Uma cruz gigantesca em Abu Dhabi

Coisa verdadeiramente sensacional a Missa celebrada pelo Papa Francisco no final da sua recente viagem apostólica aos Emirados Árabes! Repercutiu até na mídia laica brasileira: “[q]uase 170 mil pessoas assistiam à missa dentro e fora do estádio Zayed Sports City, público considerado recorde pela organização do evento”, segundo G1.

E, mais importante!, o jornal publicou a foto. A foto do altar improvisado onde alguém teve a feliz inspiração de incrustar um cruzeiro gigantesco, enorme, uma cruz que eu não me recordo de jamais ter visto tão grande em nenhuma viagem pontifícia, nem do Papa Francisco e nem de nenhum dos seus predecessores. Uma cruz aos pés da qual até mesmo o Romano Pontífice, o Vigário de Cristo, o maior homem do mundo, parecia pequeno e insignificante. Uma cruz que verdadeiramente apontava para a grandeza de Deus.

Foto: Giuseppe Cacace / AFP, apud G1.

Que imagem! Em tempos onde muitos desejam esconder o Cristianismo e evitar qualquer referência em público a Nosso Senhor, o Papa faz questão de celebrar uma Missa em território muçulmano, longe de casa, e de a celebrar sob uma Cruz imponente, em comparação com a qual todos — fiéis católicos, padres, bispos, cardeais e mesmo o próprio Papa — parecem desaparecer. Uma Cruz em cuja grandeza nós podemos fazer sumir as nossas dores. Uma Cruz capaz de atrair o nosso olhar mesmo à distância, mesmo inadvertidamente, e nos encher de muda admiração.

Um cruzeiro erguido pelo Cristo-na-Terra em solo infiel, in partibus infidelium, em Dar al-Islam, é gesto de significado extraordinário! É Cristo reclamando para Si o senhorio do mundo, malgrado a impiedade dos homens, mesmo a despeito dessa indiferença religiosa que corrói as sociedades atuais e que, desgraçadamente, encontra defensores até mesmo entre católicos. Não falta entre estes quem tenha receio de fazer um sinal-da-cruz no trabalho, na faculdade, no mercado, na casa de um amigo! Para seu escândalo e vergonha, eis aí o Papa Francisco censurando a covardia e o respeito humano, eis o Bispo de Roma traçando uma cruz gigantesca em Abu Dhabi. Uma cruz cujo alcance os meios de comunicação em massa ampliaram ainda mais, terminando por a tornar, de bom ou mau grado, rapidamente visível ao mundo inteiro.

Cristo é o Rei do mundo. E o vigário d’Ele só pode sair levantando cruzeiros mundo afora porque o mundo inteiro pertence a Cristo, ainda que o desconheça ou mesmo que o negue. Todo o poder Lhe foi dado no céu e na terra (cf. Mt, XXVIII, 18) e as convenções mundanas nada podem contra esta autoridade divina, incontrastável e soberana. Cristo um dia levantou a Cruz no alto do Gólgota para a salvação de todos; erguendo-A daquela vez, adquiriu o direito de A erguer de novo, através da Sua Igreja, onde e quantas vezes quiser.

Neymar, o COI e as manifestações religiosas nas Olimpíadas

A história envolvendo Neymar, a faixa com “100% Jesus” e a reclamação do Comitê Olímpico Internacional é uma falsa polêmica — ou melhor, uma polêmica à qual se está dando mais atenção do que ela merece. Resumindo a história, o Brasil ganhou no último sábado a sua primeira medalha de ouro de futebol nas Olimpíadas. Durante a cerimônia de premiação, o capitão do time brasileiro subiu no pódio com uma faixa amarrada na cabeça com a inscrição “100% Jesus” — não é a primeira vez que ele o faz. O COI disse que iria enviar uma carta de protesto à delegação brasileira afirmando que o ato era inaceitável no evento. Houve protestos por parte da mídia cristã.

Como já antecipei, penso que se trata de uma falsa polêmica. Primeiro porque a manifestação não é a melhor expressão de Fé do mundo; segundo porque não vale a pena mendigar o reconhecimento do Comitê Olímpico Internacional; terceiro porque o próprio COI disse que não haveria sanções associadas ao incidente — ou seja, tudo se trata de mera vontade de espezinhar.

A primeira questão é talvez a mais relevante aqui. Sinceramente, eu desconheço o testemunho público da Fé Cristã de Neymar — ou ao menos o testemunho público que vá além de usar uma bandana com o Santíssimo Nome de Nosso Senhor nas cerimônias onde ele é premiado. O craque parece levar uma vida em tudo indistinguível da de todos os outros atletas jovens, ricos e famosos — festas, mulheres, brigas. Neste último fim de semana mesmo, com o nome de Cristo na testa e tudo, o atleta ganhou as manchetes dos jornais por conta de ter xingado um torcedor! É certo que a Fé Cristã deve ser difundida; mas será que não estamos fazendo isso errado? Sinceramente eu não sei quem presta maior desserviço ao Cristianismo: o COI, que não quer atletas fazendo referências a Cristo, ou o atleta que, fazendo questão de dar mostras públicas da sua Fé, comporta-se de ordinário como alguém que nada deve à mensagem evangélica!

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Não se trata de condicionar o apostolado à perfeição moral, evidentemente. O ponto é preservar o Evangelho do escândalo. Irritamo-nos, e com toda a razão do mundo, quando os burocratas ateus do COI desprezam a Fé do povo e querem afastar dos olhos do mundo quaisquer referências públicas ao Divino Salvador; ora, por que razão não nos irritaríamos, também e com até maior medida, quando um atleta amarra uma faixa com o nome de Cristo na testa e vai arrumar confusão com os torcedores a ponto de precisar ser contido por seguranças? Porventura isso não é também um desprezo terrível para com os símbolos cristãos?

[O medalhista Usain Bolt é outro atleta que deu recentemente muito mau testemunho ao ser filmado nas boates cariocas de maneira bem pouco casta, para dizer o mínimo: o mesmo Bolt que há bem poucos dias foi divulgado como sendo devoto de Nossa Senhora das Graças. Aqui, no entanto, a questão é toda outra; não me recordo de ter visto o velocista ostentando a sua Fé Católica pelos pódios nos quais subiu durante as Olimpíadas. A Medalha Milagrosa cai muito bem sobre o peito dos pecadores: que a Virgem da Rue du Bac proteja o jamaicano das brasileiras oportunistas! O problema não é ser cristão e cometer pecados — ser pecador é aliás pré-requisito para ser cristão. O problema é preocupar-se mais com dizer-se cristão do que com portar-se, ou ao menos tentar portar-se, de acordo com as exigências deste nome. Sigamos.]

