Pode um papa ir contra um santo?

Determinado site de jornalismo político denunciou recentemente, da forma lacônica que lhe é peculiar, que o Papa Francisco anulou uma decisão de João Paulo II. E em seguida perguntou, de maneira capciosa, sofística, se o papa poderia ir contra um santo.

Trata-se de pergunta verdadeiramente disparatada. O padre Ernesto Cardenal está com 94 anos, no leito de morte, e recentemente pediu, por intermédio do núncio da Nicarágua, a sua reabilitação canônica. Estava suspenso a divinis desde 1983. Não existe motivo absolutamente nenhum para se negar a reconciliação com a Igreja a um moribundo que a vem humildemente pedir. As penas eclesiásticas têm objetivo medicinal e servem para salvar almas, não para aprovar ou desaprovar movimentos políticos.

Repita-se: Ernesto Cardenal está à beira da morte e pediu à Igreja que suas sanções canônicas, justamente impostas por João Paulo II, fossem retiradas. Ora, o perdão concedido ao pecador arrependido não significa, em nenhum lugar do mundo e sob nenhuma lógica, uma chancela do pecado. Se fosse assim, pecador nenhum poderia pleitear jamais a reconciliação com a Igreja. Se fosse diferente, e se fosse lícito à Igreja de Cristo fechar as Suas portas a uma alma que Lhe vem suplicar misericórdia no fim da vida, então esta não seria a Igreja fundada por Deus para conduzir os homens à salvação.

Se até de Voltaire já se cogitou dizer que tivesse morrido no grêmio da Santa Igreja, mesmo que a documentação a este respeito seja parca e duvidosa, por que nos deveria espantar que volte ao seio da Igreja de Roma um sacerdote que sabidamente requereu a sua regularização? Oras, o que o Papa — qualquer papa! — deveria fazer em uma situação assim? Dar as costas a Ernesto Cardenal por conta de seu passado? Se, à conta do nosso passado, Cristo nos desse as costas para sempre, quem haveria de resistir? Quem poderia permanecer católico?

Frise-se que a retirada da censura canônica, nas presentes circunstâncias, não tem nenhuma conotação de apoio ao marxismo pretensamente católico da teologia da libertação. É, aliás, exatamente o contrário: é exatamente por ser censurável a atividade política desempenhada por Ernesto Cardenal que ele precisou, hoje, à beira da morte, pleitear a sua reabilitação. O próprio pe. Cardenal sabe-o e o reconhece: se não o reconhecesse, se continuasse acreditando que estava correto em 83 e a Igreja estava errada, então não teria pedido para se regularizar. O próprio ato de pedir o perdão da Igreja carrega, em si mesmo, o repúdio e o rechaço aos erros do passado. É assim que funcionam as coisas no Catolicismo; e é preciso muito mundanismo para não ser capaz de o perceber.

A imagem do padre Cardenal paramentado no seu leito de morte não apaga aquela outra, famosa, de São João Paulo II, ríspido, censurando-lhe com o dedo na face. Ao contrário, complementa-a maravilhosamente: aquela censura, enfim, mais de três décadas depois, deu os seus frutos. O sacerdote orgulhoso, que preferiu romper com a Igreja a abandonar os seus projetos políticos mundanos, hoje roga a essa mesma Igreja que lhe permita morrer em paz com Ela. O sacerdote que um dia deu as costas a um Papa hoje estende as mãos a um outro Papa para suplicar misericórdia. O mundo dá voltas; a Cruz permanece.

O Antagonista pergunta se um papa pode ir contra um santo. Ora, mas que papa está indo contra que santo? São João Paulo II, naquele longínquo ano de 1983, quis que o pe. Ernesto Cardenal largasse a militância política para se reconciliar com a Igreja — exatamente o que ele faz, agora, passados 35 anos. Nenhum papa está indo contra santo algum; aceitando de volta a ovelha desgarrada, o pecador arrependido, o Papa Francisco está levando à perfeição aquilo que São João Paulo II iniciou na Nicarágua. O remédio amargo da suspensão canônica finalmente produziu efeitos. Louvado seja Deus.

A Igreja existe para salvar as almas. O Papa João Paulo II seria o primeiro a receber, com alegria, de braços abertos, qual pai amoroso, um maltrapilho padre Ernesto que retornasse, arrependido, após tenebrosos anos longe de casa. É o que acontece hoje. Retirando as censuras do sacerdote nicaraguense, longe de contrariá-la, o Papa Francisco na verdade honra a memória do santo Papa polonês.

Nova redação do Catecismo sobre a pena de morte

A respeito da recente alteração do parágrafo 2267 do Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte, sem a menor pretensão de esgotar o assunto, diga-se apenas, preliminarmente, quanto segue:

