Pode um Bispo Diocesano proibir a comunhão na boca?

Embora o assunto já tenha sido tratado muitas vezes, ainda hoje surgem questões envolvendo normas diocesanas que proíbem a comunhão na boca. Alegam, as mais das vezes, questões sanitárias em si mesmas justíssimas: trata-se de medida para diminuir o risco de contágio pelo vírus da gripe. É certo que os Bispos são «promotores e guardiães de toda a vida litúrgica na Igreja que lhes está confiada» (CIC, Cân. 835, §1); é certo também que ao Bispo Diocesano, «na diocese que lhe foi confiada, compete todo o poder ordinário, próprio e imediato, que se requer para o exercício do seu múnus pastoral» (CIC, Cân. 381, §1). No entanto, existirá realmente uma competência diocesana para suprimir o modo tradicional de recepção da Santíssima Eucaristia — qual seja, diretamente na boca do fiel?

Ora, qual a legislação aplicável ao tema? Os documentos mais antigos são a Memoriale Domini (1969) e a Immensae Caritatis (1973). A primeira era acompanhada de uma carta contendo algumas normas práticas, das quais a primeira era a de que «[o] novo método de administrar a comunhão não deve ser imposto de maneira que venha a excluir o costume tradicional». A segunda já não fala nada sobre o método antigo, apenas enfatizando a reverência que é devida ao Santíssimo Sacramento (evidentemente) também no caso de comunhão nas mãos.

A partir daqui, ao que me consta, seguem-se algumas décadas sem que haja instruções específicas sobre o assunto. Há, talvez, algumas consultas feitas à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos às quais no momento não tenho acesso. Mas o próximo documento aplicável — e, sem dúvidas, o de maior importância, porque o mais atual e, portanto, o vigente — é a Instrução Redemptionis Sacramentum (2004). Nela se pode ler o seguinte parágrafo (grifos meus):

[92.] Todo fiel tem sempre direito a escolher se deseja receber a sagrada Comunhão na boca ou se, o que vai comungar, quer receber na mão o Sacramento. Nos lugares aonde Conferência de Bispos o haja permitido, com a confirmação da Sé apostólica, deve-se lhe administrar a sagrada hóstia.

Já questionei aqui no blog os problemas dessa redação; mantenho o entendimento de que a única coisa a que o fiel tem “sempre direito” é, justamente, a Comunhão na boca, porque a comunhão na mão é um indulto que apenas tem vigência “[n]os lugares aonde (sic) Conferência de Bispos o haja permitido”. Mas deixe-se isso de lado por ora. Retenha-se, por enquanto, esta norma claríssima e insofismável: o fiel, qualquer fiel, tem sempre direito a escolher se deseja receber diretamente na boca a Sagrada Eucaristia! Ora, isso significa que, conquanto ele até possa optar por receber a Eucaristia nas mãos (nos lugares onde tal é permitido), ele não pode ser jamais forçado a comungar dessa maneira.

Estas são as normas atualmente em vigor. Mas ainda tem mais. Em nota de rodapé, elas fazem referência ao número 161 da Instrução Geral do Missal Romano, cujo teor (na redação portuguesa da Editio Typica Tertia) é o que segue:

161. Se a Comunhão for distribuída unicamente sob a espécie do pão, o sacerdote levanta um pouco a hóstia e, mostrando-a a cada um dos comungantes, diz: O Corpo de Cristo (Corpus Christi). O comungante responde: Amen, e recebe o Sacramento na boca, ou, onde for permitido, na mão, conforme preferir.

Ora, o trecho final — na boca, ou, onde for permitido, na mão, conforme preferir — é um acréscimo da Terceira Edição do Missal Romano. As edições anteriores diziam, simplesmente, que o comungante respondia “amém” e recebia o sacramento. Ou seja, se antes havia silêncio sobre a forma de comungar, agora essa dúvida não subsiste mais: o comungante recebe o Sacramento na boca. A Editio Tertia é do ano 2000 e o conteúdo deste número é o mesmo que estamos aqui defendendo: o fiel recebe a Santíssima Eucaristia diretamente na boca, somente lhe sendo facultado optar pela comunhão na mão nos lugares onde isso seja permitido.

A leitura de quatro décadas de documentos revela, assim, essa verdade incontornável: em momento algum se fala (ou mesmo se infere) que o fiel possa ser proibido de comungar na boca! Ao contrário até, em diversos lugares esse seu direito é enfatizado, havendo inclusive uma mudança na redação da IGMR para que isso ficasse explícito. Corolário disso é que os bispos diocesanos, por mais que sejam a legítima autoridade litúrgica no âmbito de suas dioceses, não têm competência para proibir a comunhão na boca. Não a têm, porque todos os documentos da Sé Apostólica são uníssonos em afirmar, ao longo dos anos, com clareza crescente, que os fiéis podem sempre optar por receber a Sagrada Eucaristia diretamente sobre a língua.

Cuidem, portanto, os bispos e padres para não cercearem os direitos dos fiéis católicos. E saibam os fiéis que têm assegurado o direito de sempre receber a Comunhão na boca — direito que remonta a uma tradição imemorial e que já foi sucessivas vezes reiterados pela Igreja de Roma.