Há uma outra razão pela qual a revolta parece errar o alvo: parece que, com ela, concede-se aos organizadores dos jogos olímpicos uma autoridade e um prestígio que eles, absolutamente, não detêm. O que tem o COI a ver com a Fé dos atletas, com os símbolos que eles usam, com os gestos que eles fazem, com as preces que eles recitam? Que necessidade existe da aprovação destes senhores?

É bem sabido que as normas do Comitê não têm nada a ver com nenhuma “neutralidade religiosa” (como se isso fosse possível). Trata-se, é notório, de uma deliberada e seletiva perseguição aos símbolos e manifestações do Cristianismo, e não de qualquer religião. Isto é muito fácil de ver. Aqui, no Rio de Janeiro, no início da competição, é impossível não lembrar da mulher que jogou vôlei de praia coberta da cabeça aos pés sob o sol escaldante de Copacabana. A vestimenta, que destoava do contexto muitas ordens de grandeza mais do que a pequena faixa do jovem Neymar, era evidentemente um símbolo religioso — no caso, do islamismo. Não lembro de ter visto o COI reclamar de Doaa Elghobashy. Mais ainda: na mídia houve até festa, dizendo que as atletas estavam quebrando um tabu. Se certos símbolos religiosos são aceitos sem maiores polêmicas enquanto outros ensejam reclamações formais, então é óbvio que o objeto da norma proibitória não é a generalidade das religiões, mas sim uma religião (ou algumas religiões) específica(s).

Ora, se o COI está visivelmente empenhado em uma cruzada anti-cristã sob a desculpa da neutralidade religiosa, o que mais é necessário fazer além de desmascarar-lhe a parcialidade? Apontar a medonha contradição já não é suficiente? Exigir de um órgão incoerente e tendencioso… o quê?, o reconhecimento da licitude dos símbolos e gestos cristãos?, a autorização para falar o nome de Jesus Cristo?, não é dar-lhe uma importância desmedida? Por que os atletas cristãos precisariam da autorização do COI para falar de sua Fé? Por que Nosso Senhor teria que pedir licença aos burocratas de um comitê para subir no pódio conquistado pelos Seus seguidores? Ora, que o Comitê Olímpico se limite àquilo que lhe diz respeito! Quanto aos atletas, que sigam ignorando os seus (do COI) queixumes, que mais que isso é rebaixar a Fé aos caprichos dos organismos internacionais.

A situação seria diferente se o órgão estivesse falando em alguma espécie de punição. Se os atletas estivessem sendo minimamente coagidos na manifestação de suas crenças, se estivessem sob a ameaça de alguma sanção, aí sim seria o caso de dizer com voz altiva que compete obedecer antes a Deus que aos homens, que os comitês organizadores não têm jurisdição sobre a consciência alheia e não podem determinar a quem os atletas oferecem suas vitórias ou a quem deixam de as oferecer. Mas nada disso é assim. Sabendo que não tem legitimidade alguma para impedir o uso de uma faixa com o nome de Jesus por um jogador cristão ao mesmo tempo em que placidamente permite indumentárias islâmicas completas a uma atleta muçulmana, o COI não teve nem mesmo a coragem de ameaçar com sanções. Por outra: disse taxativamente que não haveria sanção alguma. É apenas um protesto vazio, digno de adolescentes birrentos, ao qual não convém conceder mais do que um solene desprezo.

Em suma: se há alguma coisa de censurável na atitude do menino Neymar, tal é o uso meramente externo de um símbolo cristão sem que a isso sejam acrescentados alguns mínimos sinais de que se tem em verdadeira conta a seriedade da mensagem evangélica. A pretensão do Comitê Olímpico de censurar as celebrações dos atletas é descabida e, além do mais, incoerente com a própria atitude do COI diante de outras manifestações análogas — e por isso não merece ser levada a sério. A despeito dos maus exemplos dos atletas cristãos e das picuinhas dos burocratas ateus, o fato é que a Fé não depende nem da coerência daqueles nem do beneplácito destes para ser vivida. E vivê-la inclui professá-la em particular como em público — direito natural contra o qual nada podem as cartas de protesto enviadas por todos os comitês do mundo.

Os cruzados e os pregadores

Ontem um padre foi assassinado na França. Mais que isso: foi atacado enquanto celebrava Missa e barbaramente degolado por dois covardes muçulmanos. Não se pode dizer que a tragédia tenha sido inesperada; mesmo assim ela nos choca quando enfim acontece. Se a flecha que nós já conhecemos chega mais devagar, como canta Dante, nem por isso ela nos machuca menos quando — a despeito de tudo — nos atinge em cheio. É incrível: das coisas previsíveis nós deveríamos nos precaver. No entanto, apenas assistimos, atônitos, as tragédias que — de longe! — víamos avançar contra nós!

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O mais aterrador é saber que há quem tema que fatos assim sejam imputados indistintamente a todos os muçulmanos, mesmo aos pacíficos. Ora, este problema está posto em uma clave totalmente equivocada. A questão não é saber se há ou não há uma minoria radical muçulmana; a questão é saber, primeiro, se o islamismo deve ser enfrentado e, segundo, de que maneira se o deve enfrentar.

Que ele deva ser enfrentado é uma posição que encontra, graças a Deus, cada vez menos opositores — o discurso de Ratisbona já vai completar dez anos e nunca esteve tão atual. O passar dos anos tem nos mostrado que há um número cada vez maior de muçulmanos e que eles estão cada vez mais próximos de nós: são nossos compatriotas, nossos colegas de trabalho, nossos vizinhos. E se os nossos vizinhos têm um conceito tão importante quanto — por exemplo — «jihād», que evidentemente diz respeito às relações intersubjetivas entre os homens no seio da sociedade, não parece prudente tratar esta categoria como se não nos dissesse respeito. É preciso, sim, enfrentá-la. Se há um grupo de pessoas que acredita ter o direito — por vezes o dever — de nos impôr as suas crenças, está cada vez mais claro que não podemos tratar isso apenas como uma excentricidade que nós podemos ignorar. Não dá para ignorar. É preciso reconhecer o diferente que está do nosso lado; é preciso ouvi-lo e falar com ele.