  1. Um catecismo é um resumo da Fé Católica; é um texto, por excelência, pedagógico, que se propõe a apresentar de maneira orgânica a Doutrina da Igreja, conforme interpretada pelo Seu Magistério. Rigorosamente falando, um catecismo não é fonte magisterial, mas instrumento de exposição doutrinária.
  2. Assim, o Catecismo não é nem “falível” e nem “infalível”: simplesmente essas categorias não se aplicam a ele. A infalibilidade é uma nota do Magistério da Igreja, que tem os seus meios próprios de manifestação. Assim, por exemplo, o Magistério Pontifício pode se manifestar através de uma Carta Encíclica (veículo de exercício do magistério papal por excelência): um catecismo pode (e deve) apresentar de maneira orgânica e acessível o conteúdo das encíclicas papais, mas o que é “Magistério”, a rigor, são as encíclicas e não o catecismo. Catecismos e suas formulações são contingentes, ao passo que a Doutrina é imutável.
  3. Ou seja, um catecismo não possui autoridade por si só. A Doutrina Católica apresentada por um catecismo, qualquer que seja ele, somente é infalível na medida em que o Magistério que lhe subjaz é, ele próprio, infalível. A rigor, o Catecismo não obriga à Fé: o que obriga são os documentos magisteriais que embasam o Catecismo.
  4. Mudanças na formulação de algum ponto de um catecismo, assim, não têm característica de aprofundamento doutrinário. Simplesmente não podem ter, porque a doutrina se aprofunda pelo labor orgânico do Magistério, e jamais pela forma eventualmente escolhida para a sua exposição pedagógica. A mudança na redação de algum ponto do Catecismo deve, necessariamente, encontrar o seu fundamento no exercício do Magistério que precede a modificação do texto, não podendo a simples reescrita de um parágrafo funcionar como sucedâneo de um ato magisterial.
  5. Isso significa que eventuais dificuldades suscitadas pela formulação de algum parágrafo do Catecismo devem ser resolvidas nas referências magisteriais que digam respeito ao ponto controverso. O Catecismo não esgota a Doutrina nem a substitui.
  6. A nova redação do parágrafo 2267 provocou uma enorme e desnecessária confusão sobre a pena de morte; isso porque o texto mistura aspectos principiológicos com questões contingentes, substituindo a redação anterior, que era boa e clara, por uma bastante inferior e confusa.
  7. Diga-se, antes do mais, que a Doutrina da Igreja a respeito da pena de morte não mudou. Não mudou, primeiro porque Doutrina não muda e, segundo, porque redação de parágrafo de catecismo não é veículo idôneo para desenvolvimento doutrinário. Assim, a posição da Igreja a respeito do assunto há forçosamente de ser, hoje, após a nova redação do parágrafo 2267, rigorosamente a mesma da semana passada, quando ainda vigente a redação antiga. Não entender isso é desconhecer os rudimentos da Doutrina Católica.
  8. A nova redação, injustificadissimamente, substituiu a referência à Evangelium Vitae, Encíclica que fala especificamente sobre a inviolabilidade da vida humana, por um discurso do Papa Francisco onde o tema da pena de morte é mencionado en passant. Ora, à toda evidência, remover a referência à Evangelium Vitae não tem o condão de revogar a Carta Encíclica, de modo que ela permanece sendo o referencial doutrinário válido, vigente e autorizado sobre o assunto.
  9. A referida Carta Encíclica dizia (n. 56) que a pena de morte não devia ser aplicada «senão em casos de absoluta necessidade», os quais, «graças à organização cada vez mais adequada da instituição penal, (…) são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes». Em outras palavras, o fundamento da não-aplicação da pena capital hoje é a «organização cada vez mais adequada da instituição penal», e não uma suposta “inadmissibilidade intrínseca” da pena de morte.
  10. Ou seja, ao contrário do que dá a entender a novel formulação do parágrafo 2267, in finis, do Catecismo da Igreja Católica, a pena de morte é inadmissível não simpliciter, mas apenas secundum quid: na medida em que existem «sistemas de detenção mais eficazes» e em que se disseminou «uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado», então a pena de morte é inadmissível. Fora dessas condições, não.
  11. Esses fundamentos, como salta aos olhos, são intrinsecamente contingentes: podem existir hoje e, amanhã, não mais se verificarem, como também podem não ser rigorosamente os mesmos nos diversos países do globo. Ademais, um Catecismo versa precipuamente sobre doutrinas e não sobre situações de fato, estas as quais são, por sua própria natureza e ao contrário daquelas, extremamente mutáveis. 
  12. Que a carta da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o tema não discorra sobre estes assuntos tem pouca importância: principalmente no âmbito do Catolicismo, as coisas não deixam de existir se as pessoas silenciam sobre elas. E, principalmente!, apesar de o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé falar várias vezes em «desenvolvimento da doutrina», na verdade não existe aqui desenvolvimento algum. O juízo prático sobre a aplicação de tal ou qual pena em determinadas situações concretas é, em essência, um juízo prudencial e não doutrinário. Além do mais, a doutrina, se se desenvolve, só o faz de maneira orgânica e harmônica, e não negando hoje o que até ontem afirmava.
  13. Se o objetivo das autoridades eclesiásticas é, hoje, «empenha[r]-se com determinação a favor da sua [da pena de morte] abolição em todo o mundo» (CCE, 2267), elas têm todo o direito de fazê-lo — e, aliás, já o vinham fazendo há muitos anos mesmo com a antiga redação do Catecismo, como a carta de D. Ladaria exemplifica fartamente. Não era absolutamente necessário proceder a esta modificação confusa em um texto de referência catequética para se colocar contra a pena de morte no Ocidente do século XXI.
  14. Sobre o tema, por fim, reitero tanto quanto escrevi aqui ainda em 2014, em particular o seguinte: «é legítimo, em abstrato, ao poder temporal punir os criminosos inclusive com a morte; (…) [e] é perfeitamente possível que, nos Estados modernamente constituídos e com a sensibilidade contemporânea, não haja espaço para a aplicação daquela pena máxima».

Sobre o assunto, veja-se, também, entre outros, este texto sobre o ensino tradicional da Igreja acerca do assunto; este outro texto, pequeno, mas relevante, sobre a distinção entre a dignidade da natureza humana e a dignidade moral do homem; e estas considerações do Joathas sobre a nova redação do Catecismo acerca da pena de morte.

“Fostes já estrangeiros no Egito”

Parece que, recentemente, em certo programa de televisão, um entrevistador malicioso quis provocar determinado político dizendo que ele — o político — era cristão e contra os imigrantes quando, na verdade, o próprio Jesus havia sido um refugiado. A frase, no contexto em que foi dita, é uma daquelas coisas sem pé nem cabeça que você não sabe nem por onde começar a comentar. Dita em um debate, não passa de frase de efeito, muito boa como slogan mas com pouco ou nenhum significado.

Vamos começar por dar os créditos a quem de direito. A referida afirmação não foi nenhuma “sacada” repentina do entrevistador e nem muito menos faz parte do discurso de esquerda: ela já foi dita pelo Papa Francisco em 2014 (“Pensemos que Jesus foi um refugiado, teve que escapar para salvar a vida com são José e Nossa Senhora, e fugiu para o Egipto. Ele foi um refugiado.”) e, antes dele, por Bento XVI em 2011 (“Na festa da Sagrada Família, logo após o Natal, recordámos que também os pais de Jesus tiveram que fugir da própria terra e refugiar-se no Egipto, para salvar a vida do seu menino; o Messias, o Filho de Deus, foi um refugiado.”). Comparar Nosso Senhor a um refugiado, assim, não é ofensa cristológica nem canonização de determinada política externa contemporânea de matiz “progressista”. Não tem nada a ver.

É de se espantar que as pessoas gastem mais do que cinco minutos com isso, quer tomando a lembrança do refúgio do Egito como uma provocação, quer negando a Nosso Senhor a condição de refugiado!

