as gerações proclamarão Bem-Aventurada.

Idolatria na Igreja Católica

Nas minhas andanças pela internet descobri um curioso texto, escrito supostamente por um católico e divulgado por protestantes, chamado Tratado da Verdadeira Devoção – escrito por um católico. Não, não é o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem de São Luís de Montfort (este era o que eu estava procurando). Trata-se de um texto herético protestante (mesmo que se diga “escrito por um católico”, se for verdade, o tal católico que escreveu é de facto um herege protestante) onde o autor se esmera para provar a idolatria da Igreja de Cristo. O assunto é tão velho que já está gagá, mas vou me deter n’alguns comentários sobre esta obra específica por causa das referências ao Tratado verdadeiro, o de São Luís Maria.

Começa o texto com o velho blá-blá-blá sobre se “adoração” e “veneração” são a mesma coisa. Na Doutrina Católica, é óbvio que não são; se “todos dicionários colocam veneração como sinônimo de adoração” (op. cit., p. 3) eu não sei se é verdade mas, ainda que seja, não faz nenhuma diferença, porque é evidente que um dicionário não é o lugar adequado para se buscar o sentido de termos teológicos específicos da Doutrina Católica. Esta tem dois mil anos e não tem nenhuma obrigação de “se adequar” às exigências dos dicionários, pois os católicos sabem que a Doutrina se aprende no catecismo; se os protestantes querem aprender teologia no dicionário é problema deles, e só vai fazer com que eles não entendam nunca o que a Igreja está dizendo.

Acerta o autor do livreto quando diz que “veneração é ato de culto” (op. cit., p. 2) mas erra ao dizer que isso, por si só, já caracteriza a existência de idolatria. Como todo protestante, ele só aceita que exista culto de adoração. O que, dentro da Teologia Católica, é falso, pois existe o culto de latria devido a Deus e o culto de dulia devido aos santos e às imagens dos santos. Portanto, nem todo culto é culto de latria, e “revelar” que a Igreja cultua os santos é descobrir o sol ao meio-dia no céu límpido. As citações de diversas passagens bíblicas onde “venerar” (ou “honrar”, ou “cultuar”, ou qualquer coisa parecida) é usado no sentido de “adorar” são irrelevantes, primeiro porque as traduções portuguesas modernas não necessariamente contemplam a terminologia grega ou hebraica original com esta fidelidade farisaica que exige o autor da obra e, segundo (e muito mais importante), porque o sentido das palavras é evidentemente mais importante do que as palavras em si. Os católicos aceitam que se diga “venerar a Eucaristia” no sentido de latria. Mas, em contrapartida, exigem que seja aceito “venerar a Virgem Santíssima” no sentido de dulia.

O mesmíssimo vale para a citação do II Concílio de Nicéia (sobre adorar/venerar as imagens). A interpretação dada pelo “católico” sobre as passagens do Apocalipse onde São João adora um anjo e dos Atos dos Apóstolos onde Cornélio adora São Pedro é completamente estapafúrdia:

Na verdade, tanto João como Cornélio não tentaram adorar com adoração de latria, pois eles sabiam que o anjo e Pedro eram criaturas, e que, portanto, não poderiam ser adoradas. Eles queriam, na verdade, venerá-las, ou seja, prestar-lhes adoração de honra.

Contudo, vimos a Palavra de Deus advertindo que a adoração, seja de latria ou de dulia (de honra), só são devidas a Deus. Ou seja, que a veneração (como é popularmente conhecida a adoração de honra) só pode ser dada a Deus. Portanto, venerar uma criatura (um anjo ou um santo) é idolatria, sobretudo se a veneração coloca o santo no lugar de Deus. [op. cit., p. 5; grifos no original]

Se a “veneração” coloca o santo no lugar de Deus ela, por definição, é latria e não dulia, de modo que a frase não tem nenhum sentido. Agora, se “venerar uma criatura” for sempre idolatria, então o autor da obra difamatória vai precisar explicar por que a Bíblia manda, p.ex., honrar os velhos (cf. Lv 19, 32), por que o Templo era “venerado no mundo inteiro” (IIMac 3, 12), por que Jacó se prostrou diante de Esaú (cf. Gn 33, 3), por que o carcereiro “lançou-se trêmulo aos pés de Paulo e Silas” (At 16, 29), por que “José celebrou, em honra do seu pai, um pranto de sete dias” (Gn 50, 10), por que Lot prostrou-se diante dos dois anjos que chegaram a Sodoma (cf. Gn 19, 1), ou ainda por que Deus prescreveu: “Honra teu pai e tua mãe” (Ex 20, 12), entre muitas outras coisas. Donde se vê a que absurdas contradições chega o livre-exame das Escrituras, tomando textos isolados, misturando-os com preconceitos e desprezando quer a Tradição da Igreja, quer o próprio conjunto dos demais livros da Bíblia.