E, evidentemente, é preciso por vezes impôr-lhe limites: a sanha expansionista do Islã, que nos atentados do ISIS revela a sua faceta mais desumana, precisa, sim, ser enfrentada pelo Ocidente, se o Ocidente quiser sobreviver. Isso é até pouco polêmico. O problema maior surge quando discutimos de que maneira a devemos enfrentar. Os próceres do relativismo dizem que é preciso distinguir o muçulmano normal do fundamentalista, para que não ataquemos de maneira indiscriminada pessoas inocentes. A preocupação é verdadeiramente estapafúrdia, e revela uma ignorância histórica que seria cômica se não fosse tão perigosa.

Porque sempre houve dois mouros: o dos negócios e o da guerra. O súdito e o soldado. O teórico e o prático. E com ambos sempre soube tratar a Cristandade, sem generalizações rasas nem distinções bizantinas. Santo Tomás pode até ter pensado certa feita em cruzar espadas com Averróis; pode até ter passado um dia pela cabeça de Ricardo Coração de Leão desafiar Saladino para uma disputatio universitária. Não há no entanto dúvidas de que um é um acadêmico e, outro, um militar; contra aquele a escolástica levantou tratados, contra este os nobres lançaram cruzadas. Ambos foram inimigos da Cristandade, mas as armas que ela empregou contra um e outro foram totalmente diferentes. Um é o mister do pregador; outro, o do cruzado. Não é só este o que atualmente faz falta; há uma indigência terrível, devastadora, clamorosa, de pregadores nos dias de hoje!

Há um clamor cada vez maior por cruzados. Sim, cruzados fazem falta; mas nem só de cruzados era composta a Cristandade. Sim, o mouro precisa ser combatido; mas é preciso saber de que modo o combater. Porque queremos, sim, fazer guerra contra os infiéis; mas não — sempre — a guerra das armas, não — necessariamente — a guerra dos soldados. É com idéias que as idéias se combatem; fossem os muçulmanos evangelizados, aliás, não precisariam ser hoje combatidos. Há hoje necessidade de cruzados, porque faltaram, e faltam, pregadores do Evangelho.

Mas as pessoas têm medo do sadio combate ao islamismo, porque pensam, primeiro, que as únicas coisas que os católicos sabem fazer contra os muçulmanos são as cruzadas; segundo, que as campanhas medievais contra os turcos eram, todas, uma espécie de pogrom voltado para o extermínio dos mouros. Ora, nada disso não faz o menor sentido.

As Cruzadas foram movimentos de guerra, ad extra, desempenhados em campo aberto, de peito aberto, cabeça descoberta, contra inimigos — atenção, que isso é importante — igualmente em guerra, igualmente em combate, igualmente armados e mortíferos. Não se trata (e nem nunca se tratou) de perseguir minorias pacíficas e indefesas. Eram a guerra dos homens livres e corajosos, com os reis à frente dos exércitos, sem alistamento militar obrigatório. Hoje, com soldados enviados à força para países estranhos, com máquinas voadoras não-tripuladas bombardeando alvos civis, aquelas coisas já não se compreendem; não cedamos, contudo, à fácil tentação de conferir maior incivilidade aos nossos antepassados que a nós próprios. O ius in bello nasceu muito antes do Tribunal de Haia, e tanto os reinos cristãos quanto os califados foram forças de agregação social das quais a ONU jamais chegou perto. Chesterton tinha razão quando disse que um soldado lutava mais por amor àquilo que protegia atrás de si do que por ódio ao que tinha à sua frente; e o guerreiro medieval talvez seja o melhor arquétipo deste soldado pintado pelo polemista inglês.

A Cristandade fez guerra contra o mouro, sim. Mas não a fez com a covardia com a qual, hoje, os bastardos de Baphomet atacam o Ocidente. Os atentados modernos aliás talvez nem mereçam novas cruzadas, porque os terroristas contemporâneos não são herdeiros dignos dos sarracenos que os nossos antepassados enfrentaram. Em campo aberto um dia o cruzado lutou com o mouro; a espada cristã e a cimitarra turca entrechocaram-se, a Cruz contra a Crescente, sob o sol de Deus. A guerra, a boa guerra, exige e pressupõe uma certa consideração mútua entre os adversários, um certo respeito entre inimigos — coisas em tudo ausentes nas saraivadas de balas disparadas contra jovens desarmados, nos caminhões lançados sobre transeuntes, nas facas decapitando sacerdotes durante a celebração da Santa Missa. Saladino ficaria envergonhado.

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E ainda mais: nem só de guerras viveu a Idade Média! É evidente que nem todo muçulmano é pessoalmente um homem-bomba; isso, no entanto, é completamente irrelevante. Há o mouro soldado e há o mouro simples fiel; se é verdade que devem ser ambos combatidos, não é menos verdade que o primeiro se combate com as armas e, o segundo, com as letras. Ninguém teve jamais dúvida disso. A pretensão de passar a fio de espada populações inteiras só poderia surgir do totalitarismo laico contemporâneo — dessa antropologia canhestra que, de tanto criticar o Antigo Testamento, incorporou os demônios que lá julgou encontrar. O que os homens modernos não parecem perceber é isto: ninguém vai ter tempo de hostilizar muçulmanos pacíficos se estiver em guerra contra muçulmanos belicosos. A Cruzada não é um pogrom. A Cruzada evita pogroms.

Até porque o muçulmano “funcional” — o fiel islâmico que, mais ou menos bem integrado ao país do Ocidente onde reside, cumpre com seus deveres cívicos e não é um elemento desagregador da sociedade — está para a República moderna assim como os antigos mouriscos para os reinos católicos. Ora, jamais se fez na Península Ibérica contra os mouros batizados a mesma guerra que se travou inclemente contra os otomanos no Mediterrâneo. O mundo moderno precisa aprender com os antigos como tratar o Islã; e a primeira coisa que ele precisa aprender é que nem toda interação cristã-muçulmana se deu nos moldes do Saque de Constantinopla!

Distinguir um mouro do outro, assim, é essencial para proteger os próprios mouros. Os muçulmanos pacíficos não estarão seguros enquanto os agressivos formarem, com eles, uma massa indistinta. E clamar contra a “islamofobia” (ou qualquer bobagem do tipo) diante do ISIS chacinando “infiéis” diariamente não é proteger os muçulmanos. É pô-los, a todos, sob constante suspeita. É impedir a sadia atuação distinta dos pregadores e dos cruzados. É reducionista e obtuso.