Aliás, é bastante evidente que as condições geopolíticas da Judéia sob dominação romana no século I guardam bem pouca analogia com a Europa globalizada do século XXI: não é portanto necessário ninguém se apegar ao tecnicismo de que, à época da infância de Nosso Senhor, tanto Nazaré quanto o norte da África integravam ambos o Império Romano e, portanto, a rigor a Sagrada Família não se deslocou senão dentro do mesmo território (!). Tal alegação não passa de um jogo de palavras ainda mais esdrúxulo do que a afirmação original que ela pretende responder. O único fato relevante nesta falsa polêmica — fato perturbadoramente óbvio — é que “refugiados” consiste em uma categoria bastante ampla, que envolve realidades as mais díspares, e que portanto o “argumento” que diz “você não pode ser contra os imigrantes porque Jesus era um refugiado” não é uma argumentação de verdade. A questão migratória é complexa e não comporta posições em bloco “contra” ou “a favor” como os nossos jornalistas parecem desejar.

Polêmicas e dificuldades concretas à parte, é preciso não esquecer que existe um óbvio dever cristão de se tratar bem os “refugiados” — dever que precede e transcende a atual crise imigratória européia. Esta obrigação se encontra na própria Escritura Sagrada (“Não oprimirás o estrangeiro, pois conheceis o que sente o estrangeiro, vós que o fostes no Egito.” Êxodo 23, 9“Se um estrangeiro vier habitar convosco na vossa terra, não o oprimireis, mas esteja ele entre vós como um compatriota, e tu o amarás como a ti mesmo, porque fostes já estrangeiros no Egito.” Levítico 19, 33-34) e, mais recentemente, no Compêndio de Doutrina Social da Igreja:

505 (…) Uma categoria particular de vítimas da guerra é a dos refugiados, constrangidos pelos combates a fugir dos lugares em que vivem habitualmente, até mesmo a encontrar abrigo em países diferentes daqueles em que nasceram. A Igreja está do lado deles, não só com a presença pastoral e com o socorro material, mas também com o empenho de defender a sua dignidade humana: «A solicitude pelos refugiados deve esforçar-se por reafirmar e sublinhar os direitos humanos, universalmente reconhecidos, e a pedir que para eles sejam efetivamente realizados».

O texto do Compêndio é de 2004, mas este parágrafo em específico remete a uma mensagem de S. João Paulo II para a Quaresma de 1990. E esta mensagem, por sua vez, faz referência à encíclica Pacem In Terris de S. João XXIII escrita em 1963:

105. Não é supérfluo recordar que os refugiados políticos são pessoas e que se lhes devem reconhecer os direitos de pessoa. Tais direitos não desaparecem com o fato de terem eles perdido a cidadania do seu país.

106. Entre os direitos inerentes à pessoa, figura o de inserir-se na comunidade política, onde espera ser-lhe mais fácil reconstruir um futuro para si e para a própria família. Por conseguinte, incumbe aos respectivos poderes públicos o dever de acolher esses estranhos e, nos limites consentidos pelo bem da própria comunidade retamente entendido, o de lhes favorecer a integração na nova sociedade em que manifestem o propósito de inserir-se.

Ou seja, os Papas dos últimos cinquenta anos sustentaram em uníssono, em diferentes ocasiões, com diversos graus de autoridade, que existe um dever cristão — mais ainda, um dever humano — de tratar com solicitude os refugiados. Os ecos veterotestamentários desta obrigação encontram-se no cerne da história do povo judeu. Tal ensinamento é eloquente demais, constante demais para poder ser honestamente ignorado; as dificuldades contemporâneas provocadas pelos inimigos da Igreja, conquanto sem dúvidas existam e sejam sérias, não nos autorizam a menosprezar este dever de caridade, como parece vir sendo cada vez mais fácil fazer.

Diante de uma convergência magisterial de tal magnitude, é de espantar que os católicos aceitem tão facilmente a versão “progressista” da questão migratória — onde a defesa dos imigrantes é pauta privativa dos esquerdistas e onde associar Nosso Senhor a um refugiado é uma traição ao Catolicismo. É preciso dizer que isso é falso. Os católicos precisam reencontrar a sua identidade, estabelecida positivamente em relação àquilo que a Igreja ensina e vive — ao invés de continuar se definindo mediante a simples oposição àquilo que alardeiam os anticlericais.

A fidelidade é também um martírio

Quanto autem eis praecipiebat, tanto magis plus praedicabant.

O bem é por sua própria natureza difusivo. Nosso Senhor ordenou-nos, no final de Sua vida terrestre, que fôssemos pelo mundo inteiro anunciando o Evangelho a toda criatura; mas a rigor nem precisaria ter-nos ordenado. Os discípulos de Cristo, é certo, sentiriam no seu âmago a necessidade contar a todo mundo a Boa Nova que haviam descoberto — e haveriam de sair pregando o Evangelho da Salvação Cristo tendo-o ordenado ou não.

Aliás, mesmo que o tivesse proibido! As Escrituras não nos dão testemunho? Certa feita, por exemplo, Nosso Senhor curou um surdo-mudo. Os que O acompanhavam ficaram extasiados. Cristo — diz-nos o Evangelista —  «[p]roibiu-lhes que o dissessem a alguém. Mas quanto mais lhes proibia, tanto mais o publicavam» (Mc VII, 36).

O anúncio do Evangelho não pode ser proibido. Todas as experiências históricas o demonstram de forma cabal. Não já foi a Igreja perseguida milhares de vezes em centenas de circunstâncias diferentes? Em cada uma delas o Cristianismo não sucumbiu, mas ao contrário: soube crescer e germinar sob a terra, a fim de florescer na primeira oportunidade. Os séculos se encarregaram de provar verdadeiro o dito de Tertuliano segundo o qual o sangue dos mártires é semente de cristãos. Mas, ora, a ridicularização também não é uma forma de martírio? Foi o que São João Paulo II disse certa vez aos jovens, em uma mensagem que se tornou antológica:

Também hoje, caríssimos amigos, crer em Jesus, seguir Jesus pelas pegadas de Pedro, de Tomé, dos primeiros apóstolos e testemunhas, implica uma tomada de posição a favor d’Ele e, não raro, quase um novo martírio: o martírio de quem, hoje como ontem, é chamado a ir contra a corrente para seguir o divino Mestre, para seguir «o Cordeiro por onde quer que vá» (Ap 14, 4). Não foi por acaso, queridos jovens, que eu quis que, durante o Ano Santo, se recordassem junto do Coliseu as testemunhas da fé do século vinte.