Apenas para finalizar: em 2009, quando do surto da gripe H1N1, um católico da Grã-Bretanha escreveu à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Nesta carta ele perguntava especificamente se era legítima a determinação de sua diocese para que a comunhão fosse distribuída somente na mão. O Dicastério respondeu fazendo menção à Redemptionis Sacramentum, reiterando que o fiel tinha sempre o direito de receber na língua a Sagrada Comunhão e que não era lícito negar a Eucaristia a quem não estivesse impedido pelo Direito. Ou seja, nem mesmo razões alegadamente sanitárias autorizam os sacerdotes e bispos a passarem por cima das normas litúrgicas aprovadas pela Santa Sé.

Os maus frutos dos abusos litúrgicos

Alguns comentários surgidos no meu post sobre a escandalosa “missa pré-balada” são, por si sós, exemplos incontestáveis da miséria religiosa na qual se encontram os católicos brasileiros. Dão testemunho claro do mal que causam estas “celebrações” totalmente destoantes do senso religioso mais rudimentar – coisa que, como se pode infelizmente constatar, falta em muitos do que aqui vieram se dizendo católicos.

Um erro concreto é uma coisa terrível. Porém, muito mais terrível é a defesa pública do erro. Na maioria das vezes, há muito mais malícia em se defender um pecado do que em cometê-lo. Há mais malícia nas “Católicas pelo Direito de Decidir” do que numa jovem que, pressionada pelo namorado, realiza um aborto. Há mais malícia em um site gayzista como o “Diversidade Católica” do que em um sujeito que, sob a influência de más companhias, vai a uma festa e tem relações sodomitas das quais depois se arrepende. Há mais malícia em se defender abertamente a destruição da Liturgia Católica do que em uma missa mal-celebrada.

Porque um pecado concreto está limitado pelas contingências objetivas nas quais ele se insere. É geralmente feito às escuras, porque se tem consciência de que se trata de uma coisa vergonhosa. Pelo fato da consciência desaprovar-lhe, dele é possível arrepender-se mais facilmente. Há, geralmente, as circunstâncias exteriores que lhe são propícias e lhe dão incontestável incentivo para que ocorra. Não obstante, é mesmo assim uma coisa terrível e uma ofensa infinita e ingrata ao Deus Onipotente! Ora, quão mais terrível então não será defender o pecado às claras, deliberando friamente sobre a situação fora da qual se está, deformando assim a própria consciência e a dos outros? Enquanto cometer um pecado leva para o Inferno aquele que o comete, defender publicamente o pecado arrasta para o Inferno multidões de almas.

Volto à escandalosa missa ocorrida em Maringá (cujo vídeo foi posteriormente removido pelo usuário). O abuso litúrgico é grave. O fato de ser premeditado (já que a referida missa já havia ocorrido outras vezes e já tinha datas previstas para tornar a acontecer) é ainda mais grave. No entanto, o que é mais desolador em tudo isso é ver pessoas defendendo a ofensa a Deus, ou indiferentes a ela. “Não vi tanto escândalo assim neste filme”, “não acho que esse seja um caso grave”, “não vi nada de errado”… estes foram os comentários de alguns (auto-intitulados) católicos que por aqui passaram.

Vamos à aula de catecismo para crianças (literalmente). Vamos ao “Primeiro Catecismo da Doutrina Cristã” (Vozes, 145ª Edição, Petrópolis, 2005), que as crianças estudam – ou melhor, deveriam estudar – antes de fazer a Primeira Comunhão. Questão nº 139: “Que é a missa”? Resposta: “A missa é o sacrifício incruento do corpo e do sangue de Jesus Cristo, oferecido sobre os nossos altares, debaixo das aparências de pão e de vinho, em memória do sacrifício da cruz”. E é bastante óbvio para qualquer pessoa normal que é (para dizer o mínimo) desrespeitoso colocar um globo de luz e gelo seco numa cerimônia que torna presente o Calvário.

Vamos à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Vamos à Redemptionis Sacramentum, “sobre algumas coisas que se devem observar e evitar acerca da Santíssima Eucaristia”. As palavras são claras: “não se pode calar ante aos abusos, inclusive gravíssimos, contra a natureza da Liturgia e dos sacramentos” (RS 4). Há, no entanto, “católicos” por aqui dizendo que não há problema algum nos abusos litúrgicos, que não devemos nos preocupar com isso, e coisas similares.

Adiante, na mesma instrução (cuja leitura, aliás, é enfaticamente recomendada): “Coerentemente com o que prometeram no rito da sagrada Ordenação e cada ano renovam dentro da Missa Crismal, os presbíteros presidam, «com piedade e fidelidade, a celebração dos mistérios de Cristo, especialmente o Sacrifício da Eucaristia e o sacramento da reconciliação». Não esvaziem o próprio ministério de seu significado profundo, deformando de maneira arbitrária a celebração litúrgica, seja com mudanças, com mutilações ou com acréscimos” (RS 31). A Igreja, portanto, proíbe aos padres “mudanças”, “mutilações” ou “acréscimos” na celebração litúrgica. Coisas que, infeliz e evidentemente, abundam na celebração ocorrida em Maringá. A Santa Missa não é propriedade privada de ninguém, e sim de toda a Igreja. Há normas bem detalhadas para a sua correcta celebração que devem ser obedecidas. Assim é a Igreja Católica. O resto, é achismo de quem se diz católico mas não se porta como tal.

E os frutos podres destes abusos litúrgicos estão mais do que evidentes na própria defesa que estes “católicos” fazem deles. Total ignorância dos rudimentos da Fé Católica, confusão doutrinária, completa ausência de senso litúrgico e de sentire cum Ecclesia. São estes os “católicos” (de)formados por esta escola de negação do catolicismo. Até quando iremos contemplar amargamente este processo de destruição da Fé nas almas dos filhos amados de Deus?