Mas distinguir um mouro do outro é fundamental também para os próprios cristãos: afinal, somente assim a posição deles se torna defensável — ou mesmo exequível. Cada combate precisa ser travado com as suas armas adequadas; e embora o Islã seja sem dúvidas o velho inimigo, uma coisa é o muçulmano rezando na mesquita e, outra, o muçulmano assassinando inocentes. Um se enfrenta com as armas da apologética; outro se combate com armas de fogo. Um demanda a força intelectual e, outro, a força física. Foi assim que sempre se fez. Não tem sentido conclamar uma guerra contra “o mundo árabe” assim, indistintamente, como se todo muçulmano devesse ser combatido da mesma maneira. É preciso compreender a unidade do inimigo, sim, para que se tenha clara noção da importância da guerra; mas é preciso distinguir o mouro do mouro, igualmente, para que os cruzados e os pregadores tenham cada qual o seu devido campo de atuação.

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Ontem um padre católico foi assassinado dentro de uma igreja, e é difícil imaginar que não tenhamos chegado ao ápice da pusilânime letargia ocidental. É de se esperar que, quem sabe?, agora a França — a filha dileta da Igreja — desperte do seu torpor. Os cães sarracenos tocaram num ungido de Cristo, profanaram uma igreja, derramaram o sangue de um padre diante do altar do Senhor, assassinaram um sacerdote do Deus Altíssimo! Será possível que a França continue inerte? Terão os franceses se esquecido do seu passado de glória? A gesta Dei per francos será somente uma expressão antiga, incapaz de inflamar nas almas francesas o amor a Cristo?

O sangue dos mártires é semente dos cristãos; ficará o testemunho do pe. Hamel sem frutificar? Quero crer que não. Que o Senhor Se levante para nos proteger; que desperte e tenha misericórdia de nós. Que suscite santos cruzados e santos pregadores, todos repletos de uma santa coragem, imbuídos da abnegação de consumir a própria vida a serviço de Cristo. O Ocidente precisa de santos capazes de fazer frente ao mouros. Cruzados que os impeçam de vitimar inocentes. Pregadores que os arrastem aos pés de Cristo Salvador dos Homens.

O massacre de Charlie Hebdo: combatemos por algo maior do que nós

Muito já se falou a respeito do horrível atentado que a redação da Charlie Hebdo sofreu ontem em Paris. No meio de uma infinidade de comentários (para dizer o mínimo) superficiais que inundaram os nossos meios de comunicação, gostaria de fazer um apanhado daquilo que considero mais relevante sobre o assunto.

A primeira coisa que acho importante desmistificar é essa necessidade doentia – socialmente exigida e, em alguns casos, até mesmo auto-imposta – de se “tomar partido”, de preferência o mais rápida e veementemente possível. Ora, não nos é necessário, absolutamente, escolher um lado entre os dois que se chocaram, ontem, na capital francesa! Sem dúvidas a comoção é enorme e, por conta disso, é razoável que o raciocínio se nos embote um pouco; contudo, é preciso resistir, e caminhar com bastante cuidado.

Porque, no afã de condenar a chacina estúpida, corre-se o risco de chancelar o deboche religioso que era a marca registrada da revista francesa. Não, nós não defendemos uma liberdade de expressão absoluta e intocável – que inclua o direito de agredir, ofender, escarnecer. Por outro lado, ao repudiar o escárnio da Charlie Hebdo, arriscamo-nos a justificar o assassinato cometido pelos terroristas. Não, nós não defendemos um direito de exterminar os que nos desagradam – segundo o qual os ofendidos possam sentenciar à morte e executar por conta própria os seus ofensores.

Aquilo que a revista se notabilizou por fazer não é humor nem liberdade de expressão, e sim agressão gratuita. Aquilo que os criminosos fizeram ontem em Paris não foi justiça nem defesa legítima, e sim violência absurda. Não é preciso achar lindo o que faziam os cartunistas assassinados para condenar com ardor o seu assassinato. Não é preciso considerar heróis os terroristas para rechaçar com vigor as charges cretinas que a revista satírica veiculava. Não aceitamos a blasfêmia. Mas tampouco aceitemos que a blasfêmia seja punida por particulares – muito menos com a morte.

Evidentemente, também não aceitamos as retaliações ligeiras, com mesquitas anonimamente atacadas à noite por exemplo. A tragédia não pode servir de trampolim para discursos superficiais que, procurando ad hoc responsáveis sobre os quais lançar a culpa do massacre, terminem por cristalizar lugares-comuns como “religião é violenta mesmo”. É evidente que os responsáveis por este crime brutal precisam ser responsabilizados. Infelizmente, parece não ser tão evidente assim que a culpa não pode ser coletivizada para “os muçulmanos” como um todo e nem muito menos para “os religiosos” em geral. Tal expediente irreligioso cretino, de instrumentalização de uma tragédia para alavancar a própria concepção ideológica, precisa – também ele – ser repudiado com a máxima diligência.

Uma outra coisa que precisa ser pontuada é esta: a França não foi palco de um episódio de intolerância religiosa, e sim de um choque de culturas. E, neste sentido, o melhor texto que li sobre o assunto foi escrito no final da década passada. Chama-se «O Islã e o Ocidente», é da lavra de Roger Scruton, é longo e vale cada parágrafo.

Em tempos de multiculturalismo, é preciso ter suficientes pés no chão para reconhecer a existência, em diferentes culturas, de determinados valores completamente incompatíveis entre si. Uma cultura como a ocidental que julgue poder escarnecer das crenças religiosas dos outros não pode conviver com uma outra cultura – como a islâmica – que considere um mandato divino, imposto a todo e qualquer fiel, punir com a morte os que blasfemem contra o Islã. É bastante evidente que ambas tendem à aniquilação mútua; e que, se nenhuma das duas abrir mão de [ao menos parte dos] seus valores, episódios como o de ontem vão se tornar recorrentes.

E a proposta do Scruton é a de que defendamos, abertamente, o patrimônio cultural ocidental frente aos que o ameaçam. Sim, eu sei que isso é mal visto nos dias de hoje, sei que recebe o rótulo depreciativo de “etnocentrismo”, sei que fomos ensinados, de maneira repetida e consistente, desde crianças, a odiarmos aquilo que somos e a desprezarmos as nossas raízes. No entanto, essa atitude é suicida. Nas sociedades, como na natureza, não existe o vácuo. Se os homens não estiverem dispostos a moldar a sociedade de acordo com os seus valores próprios, então ela será moldada pelos valores dos que primeiro tiverem a ideia de os apresentar em praça pública. Se os súditos não forem ensinados a honrar os deuses dos seus antepassados, então eles serão levados a honrar os deuses dos estrangeiros. É assim que o mundo funciona. Já não é mais possível continuar se recusando obstinadamente a o reconhecer.