Talvez não vos seja pedido o sangue, mas a fidelidade a Cristo é certo que sim!

19 de agosto de 2000
Vigília de Oração — XV Jornada Mundial da Juventude

Talvez o sangue não nos seja pedido; mas a fidelidade sim! E esta fidelidade contra tudo e contra todos, da qual o mundo debocha e por conta da qual somos chamados de fanáticos e intolerantes, que nos fecha portas e nos afasta de amizades, que merece escárnio, desprezo e piadas, esta fidelidade, em suma, que tanto dói e tanto machuca… não é também uma forma de martírio? E sendo essencialmente martirial, não terá também o condão de difundir a Fé? A fidelidade não será abençoada por Deus, a fim de que se torne, ela também, semente de cristãos?

O bem é difusivo e não pode ser contido. O Evangelho é uma Boa Nova cuja descoberta não pode deixar de ser partilhada — quem O guardasse para si, na verdade, não O teria realmente encontrado. O Apostolado não é uma exigência que nos é feita desde fora, mas um impulso que brota da própria Fé e nos move a partilhar com os nossos próximos aquilo que outros partilharam conosco — aquilo de que todo ser humano precisa, pelo qual todo homem anseia.

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O cristão ou é apóstolo ou é apóstata. O apostolado não é uma opção, não é algo que possamos desempenhar ou retrair a nosso talante. São Paulo uma vez exclamou: «Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!» (ICor IX 16b) — e bem faríamos em ter esta imprecação ressoando, sempre, nos nossos ouvidos indolentes. Não nos podem proibir o anúncio do Evangelho; nenhuma autoridade sobre a terra tem este poder.

O Evangelho precisa ser anunciado por sobre os telhados. Precisa, aliás, ser tanto mais anunciado quanto mais o desejarem silenciar — ai de nós se nos calarmos! É nas perseguições que o Cristianismo floresce; sempre foi assim e não é hoje que haverá de ser diferente. A fidelidade nos é tanto mais exigida quanto mais força fizerem para que sejamos infiéis: que o bom Deus nos conceda sempre a graça de resistir a cada dia. A fidelidade é também um martírio — que a saibamos bem sofrer. Deus não deixará que seja em vão; o Altíssimo, que tudo vê e tudo pode, saberá fazer da fidelidade dos novos mártires a semente da Igreja.

As questões dos cardeais sobre a Amoris Laetitia

Foi hoje tornada pública uma carta ao Papa Francisco onde um grupo de cardeais interpela Sua Santidade a respeito de algumas interpretações contraditórias que estão circulando no orbe católico sobre o Cap. VIII da Amoris Laetitia. Trata-se de uma atitude duplamente excelente, no conteúdo e na forma. No conteúdo, porque o seu objetivo é pôr freios à loucura generalizada que se apossou de muitos ambientes católicos; na forma porque tudo se fez de maneira exemplar, com toda a deferência exigida ao Soberano Pontífice.

Um simples olhar sobre o caso mostra a diferença gritante, estratosférica, entre ele e a histeria virtual generalizada que, aqui no blog, tanto me censuram por combater.

Em primeiro lugar a carta é, toda, de uma elegância exemplar. No lugar dos xingamentos, os preitos de submissão; no lugar das acusações vagas, as questões formuladas com todo o rigor acadêmico. Em nenhum momento o Papa é diminuído em qualquer das suas prerrogativas, em nenhum parágrafo as suas intenções ocultas são perscrutadas e censuradas. Não se encontra na carta — nem mesmo! — uma afirmação taxativa de que tal ou qual passagem da exortação apostólica esteja em desacordo com a doutrina da Igreja; simplesmente se pergunta se as disposições antigas ainda estão válidas e, se sim, de que modo.

Depois: a carta foi redigida por quatro cardeais da Santa Igreja, não pelo Zé das Couves da esquina. Foi entregue ao Santo Padre e não divulgada no Facebook. É total a diferença entre os Príncipes da Igreja, membros da cúria pontifícia, e o leigo brasileiro que mal ajuda a sua paróquia territorial. É absoluta a dessemelhança entre o documento formal, cerimoniosamente entregue ao próprio Soberano Pontífice, e o panfleto passional espalhado aos quatro ventos internet afora e cuja leitura só provoca a indisposição dos espíritos para com o Cristo-na-terra.

Finalmente, o modo de proceder dos cardeais foi aquele estabelecido por Nosso Senhor nos Evangelhos: primeiro o Papa foi procurado privadamente, e somente depois — quando tomaram consciência de que a resposta pontifícia não viria — os autores da carta decidiram ampliar a discussão, tornando-a pública. Não está, portanto, em questão aqui a pessoa do Romano Pontífice, o juízo moral sobre as suas atitudes, nada disso: o que se objetiva é, tão-somente, o esclarecimento dos fiéis católicos a respeito de algumas questões morais surgidas a partir da leitura de um capítulo da última exortação apostólica publicada pelo Papa Francisco.

As dubia enviadas ao Santo Padre são as seguintes:

  1. Se é agora possível (AL 305 c/c nota 351) conferir a absolvição sacramental, e consequentemente a Comunhão Eucarística, a uma pessoa que, conquanto possua um anterior vínculo matrimonial válido, viva more uxorio com alguém que não é o(a) legítimo(a) esposo(a).

  2. Se, após o n. 304 da Amoris Laetitia, ainda existem normas morais absolutas que proíbem incondicionalmente atos intrinsecamente maus e que são obrigatórias a todos, sem exceções.

  3. Se após o n. 301 da Amoris Laetitia ainda é possível afirmar que uma pessoa que habitualmente viva em contradição com um mandamento da Lei de Deus (e.g. o que proíbe o adultério) encontra-se em uma situação objetiva de pecado grave habitual.

  4. Se, à luz das “circunstâncias que mitigam a responsabilidade moral” (AL 302), permanecem válidos os ensinamentos de S. João Paulo II de acordo com os quais as circunstâncias, ou as intenções, não podem jamais transformar um ato intrinsecamente mau em algo subjetivamente bom ou defensável como uma escolha.

  5. Se, após o n. 303 da Amoris Laetitia, permanece válido o ensinamento segundo o qual a consciência nunca pode legitimar exceções a normas morais absolutas que proíbem atos intrinsecamente maus em virtude do seu objeto.