Segue o suposto “católico” com uma enorme lista de “[t]extos oficiais da Igreja Católica admitindo (sic) a adoração de imagens” (op. cit., pp. 5-10). De novo a mesma coisa: o pressuposto de que toda veneração é adoração, de que adoração é uma palavra que só pode ser usada no sentido de latria, de que a Igreja é alguma espécie de idiota que não sabe nem mesmo o que Ela própria diz. Não é sequer concedido a Igreja o beneplácito de ter a Sua Doutrina julgada da maneira que Ela mesma a entende; o protestante pega textos católicos, interpreta-os com um sentido expressamente contrário àquele que a Igreja lhes dá, e quer com isso mostrar como Ela é idólatra. Um esforço gigantesco e inútil, pelo simples fato de que a Igreja não entende os Seus textos do mesmo jeito que os entende o “teólogo dos dicionários”.

Adoração é latria, é daí que vem a palavra “idolatria” (que significa “adoração a ídolos”), e se a Igreja deixa claro que existe uma coisa chamada “latria” e uma outra coisa chamada “dulia”, então é porque Ela diferencia as duas coisas, e não é intelectualmente honesto dizer que Ela as considera ambas iguais. O máximo que os protestantes podem fazer é tentar provar que tanto a latria quanto a dulia são proibidas pelas Escrituras Sagradas. Só que isso é impossível, porque até as mais criativas exegeses (como a acima citada, de São João e de Cornélio) são incapazes de explicar o conjunto das Escrituras Sagradas, onde vemos, sim, criaturas sendo honradas o tempo inteiro.

As páginas subseqüentes são fruto de uma leitura seletiva do Tratado da Verdadeira Devoção à SSma. Virgem de São Luís Maria Grignion de Montfort. O autor do livreto dá às palavras do santo um sentido expressamente condenado por ele – coisa, aliás, muitíssimo parecida com o expediente de fazer a Igreja “admitir” que adora imagens. É como se alguém dissesse “o sol ilumina e o fogo queima, mas a lua pode refletir a luz do sol e, por isso, também ilumina, e o ferro pode ficar em brasas se em contato com o fogo e, portanto, também queima”. Daí o gênio sentenciasse: ah! Ele diz que a lua ilumina, mas só o sol ilumina e, por isso, ele diz que a lua é sol! Ele diz que o ferro queima, mas todo mundo sabe que só o fogo queima e, portanto, ele diz que o ferro é o fogo! É em um “raciocínio” estritamente análogo a isto que se baseia o “católico” escritor do livreto. Afinal, São Luís de Montfort deixa claro, por diversas vezes, que as qualidades atribuídas à Santíssima Virgem o são por graça, por causa de Deus, e não por “natureza” ou por poder próprio. Lembra repetidas vezes que Maria é uma criatura e não o Criador. Mas as suas palavras encontram os ouvidos surdos (ou os olhos analfabetos) do suposto católico que não quer saber de outra coisa que não atacar, per fas et per nefas, a Doutrina da Igreja.

No final, a inteligência ilustre responsável pelas páginas deste livro não quis assumir-se, mantendo-se anônimo. É forçoso reconhecer que ele, ao menos, tem senso do ridículo; eu próprio ficaria envergonhado de reclamar a autoria de linhas sofríveis assim. O responsável pela divulgação do livreto – Wellington Leão, do “Notícias do Evangelho” – diz que o autor pediu para ser mantido no anonimato “temendo (…) que pudesse ser excluído do catolicismo”. Quanto a isso, aviso ao ex-católico que ele não tem com o quê se preocupar: a excomunhão por heresia é automática, latae sententiae, segundo prescreve o Código de Direito Canônico, de modo que o anonimato não o protege de se auto-excluir da comunhão com a Igreja de Cristo.