Tudo isso quer dizer, em suma, que nós estamos em guerra. Não é possível fingir que tudo está na mais perfeita paz e concórdia, porque não está. No entanto, há três coisas sobre esta «guerra» que é preciso deixar claro.

Primeiro, e antes de qualquer outra coisa, que se trata de uma guerra cultural a ser travada no campo das ideias. Isso é bastante evidente, e é preciso rejeitar com veemência todas as tentativas que surjam de estabelecer analogias, ainda que remotas, entre os atos de violência dos terroristas islâmicos e o dito «fundamentalismo» cristão – que geralmente outra coisa não é que «ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja», a propósito. Sim, queremos fazer prevalecer as nossas ideias. Isso não permite concluir, de nenhuma maneira, que queiramos exterminar fisicamente os que pensam diferente de nós.

Segundo, e no mesmo sentido, que discordância não é necessariamente sinônimo de agressão. E, em contrapartida, viver em sociedade não exige necessariamente que as pessoas guardem as suas convicções para si próprias. É lógico que a sociedade precisa caminhar em relativa ordem, mesmo com a presença de múltiplos sistemas de valores em seu interior: isso é óbvio. No entanto, é também evidente, e empiricamente verificável, que a maior parte das pessoas não joga bombas naqueles de quem discorda mesmo visceralmente. Inibir o debate público dos valores não é o mesmo que resguardar a convivência tolerante entre os diferentes, mas justamente o contrário: é deixar o espaço livre para os valores que não respeitem essa regra de auto-contenção. O islamismo é aqui somente o exemplo mais radical: traços dessa “publicização axiológica”, contudo, podem ser encontrados em menor grau também nos laicismos ocidentais.

Terceiro, e por fim, que a vitória nesta guerra é já humanamente impossível. Os valores ocidentais já estão moribundos por conta da longa guerra travada contra a Igreja ao longo dos últimos séculos, e a cultura judaico-cristã parece não encontrar mais uma massa crítica disposta a defendê-la. Os ocidentais envelhecem e morrem impondo-se um controle de natalidade anti-natural que os está conduzindo à extinção, enquanto os muçulmanos povoam o mundo a partir do ventre de suas mulheres. O futuro é sombrio. No entanto, nós mesmo assim precisamos lutar, porque não combatemos pela vitória e sim pela justiça da batalha. Não devemos nos preocupar com as adversidades que existem e nem devemos nos perturbar com os ventos que sopram contra nós: defendemos os nossos ideais por acreditarmos que eles estão corretos, e não porque eles tenham uma chance razoável de se tornarem hegemônicos dentro do horizonte de nossas vidas. Eles muito provavelmente não têm, mas mesmo assim cumpre defendê-los com valentia. Combatemos por algo maior do que nós, e esse é o diferencial que temos em nosso favor. Não é por nós, e sim ad majorem Dei gloriam.

Deus nos vê; combatemos por Ele e por Sua santa Religião, combatemos pela Igreja por Ele fundada, combatemos pelas glórias da Santíssima Virgem. Deus vê, e Ele é Senhor da história, e isso nos deve bastar. As guerras culturais não se vencem pelo poder das armas, e sim pela força das idéias. Talvez, se rezarmos bastante e trabalharmos com afinco, Deus torne o nosso apostolado fecundo. Talvez, se nos esforçarmos e n’Ele confiarmos, Ele conceda graças para que os homens O vejam e, abandonando as fábulas do mundo moderno, n’Ele creiam. Talvez Ele intervenha, e mude a nossa sorte.

Mas talvez não. Talvez só vejamos a Igreja em Seu esplendor na outra vida – quem sabe? Talvez tenhamos mesmo que atravessar tempos tenebrosos à nossa frente: não importa. A cada um cabe fazer a sua parte, e a nossa é defender, com todas as nossas forças, a Fé dos que nos precederam, a Fé que recebemos dos Apóstolos. Ainda que talvez não vejamos o resultado dos nossos esforços, nada que se faz por amor de Deus é em vão. Isso nos deve ser suficiente. No calor do campo de batalha, isso nos deve bastar.

O Papa Francisco e o Ramadã

Somente uma curiosidade. Não sei desde quando a Santa Sé envia cumprimentos aos muçulmanos por ocasião de suas festividades; na página do «Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso», a mais antiga mensagem «por ocasião do fim do Ramadã» é de 1978. Trinta e cinco anos atrás. E ela se inicia dizendo – já em 1978 – que «[h]á muito (…) o Secretariado para os Não-Cristãos existente no Vaticano tomou o feliz hábito de manifestar aos seus amigos muçulmanos, por ocasião do encerramento do jejum do Ramadão, os seus votos mais sinceros e os seus mais ardentes desejos, rogando ao mesmo tempo a Deus que lhes conceda paz e prosperidade». O costume não é portanto muito recente.

Este fato, sozinho, mostra que a justificativa do sr. Magdi Cristiano Allam para abandonar a Igreja é completamente furada: a Igreja já se relacionava diplomaticamente com os muçulmanos três décadas antes dele ser batizado. Se ele depois decidiu romper com a Igreja, decerto não foi por conta de alguma mudança da parte d’Ela em suas relações com o Islã.

Também este ano o Papa Francisco enviou uma mensagem, na mesma ocasião, «aos muçulmanos no mundo inteiro». Coisa esperada. Protocolar. Vieram, como era esperado, os comentários maledicentes. Não faltou quem dissesse que São Francisco de Assis foi ter com o sultão maometano para instá-lo a aceitar o Evangelho, enquanto que o Papa Francisco escrevia aos muçulmanos para lhe desejar um bom Ramadã. No entanto, a mensagem deste ano contém o seguinte interessante período (grifos meus):

Obviamente, ao manifestar respeito pela religião do próximo ou ao transmitir-lhe os bons votos por ocasião de uma celebração religiosa, simplesmente procuramos compartilhar a sua alegria, sem fazer referência ao conteúdo das suas convicções religiosas.

Que me conste, é a primeira vez que um Papa “justifica” uma dessas mensagens diplomáticas da Santa Sé. Ele diz, com todas as letras, que não se pode inferir delas nenhuma espécie de juízo da Igreja sobre o conteúdo das convicções religiosas daqueles a quem se destinam. Portanto, elas não servem para “provar” que a Igreja passou a considerar o Islã uma religião verdadeira. Doravante, a desonestidade intelectual dos que as utilizarem como “evidências” de uma suposta mudança de posição doutrinária da Igreja Católica frente ao Islã estará manifesta.