O debate franco, aberto e desapaixonado a respeito dessas questões é da mais alta importância, e em muito boa hora os eminentíssimos cardeais as trazem a lume. Que a clareza das perguntas possa dar uma exata dimensão daquilo que atualmente se está discutindo; que elas propiciem respostas cada vez mais claras, a fim de fazer cessar a confusão instaurada no seio da Igreja Santa de Deus.

P.S.: Após escrever este texto descobri já haver uma tradução para o português no Sandro Magister do apelo feito pelos cardeais — leiam lá. As perguntas que transcrevi acima foram feitas em tradução livre por mim mesmo a partir do texto do Rorate Caeli.

O “escândalo” sobre a vida íntima do Papa João Paulo II

Um leitor desafia-me aqui no blog: «quero ver agora qual será a desculpa para defender Karol Wojtyła». Ora, mas defender do quê?

A despeito da péssima qualidade da mídia laica e anticlerical — somente na qual, ao que parece, os detratores da Igreja vão buscar as suas informações… –, nem mesmo nela é possível encontrar o «escândalo sobre a vida intima (sic) de Karol Wojtyła» que o meu contendedor alardeia. O Jornal Nacional fala em «amizade intensa» do Papa polonês com uma filósofa americana; El País, em «íntima amizade». A BBC fala em «relação ‘intensa’», e o máximo que encontrei foi «amizade “corajosa”» na Gazeta do Povo. Onde está o escândalo?

Responda-se: o “escândalo” está na ilação maliciosa — que nem os órgãos de mídia ousarem fazer diretamente! — de que haveria, para usar o termo corrente, “segundas intenções” por detrás da correspondência que o Papa João Paulo II trocou durante longos anos com Anna-Teresa Tymieniecka. Veja-se bem o que estamos tratando aqui: nem mesmo a mídia anticlerical ousou acusar diretamente São João Paulo II de ter mantido um caso com a americana, e o comentarista autoproclamado católico sequer pensa duas vezes em tomar a insinuação maliciosa como um fato incontestável! E, pior, quer — exige até! — que todo mundo acredite no mesmo que ele!

Não satisfeitos em deixar o fundo do poço ao jornalismo medíocre que alardeia fatos públicos como se fossem descobertas bombásticas a respeito da vida privada dos santos da Igreja, os comentaristas do Deus lo Vult! que parecem dedicar as suas vidas à difamação da Igreja foram mais ousados: chafurdando ainda um pouco mais na lama para não perder em abjeção à imprensa anticatólica, complementam-lhe o serviço e vêm alardear, com ares de autoridade, aquilo que a mesma imprensa teve ao menos o decoro de deixar encoberto. É impressionante.

O que interessa dizer sobre o mérito da acusação? Primeiro, que trocar cartas não é crime nem é pecado. O clero católico faz voto de celibato (e não “de castidade” (sic), como saiu na mídia), não de silêncio ou de isolamento social. A correspondência pessoal do Romano Pontífice não é em si mesma uma violação de nenhum dos seus deveres de estado.

Segundo, que a incapacidade de enxergar amizade desinteressada nas conversas alheias — como se um homem só conversasse com uma mulher se tivesse interesses sexuais nela — é um defeito de quem julga deste modo, e não se pode admitir que semelhante reducionismo seja transposto da imaturidade dos que o alimentam para a personalidade das grandes almas do planeta. Em uma palavra: não é porque alguns retardados acham que só escreve “aquele tipo de carta” quem está sexualmente interessado em alguém que todo mundo — o Papa inclusive — fica obrigado a só escrever para quem quiser “pegar”. Isto é ridículo até mesmo no mundo secular; na Igreja, é patético a ponto de não merecer dois segundos de atenção.

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Terceiro, que se fosse verdade «que Anna-Teresa Tymieniecka poderia estar apaixonada pelo então cardeal Karol Wojtyla», como está na Gazeta do Povo, isso em nada desabonaria a figura de S. João Paulo II. As pessoas devem ser avaliadas moralmente por suas ações, e não pelas que terceiros têm para com elas; um possível (e olhe o que digo, possível, porque tudo não passa de especulação) amor platônico entre a americana casada e o cardeal europeu pode no máximo ser censurável a ela, não a ele — ao menos não sem acrescentar uma série de outras variáveis desabonadoras (e.g. que o Papa alimentasse deliberadamente a paixão da filósofa pelo simples prazer de se sentir desejado) que de nenhuma maneira se pode inferir dos documentos existentes.

Quarto, por fim, que o assunto não é sequer novidade; como disse um amigo jornalista no Facebook, o fato já fora publicado na biografia do Papa escrita há vinte anos por Carl Bernstein e Marco Politi. Além disso, não se trata de um caso isolado: a correspondência trocada entre Sua Santidade e a médica polonesa Wanda Półtawska ao longo de mais de 50 anos, por exemplo, é um livro que tem inclusive uma edição brasileira desde 2011.

Qual o sentido da “polêmica” agora levantada? Ela não diz nada a respeito da figura do Papa que não fosse já de conhecimento público; mas diz, sim, um bocado!, sobre as pessoas que, lendo a reportagem, ensaiaram um sorriso lascivo ou fizeram algum comentário malicioso sobre o assunto (preenchendo as lacunas que os jornais intencionalmente deixaram abertas, ‘pegando’ as insinuações deliberadamente deixadas no ar e achando que, com isso, faziam algum exercício particularmente notável de perspicácia). Ela revela, na verdade, a própria pequenez desses leitores, incapazes de manter um relacionamento interpessoal desinteressado e reduzindo a diferença entre os sexos ao seu mero aspecto venéreo. O que projetam no Papa é somente o seu próprio reflexo. E essa história, portanto, pode até não dizer nada sobre São João Paulo II; mas diz muito, sim, sobre o homem contemporâneo — e o que diz é deprimente.

Urgentes orientações do Sínodo da Família sobre os casais de segunda união

Nas últimas semanas a mídia católica — mesmo a mídia católica que se reputava mais fidedigna e confiável — irrompeu em um surto de loucura a respeito do que o Sínodo dos Bispos (que se encerrou no final do mês passado) teria falado a respeito da comunhão dos divorciados recasados. Perplexos, deparamo-nos com manchetes e reportagens o mais disparatadas possível, vindas de órgãos de imprensa que, até então, sempre ou quase sempre tinham primado pelo equilíbrio e pela sensatez.

