Sobre a ocupação da Faculdade de Direito do Recife

Alguns amigos me perguntam se não me solidarizo com os estudantes — muitos dos quais colegas meus, com os quais estudo ou já estudei, que eu vejo praticamente todos os dias — que invadiram ontem à noite o prédio da Faculdade de Direito do Recife. Dizem-me que eles fazem isso porque estão convencidos de estar agindo de maneira correta; só chegaram a este extremo porque não vêem outra alternativa. Em assim sendo o momento é de “dialogar” e não de acirrar animosidades.

ocuppyfdr

Bom, a questão absolutamente não é essa. Claro que eles, internamente, estão convencidos de estarem fazendo a coisa certa. Isso é óbvio, todo mundo só faz aquilo que acredita ser correto. Gostaria muitíssimo, aliás, de ver essa capacidade de empatia dos meus interlocutores aplicada a tudo — porque, para ficar só em um exemplo, os portugueses que aqui chegaram há quinhentos anos certamente acreditavam estar fazendo a coisa certa ao catequizar os índios, e eu não estou acostumado a ver muita condescendência histórica com a colonização ibérica. Exigir para si mesmo aquilo que costumeiramente se nega aos outros, portanto, não é lá uma disposição dialógica sincera; ao contrário, tem forte sabor de hipocrisia.

O ponto não é que os estudantes acreditem estar fazendo o certo. O que interessa aqui é saber qual o juízo público que deve ser feito de suas atitudes. Quais as consequências exteriores e objetivas de suas ações, se eles devem ser por elas responsabilizados e de que maneira. Esta é a discussão que interessa. Estou plenamente convencido de que aqueles jovens acreditam estar fazendo a coisa certa quando invadem uma propriedade pública na calada de noite e impedem que os cidadãos — muitos dos quais alunos hipossuficientes, beneficiários de assistência estudantil — tenham acesso à prestação de serviços a que aquele prédio público se destina. Não tenho a menor dúvida disso, como — mutatis mutandis — não tenho a menor dúvida de que um homem-bomba muçulmano acredite estar fazendo a coisa certa quando um explode um metrô no ocidente. Não cabe cogitar das intenções do homem-bomba. O que interessa é dizer que não é socialmente aceitável que uma pessoa exploda as outras, por melhores que sejam as suas intenções.

Vão me dizer que ocupar um prédio público é bastante diferente de explodir um metrô. Claro que é diferente, mas o princípio é rigorosamente o mesmo: é justificar a violação de uma norma social por conta das alegadas boas intenções que movem o violador da norma. Explodir um metrô e ocupar violentamente um prédio público obviamente não são censuráveis na mesma medida; mas são, ambas as atitudes, censuráveis em medidas distintas e é isso que se quer dizer aqui. Porque, afinal de contas, nós devemos olhar para a reprovabilidade da conduta ou para as intenções do agente? Se for para estas, então precisamos ser mais condescendentes com o terrorismo (e com a colonização portuguesa, o nazi-fascismo etc.); se, ao contrário, devermos olhar para os resultados objetivos das ações individuais, e se a repressão à atitude particular não guardar relação direta com a bondade ou maldade da intenção de quem a pratica, então talvez precisemos olhar para as ocupações das universidades públicas de uma maneira um pouco menos superficial. Talvez exigir a imediata retirada dos estudantes não se confunda com “condenar” as suas tomadas de posições políticas.

Este assunto interessa particularmente a este blog porque é, em última instância, uma reedição do fenômeno “quem sou eu para julgar?”. Porque do jeito que a sensibilidade contemporânea está estruturada fica parecendo que só é possível reprovar uma atitude pública se a pessoa que a prática for particularmente culpável de alguma espécie de maldade intrínseca; ou, a contrario sensu, que se uma pessoa puder estar subjetivamente justificada em alguma sua motivação interior então não é possível fazer nada contra as suas atitudes externas. Bom, uma e outra coisa estão erradas. Nem a condenação externa de um ato implica a reprovação pessoal do agente, nem a possibilidade de o agente estar de boa-fé o autoriza a cometer publicamente o ato sem que ninguém possa fazer nada a respeito. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Esta compreensão é completamente básica na doutrina católica: há certas atitudes que são inadmissíveis ainda que se possa imaginar que alguém as cometa em candura de consciência. A Igreja é intolerante nos princípios porque crê, mas é condescendente com as pessoas porque ama. Os atos de homossexualismo são intrinsecamente desordenados e não podem em hipótese alguma ser aprovados, ainda que se deva evitar para com as pessoas homossexuais todo sinal de discriminação injusta. Uma pessoa pode viver em uma situação objetiva de pecado sem que contudo seja subjetivamente culpável ou não o seja plenamente. É sempre o mesmo princípio aplicado das mais distintas maneiras; e o desconhecimento dele faz com que as pessoas ou acreditem que o Papa está a revogar a Doutrina da Igreja, ou que esta mesma Doutrina está a impedir Sua Santidade de ser verdadeiro Papa.

Volto à nossa Faculdade de Direito. Muitos dos marginais que estão lá dentro são provavelmente meus amigos; nem eles deixam de ser criminosos pelo fato de eu ser capaz de compreender as suas motivações, e nem o fato de eles serem meus amigos faz com que esteja tudo bem em invadir um prédio público e prejudicar a vida de milhares de pessoas que pouco ou nada compactuam com a visão de mundo deles. Se são pessoas malignas, não, claro que não são — não passam de jovens com uma visão de mundo equivocada que, conquanto possa ser subjetivamente justificável, é socialmente deletéria e se deve, com certeza!, externamente combater. Se deveriam ser retirados à força, é lógico que deveriam! Não se poderia sequer ter deixado que eles passassem a noite lá, e quanto mais o tempo passa mais a situação se torna difícil de resolver. Entender as motivações de terceiros não é condescender com as agressões de outrem, nem tampouco reagir às atitudes socialmente deletérias é negar que os seus fautores tenham ideais sinceros: no fundo é isso o que interessa aqui. No meio de todos os males provocados pelos bárbaros que neste momento estão ocupando ilegitimamente um prédio histórico, que ao menos a tragédia possa ajudar essas distinções básicas a serem melhor compreendidas.