Que me conste, João Paulo II e Bento XVI nunca fizeram esse tipo de esclarecimentos. Não que precisassem dizer o óbvio, pois não podem existir duas religiões verdadeiras. Mas é curioso que justamente o Papa Francisco, explicitamente preocupado com o «respeito pela religião do próximo», tenha feito questão de deixar claro que respeito é respeito, e indiferentismo é indiferentismo. Respeitar não é aceitar. E conviver pacificamente não é sinônimo de aprovar convicções religiosas de ninguém.

Miscelânea: manuscritos, Beleza, divórcios, senso comum, ateísmo

– A descoberta de uma Bíblia de 1500 anos, dizem, «preocupa [o] Vaticano». Por quê? Por se tratar de um «original» (sic) do «Evangelho de Barnabé» que, entre outras coisas, teria previsto «a vinda do profeta Maomé, mostrando a verdade da religião do Islã» (!).

Como é possível que um manuscrito «do século V ou VI» possa ser o «original» de Barnabé se este viveu no século I da Era Cristã é um mistério que está para muito além da capacidade de entendimento dos meros mortais. Afora esse prodígio verdadeiramente portentoso, contudo, não há nada de novo na descoberta. O Evangelho de Barnabé (inclusive com a suposta profecia sobre o Islã) já é conhecido. A única coisa digna de nota aqui é a data: a dar crédito às notícias, o manuscrito recém-descoberto seria de um século antes do próprio nascimento de Maomé. A julgar pelo que já se sabe do livro, contudo, isto seria claramente impossível. Provavelmente estamos diante de mais uma falsificação, com a qual não é necessário desperdiçarmos o nosso tempo.

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– O culto à feiura no mundo revolucionário – merece (e muito) uma leitura. «Tragicamente, nosso mundo não reconhece sequer o que é o feio. Já dissemos que a beleza é aquilo que quando visto agrada e, portanto, o lógico seria que o feio fosse aquilo que quando visto desagrada. Mas olhem para a nossa sociedade, na qual o que agrada é o macabro, o esquisito, o torto e o deformado; na qual, por muitos anos, a peça mais popular de cinema — número um durante semanas — foi um filme sobre um canibal. São o mal e o feio que agora deleitam. Bem-vindos ao bravo novo mundo: o que em outra época teria sido chamado de mau agora é qualificado como bom, e o que era considerado feio é agora considerado bonito».

Nestes tempos em que mesmo a nossa arquitetura sacra é destituída do mais elementar senso estético, encontrar um padre defendendo o valor da Beleza é um verdadeiro refrigério. Ouçam-no! No meio do turbilhão de valores em que vivemos, é a Beleza que salvará o mundo.

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– Este texto do Ad Hominem conclama à leitura de “Claro Escuro”, de Gustavo Corção. Faço coro ao pedido; a coletânea de artigos do grande jornalista foi uma das leituras mais prazerosas e instrutivas sobre o assunto que eu já fiz na minha vida. O transcurso dos anos não foi capaz de mitigar o impacto que as palavras de Corção ainda hoje provocam em mim; ainda hoje, leio-o com o deslumbramento de quem estivesse lhe pondo os olhos pela primeira vez. Não são todos os autores os que são capazes desse prodígio.

Para exemplificar isto que estou tentando dizer, trago apenas um excerto do excerto trazido pela Day Teixeira, enfaticamente recomendando aos meus leitores que procurem a íntegra da obra:

Assim como se abrem os olhos [da criança] para o jogo das leis naturais, abrem-se também para essa realidade de pedra que a protege, que a envolve, como paredes de uma casa viva. Por isso, a separação dos cônjuges terá para a criança um aspecto de alucinação. Não se trata apenas de um afastamento livremente consentido de duas pessoas que livremente se uniram. Não será apenas a quebra de um juramento ou a rescisão de um contrato. A separação dos pais, para a criança, é um absurdo. Não é um drama moral, é uma tragédia cósmica. Não é conflito de duas pessoas, é conflito dos elementos constitutivos do universo. O mundo enlouqueceu se os pais se separam. Na mente infantil, a repercussão afetiva e intelectual significa um abalo de todas as fundamentais experiências até então colhidas. É como se a água deixasse de molhar, o sol deixasse de brilhar, a pedra deixasse de ser dura. Não é muito difícil extrapolar as consequências de tão brutal experiência: os psiquiatras estão aí para dizer no que dão os filhos do divórcio.

Sensacional.

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– “A filosofia do senso comum”, na Revista Vila Nova. Dentre os quatro «elementos fundamentais do senso comum» que Chesterton coloca como premissas necessárias à compreensão das coisas ao nosso redor, destaco um:

2. Todo homem em sã consciência, acredita não somente que este mundo existe, mas também que ele tem importância. Todo homem acredita que há, em nós, um tipo de obrigação de nos interessarmos por esta visão da vida. Não concordaria com alguém que dissesse, “Eu não escolhi esta farsa e ela me aborrece. Fiquei sabendo que uma senhora idosa está sendo assassinada no andar de baixo, mas eu vou é dormir”. O fato de que há um dever de melhorar coisas não feitas por nós é algo que não foi provado e não se pode provar.

E este «dever de melhorar coisas não feitas por nós» é talvez um dos elementos mais indispensáveis à vida em sociedade. No entanto, que importância se lhe dá hoje em dia…? De tanto serem cerceadas as investigações sobre a sua gênese, talvez um dos maiores desafios atuais seja limitar o efeito social deletério dos que, de tanto se desinteressarem por essas coisas, chegam a negar a sua própria existência.

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«Na primeira condenação no Brasil por discriminação contra religiosos, a justiça condenou este ano a rede de televisão Bandeirantes depois que um de seus apresentadores afirmou que o assassinato de uma criança só podia ter sido cometido por ateus, também acusados por ele “da guerra, da peste, da fome e de tudo o mais”».

Trata-se de uma matéria do Diário de Pernambuco sobre o ateísmo, e a condenação à qual ela se refere é a que o Datena sofreu por conta de denúncia da Atea. Já a conhecia, mas ainda não atentara para o fato de que o ateu foi beneficiado pela lei que proíbe a «discriminação contra religiosos». De fato, no relatório da referida sentença, há o seguinte:

Este atuar, no entendimento do autor, extrapola os limites da liberdade de expressão, estando tipificado penalmente no artigo 20, parágrafo 2°, da lei 7.716-89.