A Rádio Vaticano diz que a “comunhão aos divorciados recasados” é “uma questão aberta”. No estilo “em cima do muro” que lembra o pior da politicagem tupiniquim, o Cardeal de São Paulo afirma que “há muita divergência” sobre isso, que “questões complexas não podem ser respondidas simplesmente com um sim ou não”, que “o Sínodo, que não é ainda a palavra do Papa, não decidiu nada sobre isso”, que o Papa pode dizer uma coisa ou outra. Ou seja, a questão estaria “aberta” porque o Sínodo não determinou nada.

Aleteia, em manchete ainda pior, vai mais fundo e diz que o “Sínodo dos bispos abre portas para integrar divorciados recasados”. Perdida lá no corpo da matéria está a afirmação — esta, sim, relevante — de que “[o] texto [do Sínodo] não especifica se [os divorciados recasados] poderão realizar a comunhão”.

Por fim, Zenit coloca como chamada principal da matéria que “o acesso à eucaristia [dos “casais em segunda união”] deverá ocorrer na própria paróquia onde reside o casal” (!). No exercício do wishful thinking mais grosseiro, o autor do texto justifica a manchete dizendo que “o documento normativo do Sínodo, a ser elaborado pelo papa Francisco, numa exortação apostólica, eventualmente poderá estimular a verificação de caso a caso, para se aferir a responsabilidade subjetiva”. Ou seja: um eventual documento que o Papa Francisco porventura publique, em data incerta e não sabida, poderá estimular a avaliação caso a caso dos divorciados recasados — o que pode potencialmente levar os casais em segunda união a terem acesso à Eucaristia na própria paróquia onde residem! Tantas condicionantes, possibilidades, eventualidades, incertezas, indeterminações… ora, acaso isso é notícia? Em que mundo?

O mais perturbador disso tudo: nenhuma notícia diz que o Sínodo autorizou a comunhão aos divorciados recasados (primeiro porque o Sínodo, órgão consultivo, não pode “autorizar” nada e, segundo, porque, de fato, os documentos do Sínodo não mencionam em nenhum momento a possibilidade de admitir à comunhão eucarística os divorciados recasados) e, portanto, a rigor, todas as reportagens são formalmente verdadeiras. Mas o modo como elas foram escritas conduz o leitor incauto a imaginar que foram, sim, “abertas portas”, que estas portas são para o “acesso à eucaristia” dos divorciados recasados, que esta questão, outrora fechada, agora foi “aberta” pelo Sínodo e se está somente esperando a formalização pontifícia — que virá a qualquer momento! — para que os casais em segunda união possam, enfim, receber Nosso Senhor na Eucaristia. E, para quem não vai ler o Relatio Synodi (que, parece, só há em italiano…) nem esperar a Exortação Apostólica Pós-Sinodal, a impressão que fica é esta induzida pela mídia católica mesmo.

Esforcemo-nos um pouco para nos elevar acima da mediocridade que contaminou até mesmo a boa mídia católica. O que importa saber sobre o tema é, em resumo, o seguinte: o sínodo tem marcos teóricos muito sólidos, explicitados no próprio Relatio (nn. 42 – 46), entre os quais se destaca — como não poderia deixar de ser — a Familiaris Consortio de S. João Paulo II. Uma (re)leitura desse documento é de enorme importância para se compreender a Igreja hoje. Em particular o seu n. 84. Tudo, tudo ali se explica.

Senão vejamos: há um clamor popular e midiático enorme para que a Igreja se debruce sobre a questão dos divorciados recasados? Sim, trata-se de mal que se vai alastrando mesmo pelos ambientes católicos, e portanto “o problema deve ser enfrentado com urgência inadiável”.

Importa fazer com que a Igreja esteja mais preocupada em acolher do que em condenar? Sem dúvidas, porque a Igreja, “instituída para conduzir à salvação todos os homens e sobretudo os baptizados, não pode abandonar aqueles que – unidos já pelo vínculo matrimonial sacramental – procuraram passar a novas núpcias”.

Então, o que fazer? Estariam porventura estes excomungados? Absolutamente não; é um dever de toda a Igreja, dos pastores como dos fiéis, “ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto baptizados, participar na sua vida”. É fundamental que eles sejam “exortados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus”.

Conceder-se-lhes-á, então, participar da Ceia Eucarística? Aí não. “Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e actuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimónio”.

Mas não existe nenhuma exceção? Sim, existe, uma exceção que precisa ser avaliada caso a caso: a daquelas pessoas que, não podendo, por justa causa, abandonar o cônjuge ilegítimo (digamos, por conta dos filhos pequenos que possuam), decidem, conquanto mantendo a habitação em comum, abster-se dos atos sexuais adulterinos. Assim, “[a] reconciliação pelo sacramento da penitência – que abriria o caminho ao sacramento eucarístico – pode ser concedida só àqueles que, arrependidos de ter violado o sinal da Aliança e da fidelidade a Cristo, estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimónio. Isto tem como consequência, concretamente, que quando o homem e a mulher, por motivos sérios – quais, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar, «assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos actos próprios dos cônjuges»”.

Pronto. Com isso, se responde perfeitamente às notícias acima referidas, sem margens para dúvidas ou más interpretações:

  • A questão da comunhão eucarística aos divorciados recasados está aberta? Não, não está aberta, porque São João Paulo II, em texto sobre o assunto ao qual o Sínodo contemporâneo faz expressa referência, já reafirmou a praxis eclesiástica, “fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união” — e não há necessidade de se ficar, a todo ano, a toda reunião, repetindo explicitamente as mesmas coisas (sob pena de elas “deixarem de valer”). Isso não faz sentido algum.
  • Mas então os divorciados recasados devem ser acolhidos na vida da Igreja? Sem dúvidas, como São João Paulo II já disse explicitamente, é dever de todos os católicos tudo fazer para que os divorciados recasados “não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto baptizados, participar na sua vida”.
  • E o que é que deve ser analisado caso a caso? Ora, deve-se analisar individualmente aquelas situações em que as pessoas, não podendo por razões graves abandonar o falso cônjuge, comprometem-se a tentar levar “uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimónio” — i.e., com a abstinência dos atos próprios dos casais.

Tudo isso é porventura novidade? Não, tudo isso consta em um texto do início da década de 80! Qual a razão do alvoroço, qual o motivo do alarde, como se S.S. o Papa Francisco estivesse fazendo alguma coisa inaudita em vinte séculos de Cristianismo? Todas essas coisas — de não estarem excomungados os divorciados recasados, da importância de os integrar à vida da Igreja, da inadmissibilidade de se conceder a Comunhão Eucarística aos que vivem maritalmente com alguém que não é o seu cônjuge legítimo e da necessidade de se avaliar, individualmente, os casos daquelas pessoas que quiserem abandonar as práticas conjugais mantendo, contudo, a habitação comum — já fazem parte das disposições normativas da Igreja Católica há mais tempo do que eu próprio tenho de vida! Se não são obedecidas, e se portanto precisam ser reforçadas, é uma outra história; mas não se diga que a Igreja não tem respostas ao problema do divórcio e nem que Ela está procurando, agora, do nada, soluções para estas questões.

A Igreja é Mãe, e não é de hoje que Ela é Mãe. Os filhos da Igreja são rebeldes, e não é de hoje que esta rebeldia grassa entre aqueles pelos quais Cristo verteu o Seu Sangue na Cruz. Mas a Igreja, Esposa Fiel de Cristo, não vai trair jamais a confiança do Seu Divino Esposo, e isto significa duas coisas: que Ela não vai abandonar os homens por cuja salvação Cristo morreu, por um lado; mas que, pelo outro lado, tampouco vai abandonar a Doutrina por meio da qual somente aqueles homens se podem salvar. Eventuais tentativas de obscurecer qualquer dessas verdades desfigura o rosto da Igreja de Nosso Senhor, e devem portanto ser combatidas.

Encerrou-se a Assembléia Extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre a família. Mas, ao contrário do que a mídia insinua, não é necessário esperar para ver “o que o Papa vai fazer” com tudo isso. O documento normativo do Sínodo da Família, elaborado pelo Papa, já saiu em português: foi publicado aos 22 de novembro de 1981, e não há razões honestas para esperar nada diferente disso. Todas estas disposições aliás já podem — e devem — ser postas imediatamente em prática. Façamo-las conhecidas e efetivas. Não há tempo a perder.

O que existe de «comunismo» no Ocidente contemporâneo

Impressiona, por vezes, a dificuldade que têm as pessoas – mesmo as bem-intencionadas… – em entender o porquê de ser o comunismo uma doutrina condenada pela Igreja ou mesmo de identificar traços comunistas na sociedade em que hoje vivemos. São dois problemas: por um lado, muitos parecem incapazes de reconhecer o comunismo que se lhes antolha; por outro lado, do comunismo sobre o qual ouvem falar como de a uma coisa distante, muitos não conseguem emitir um juízo de reprovação.

Penso que os dois problemas estão intimamente relacionados: é porque pintam com cores muito carregadas o comunismo, a fim de incutir horror a respeito dele, que as pessoas não o conseguem enxergar na política contemporânea; e é porque mitigam-lhe o alcance em um sem-número de aspectos, a fim de o adequar à realidade contemporânea, que as pessoas não conseguem emitir sobre ele o juízo de reprovação que seria esperado…

Parece fundamental esclarecer algumas coisas. E a primeira coisa que precisa ficar clara parece ser a seguinte: o comunismo contemporâneo, de matriz gramsciana, não é imediatamente identificável com a doutrina fulminada pela Quadragesimo Anno. Isso – atenção! – não implica em dizer que o atual estado de coisas é catolicamente aceitável; mas, até mesmo para que consigamos conversar com os nossos interlocutores, é necessário reconhecer que há diferenças – e diferenças à primeira vista deveras relevantes – entre o passado e o presente.

Em 1931, Pio XI dedicou alguns parágrafos da sua encíclica para falar sobre a «evolução do socialismo». O horizonte histórico do Soberano Pontífice, naturalmente, abrangia o intervalo de tempo compreendido entre a publicação da Rerum Novarum – 1891 – e a data em que ele escrevia a Quadragesimo Anno. E, já então, o Papa se sentia autorizado a dizer que «[g]randes foram as transformações, que desde os tempos de Leão XIII sofreram tanto a economia, como o socialismo»…! Que se dirá, então, das transformações ocorridas nesses mais de oitenta anos que nos separam do Magistério de Pio XI? Ora, se num tempo em que as mudanças ocorriam com relativa lentidão um Papa julgou oportuno assinalar as «grandes (…) transformações» sofridas pelo socialismo, que metamorfoses não precisaríamos apontar, hoje, em pleno século XXI, quando tudo parece transmudar-se tão vertiginosamente que não se consegue sequer acompanhar?

O mesmo trabalho sistematizador de Pio XI, no entanto, o seu sucessor não julgou oportuno realizar. Na Centesimus Annus, escrita seis décadas depois, S. João Paulo II não traçou a evolução do socialismo até os seus dias. Ao invés de julgar o acerto ou o equívoco dessa escolha, contudo, parece (muito!) mais relevante atentar para aquilo que o documento traz de propositivo. E penso que um dos seus pontos-chaves encontra-se no número 13, quando o Papa vai falar do erro fundamental do socialismo, de onde peço licença para uma citação um pouco longa:

[O] erro fundamental do socialismo é de carácter antropológico. De facto, ele considera cada homem simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente subordinado ao funcionamento do mecanismo económico-social, enquanto, por outro lado, defende que esse mesmo bem se pode realizar prescindindo da livre opção, da sua única e exclusiva decisão responsável em face do bem ou do mal. O homem é reduzido a uma série de relações sociais, e desaparece o conceito de pessoa como sujeito autónomo de decisão moral, que constrói, através dessa decisão, o ordenamento social. Desta errada concepção da pessoa, deriva a distorção do direito, que define o âmbito do exercício da liberdade, bem como a oposição à propriedade privada. O homem, de facto, privado de algo que possa «dizer seu» e da possibilidade de ganhar com que viver por sua iniciativa, acaba por depender da máquina social e daqueles que a controlam, o que lhe torna muito mais difícil reconhecer a sua dignidade de pessoa e impede o caminho para a constituição de uma autêntica comunidade humana.

Pelo contrário, da concepção cristã da pessoa segue-se necessariamente uma justa visão da sociedade. Segundo a Rerum novarum e toda a doutrina social da Igreja, a sociabilidade do homem não se esgota no Estado, mas realiza-se em diversos aglomerados intermédios, desde a família até aos grupos económicos, sociais, políticos e culturais, os quais, provenientes da própria natureza humana, estão dotados — subordinando-se sempre ao bem comum — da sua própria autonomia. É o que designei de «subjectividade» da sociedade, que foi anulada pelo «socialismo real».