E o que é que diz o Art. 20 da 7716/89? Simplesmente tipifica o crime de «[p]raticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional». Ora, como ateísmo evidentemente não é “raça”, “cor”, “etnia” e nem “procedência nacional”, segue-se que a única discriminação que o apresentador da Bandeirantes pode ter cometido é a de «religião». Quando lhes convém, os ateístas aparentemente não têm nenhum problema em serem contados entre os religiosos.

Não deixa de ser irônico. Quando nós dizemos que o ateísmo é claramente uma posição religiosa com no máximo tanto valor quanto qualquer outra religião da humanidade, começa a chover ateísta protestando. No entanto, quando a religião ateísta se sente ofendida em cadeia nacional, a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos não se faz de rogada e passa a exigir que seja aplicada em seu favor uma lei que proíbe o preconceito de «religião».

Papa Francisco e os ateus, filhos de Deus

A motivação deste post me vem de duas fontes distintas. Uma diz que o Papa “confundiu” pro multis e pro omnibus; a outra, que o Papa afirmou a heresia da salvação universal. Aos que tenham se sentido confusos com estes artigos (ou outros análogos), oferecemos este contraponto, esperando que possa ser útil.

Quanto ao primeiro texto, a resposta é imediata: uma coisa é a redenção objetiva e, outra, a redenção subjetiva. Aquela diz que o Santíssimo Sangue de Nosso Senhor derramado na Cruz do Calvário é suficiente para a salvação de todos os homens; esta, que – não obstante – os méritos de Cristo são eficazes apenas para os que aceitam voluntariamente o Sacrifício Vicário de Cristo, por meio da Fé e dos Sacramentos. A primeira é o pro omnibus e, a segunda, o pro multis. Afirmar a precisão histórica desta no contexto das palavras da Consagração que Cristo ensinou aos Seus apóstolos na Última Ceia não é (nem de longe!) a mesma coisa que sustentar ser aquela herética em qualquer contexto em que seja empregada. Aliás, é o próprio Bento XVI quem o afirma, em carta enviada há pouco mais de um ano à Conferência Episcopal Alemã (grifos meus):

Isto põe em evidência um elemento muito importante: a tradução «por todos» de «pro multis» não era, de facto, simples tradução, mas uma interpretação. Esta tinha seguramente fundamento, e continua a tê-lo; contudo é mais do que uma tradução, é já interpretação.

[…]

Porventura o Senhor não morreu por todos? O facto de Jesus Cristo, enquanto Filho de Deus feito homem, ser o homem para todos os homens, ser o novo Adão faz parte das certezas fundamentais da nossa fé. Sobre este ponto, queria apenas recordar três textos da Escritura. Deus entregou seu Filho «por todos»: afirma Paulo na Carta aos Romanos (Rm 8, 32). «Um só morreu por todos»: diz-se na Segunda Carta aos Coríntios, ao falar da morte de Jesus (2 Cor 5, 14). Jesus «entregou-Se a Si mesmo como resgate por todos»: está escrito na Primeira Carta a Timóteo (1 Tm 2, 6). Mas então devemos, ainda com maior razão, pôr-nos a questão: Se isto é assim claro, porque é que na Anáfora Eucarística está escrito «por muitos»? O motivo é que a Igreja tomou esta formulação das narrações da Instituição no Novo Testamento. Ela diz assim por respeito à palavra de Jesus, para se Lhe manter fiel até mesmo nas palavras. O respeito reverencial pela própria palavra de Jesus é a razão de ser da formulação da Anáfora Eucarística.

Portanto, não há absolutamente nenhum problema em afirmar que Cristo morreu «por todos» nós. Aliás, o próprio texto da Montfort indicado no Blog do Angueth explica a diferença entre redenção objetiva e redenção subjetiva, donde se vê que a estranheza do professor manifestada em seu artigo, data venia, é incompreensível.

Quanto ao segundo texto, digo o seguinte:

Primeiro, que não há problema algum em afirmar que Nosso Senhor “ampliou os horizontes” dos discípulos. É aliás óbvio que Ele fez isso, posto que a alternativa é pretender que os Apóstolos sempre souberam tudo e Nosso Senhor nada teve a lhes ensinar! Claro que Cristo corrigiu muitas das idéias erradas dos discípulos e mesmo dos Apóstolos, os Evangelhos estão cheios de exemplos disso. Absurdo (e aliás herético) seria afirmar que Nosso Senhor incutiu idéias erradas nos Apóstolos, e não que Ele corrigiu os pensamentos errados que os Apóstolos tinham.

Segundo, que os católicos jamais mataram em nome de Deus, pelo menos não nos eventos históricos que costumam ser evocados como exemplo disso (v.g. Inquisição e Cruzadas). Aliás, parece-me claro que o Papa não está pensando na história da Igreja ao fazer esta crítica, porque ele vai mais fundo e diz que isso «é simplesmente uma blasfêmia». Ora, como o Antigo Testamento está repleto das guerras de Israel e das prescrições divinas para a morte dos corruptores da religião judaica, é claro que o Papa Francisco não pode estar chamando de «matar em nome de Deus» coisas como a Guerra Justa ou a pena de morte legitimamente aplicada aos falsificadores da Religião Verdadeira. A alternativa – outra vez absurda – é sustentar que o Papa estaria dizendo que o Antigo Testamento é «simplesmente uma blasfêmia», e a hipótese de que o líder máximo da Igreja Católica possa ter em tão repugnante conta [mais da] metade do livro sagrado da sua religião simplesmente não faz sentido para ninguém que pretenda manter intacto seu senso de realidade.

Ao invés, existe uma certa religião que – aí sim – é conhecida por “matar em nome de Deus”: trata-se do Islã, cuja Jihad faz até hoje tantas vítimas entre aqueles que não aceitam prostrar-se diante de Allah e seu profeta, e portanto é muito mais razoável supôr que foi a esta que o Papa Francisco dirigiu as suas imprecações. Considerando isso, e dado que hoje em dia não existe nenhum indivíduo ou grupo católico que pretenda (mesmo em teoria!) matar não-católicos em nome de Deus (*), a hipótese de que o Papa esteja se referindo a um comportamento inexistente nos dias de hoje unicamente para desmoralizar a Igreja Católica (!) carece de verossimilhança.

[(*) O IRA, que é o exemplo que poderia ser citado para negar a minha afirmação, não se encaixa aqui pois i) não conta com o apoio da Igreja; ii) usa o elemento religioso – isso quando o usa… – unicamente como pretexto para disfarçar conflitos políticos; e iii) não faz parte do contexto próximo ou remoto da homilia pontifícia. No entanto, mesmo admitindo que o Papa pudesse estar pensando no Exército Republicano Irlandês quando condenou o «matar em nome de Deus», ainda assim as suas colocações seriam legítimas e pertinentes e a) nem autorizariam “retroagir” sua condenação para abarcar também eventos católicos do passado e b) nem deixariam de valer como crítica às outras religiões que ainda hoje fazem guerra «em nome de Deus».]

Terceiro, que Deus morreu por todos os homens sim, como foi explicado acima, e que o Sangue d’Ele é suficiente para redimir o mundo inteiro sim, embora isso naturalmente não signifique que todas as pessoas vão inexoravelmente se salvar sem fazer nada para isso.

Quarto, que a filiação de Deus é dupla: por um lado recebemos a filiação divina pelo Batismo sim e não sem ele, mas por outro todos os seres humanos – mesmo os ateus – somos filhos de Deus por conta da nossa inteligência e nossa vontade, que são a imagem de Deus em nós. Assim nos ensina São Pio X no Terceiro Catecismo da Doutrina Cristã (negritos meus):

285) Por que podemos nós dizer que somos filhos de Deus?

Somos filhos de Deus:

1º porque Ele nos criou à sua imagem e nos conserva e governa com a sua providência;
2º porque, por especial benevolência, Ele nos adotou no Batismo como irmãos de Jesus Cristo e co-herdeiros, juntamente com Ele, da eterna glória.

Portanto, mesmo os ateus são filhos de Deus, porque Ele os criou à Sua imagem e os conserva e governa com Sua providência. Destarte, o Papa não disse nenhuma novidade – apenas repetiu um ensinamento tradicional da Igreja – quando lembrou que, em certo sentido, mesmo os que não crêem são filhos de Deus.

Por fim, quinto, que é verdadeiramente espantoso não se ter percebido o mais importante desta homilia, que é o seguinte: quando o Papa diz que «todos nós temos o dever de fazer o bem» e que isso «não é uma questão de fé, mas um dever», ele está lançando um duro ataque contra a ditadura do relativismo e explicando que não é porque fulano ou sicrano crê ou deixa de acreditar que ele pode se considerar eximido de seguir os ditames morais que valem para todos! Ora, num mundo em que os hipócritas clamam o direito de casar homem com homem porque não são católicos e em que dizem à Igreja para que Ela não imponha a Sua proibição ao aborto àqueles que não comungam da Fé Católica, afirmar que até os ateus têm o dever moral de fazer o bem é um duro golpe no ateísmo mesmo e o sepultamento definitivo do relativismo moral que grassa nos dias de hoje.

Este ensinamento não é só verdadeiro: é tremendamente oportuno. Se não percebem isso aqueles que por um lado louvam o Papa por ter alegadamente aberto o Céu aos ateus e por outro aqueles que o criticam por supostamente ter negado a Igreja fundada por Cristo, é porque estão mais preocupados com os seus pré-julgamentos do que com a compreensão serena e desapaixonada daquilo que o Vigário de Cristo tem para nos dizer.

Jesus e os Muçulmanos

[Reproduzo narrativa sobre um Milagre Eucarístico ocorrido na Palestina no ano de 1879. Não o conhecia, e tampouco sei quem é o autor do livreto aqui reproduzido; encontrei-o no Adversus.

Este tipo de milagre não é novidade na história da Igreja; já no século XIII Santo Tomás de Aquino se referia aos casos em que “um menino” aparecia miraculosamente no Santíssimo Sacramento (Summa IIIa, q.76, a8). E o Aquinate dizia que, nestes casos, a Hóstia Consagrada «permanece verdadeiramente o Corpo de Cristo», digna de toda Glória e adoração. Bendito seja Deus no Santíssimo Sacramento do Altar.]

As agressões contra o islamismo e contra o Cristianismo

Em tempos onde fazer um filme amador ridicularizando a figura de Maomé provoca violentos protestos mundo afora, em cuja decorrência já foram mortas pelo menos 50 pessoas, é no mínimo curioso ver a recente capa da revista Placar onde uma imagem de um jogador de futebol pregado numa cruz faz uma debochante referência a Cristo Crucificado.

[A propósito, independente das minhas considerações abaixo, vale a pena seguir a recomendação do texto acima linkado: «[a]cessem a página da revista Placar em que se encontra a notícia da capa e deixem seu comentário. Divulguem para outras pessoas e peçam que façam o mesmo. Não deixem isso passar em branco. E vamos esperar para ver se nossos amigos politicamente corretos dedicarão suas excelsas atenções a esse fato».]

Vou até admitir que o autor da peça publicitária tenha querido apenas fazer uma simples jocosidade inocente. É possível. O que sem dúvidas não é possível, a menos que a capa tenha sido obra de um alienígena ou de alguém recém-saído de um coma profundo que não teve tempo de passar a vista pelos jornais mundiais, é imaginar que esta capa não tenha nenhuma relação com a “guerra santa” que os muçulmanos estão neste momento travando contra o Ocidente por conta do filme de Maomé.

É como se fosse uma tentativa infantil de auto-afirmação. Os [auto-intitulados] Iluminados da Razão gostam de debochar da fé alheia (isto, aliás, faz parte do plano deles de minar a influência religiosa nos povos por meio da dessacralização midiática das coisas sagradas, o que torna os homens menos susceptíveis a levá-las a sério; mas isto é um outro assunto) e, quando os muçulmanos gritaram mais alto e todo mundo começou a ficar pianinho, com medo e com o rabinho entre as pernas, eles se sentiram humilhados e não gostaram. E já que não têm cojones para peitar o fundamentalismo islâmico, vêm aliviar a sua consciência por meio destes pogrons pseudo-intelectuais contra o Cristianismo. Como se dissessem uns para os outros “viu, a gente não precisa se preocupar, a gente ainda pode fazer piada com a religião dos outros sim, está tudo sob controle”.

A cena me parece comicamente com aquela do início de “Procurando Nemo”, onde o peixe emburrado vai nadando em direção à âncora só porque seu pai lho proibiu, e toca-a com a barbatana unicamente para desobedecer ao pai que acabara de lhe dizer que não a tocasse. É como se alguns meninos tivessem sido atacados por lobos selvagens nos quais brincavam de atirar pedras, e aí voltam pra casa e vão chutar os cães de guarda dos seus pais para, por algum processo de substituição psicológica, vingar nestes a dor das mordidas que sofreram daqueles. Acontece que é uma péssima idéia maltratar os cães domésticos da casa quando há lobos raivosos à ronda. Mesmo que as crianças mimadas não percebam isso.