Ao invés de assinalar o «socialismo» historicamente existente, o Papa vai mais fundo e oferece uma definição do que existe de condenável no socialismo. A mudança de abordagem é notória. E ela nos autoriza algumas conclusões:

1. O fenômeno histórico «socialismo» é susceptível de profundas transformações no decurso da história, tendo se apresentado, ao longo do tempo, sob roupagens as mais diversas.

2. O seu «erro fundamental», no entanto, é de caráter antropológico. Significa que o que existe de comum entre os diversos “socialismos” historicamente existentes – e poderíamos até mesmo dizer, por que não?, teoricamente possíveis – é uma determinada concepção a respeito do homem: a de que ele não passa de uma «molécula do organismo social», a ele subordinada, somente em referência ao qual o homem pode se afirmar.

3. Isso significa também – é o mais importante! – que a identidade diacrônica do socialismo não advém de uma unidade política, de um concurso de atores, de uma continuidade de escola de pensamento à qual explicitamente se vinculam acadêmicos, nem nada do tipo. O que faz o socialismo ser socialismo é um determinado erro antropológico. Portanto, ainda na hipótese de que pessoas distintas, separadas no tempo e no espaço, chegassem, por meio distintos e totalmente independentes entre si, a conclusões antropológicas redutíveis àquela visão do homem enquanto “molécula do organismo social”, então a mesma censura que se aplica ao «socialismo» seria aplicável, igualmente, a todas essas pessoas, por mais que elas aparentemente nada tenham que ver umas com as outras.

Ora, é muito difícil demonstrar (v.g.) que o lulo-petismo obedece a instruções de Moscou, que Barack Obama é subserviente aos interesses da KGB ou que o neoconstitucionalismo latino-americano é controlado diretamente de Havana pelos herdeiros da família Castro. Tais elucubrações, no entanto, são totalmente desnecessárias para que se reconheça um determinado traço comum a todos esses fenômenos, que não é de ordem política e nem estratégica mas sim conceitual; e para que se possa, a partir dessa identificação, rejeitar essas concepções políticas como equivocadas e incompatíveis com a visão de «homem» esposada pelo Catolicismo. Nem todo erro exige uma enorme conspiração por trás. E não é por não haver conspiração que o erro fica afastado.

O que torna o comunismo condenável não é apenas a sua insistência em perpetrar genocídios, mas sim a sua visão utópica quer do homem, quer da realidade social. E o que existe de socialista nos regimes políticos latino-americanos hodiernos não é meramente uma gradativa concentração de poderes e correspondente cerceamento de liberdades individuais, mas sim certa concepção de «sociedade» somente em função da qual deve ser dado espaço ao homem para existir. Vistas as coisas dessa maneira, talvez nos seja possível, afinal!, contornar as dificuldades apresentadas no início deste texto. E se, retratada agora com estas características, talvez haja discordâncias a respeito da valoração que merece tal visão de mundo, quiçá consigamos nos pôr de acordo ao menos quanto à situação de fato da existência e predominância desta concepção social. Já será um grande avanço.

«Mulher» e «aborto» são expressões que se repelem mutuamente

Ontem, oito de março, celebrou-se o dia internacional da mulher. Qualquer mínimo passeio pelas redes sociais revela que a data comemorativa foi amplamente sequestrada pelo feminismo revolucionário; todo mundo sabe, por exemplo, que a data é amplamente utilizada para que um punhado de mal-amadas, envergonhando o sexo grandioso que possuem, venham a público na mais despudorada e cínica apologia do aborto.

A bem da verdade, aliás, talvez o mais correto não fosse dizer que o oito de março foi “sequestrado”. Em sua gênese, a comemoração é e sempre foi feminista mesmo. A diferença, talvez, é que antes da expansão desenfreada da internet os atos pró-aborto tinham a repercussão pífia que mereciam. Ninguém dava atenção. Hoje, contudo, quando a qualquer coisa se concede ares de evento histórico, as feministas – cujo barulho, por conta dos amplificadores virtuais, é percebido muitas ordens de grandeza acima do real – conseguem tornar ainda pior um dia que, a despeito das suas raízes inglórias, bem que poderia ser aproveitado. Que seria digno e justo, aliás, aproveitar.

Porque não vêm de hoje as tentativas de “cristianizar” o Oito de Março. À mensagem ontem divulgada pela CNBB – peça esquerdóide da pior qualidade que cobre de vergonha a Igreja do Brasil e atrai a ira do Todo-Poderoso sobre esta terra de Santa Cruz -, por razões que saltam aos olhos à mera leitura do documento, talvez não seja legítimo conferir o status de bem-intencionada tentativa de evangelização. Coisa distinta, contudo, já se pode dizer da ligeira saudação do Papa Francisco após o Angelus dominical: o dia de ontem, disse o Papa, «é uma ocasião para reafirmar a importância das mulheres e a necessidade da sua presença na vida».

Mas não se pense que o Pontífice argentino é pioneiro nessa seara. Fazer remissões católicas mesmo a feriados originalmente anticlericais não é novidade na história da Igreja. Veja-se, à guisa de exemplo, os dois pontífices anteriores, em dois oitos de marços do passado relativamente recente:

  • Bento XVI, em 08 de março de 2009: a efeméride «convida-nos a reflectir sobre a condição da mulher e a renovar o compromisso, para que sempre e em toda a parte, cada mulher possa viver e manifestar plenamente as suas próprias capacidades, obtendo o pleno respeito pela sua dignidade».
  • São João Paulo II, em 08 de março de 1998: «[i]nfelizmente somos herdeiros duma história cheia de condicionamentos, que tornaram difícil o caminho das mulheres, por vezes menosprezadas na sua dignidade, deturpadas nas suas prerrogativas e com frequência marginalizadas. Isto impediu-as de serem completamente elas mesmas e empobreceu a inteira humanidade de autênticas riquezas espirituais.»

É provável que tenha sido S. João Paulo II o primeiro a trazer la Giornata della Donna para o calendário eclesiástico; ao menos no site do Vaticano, a referência mais antiga à data está neste Angelus de 1987. Antes disso, aliás, e registre-se, parece que não havia nenhuma particular preocupação em execrar o 8 de março. Se o feriado é originalmente comunista, é particularmente nos dias de hoje que os seus efluxos malsãos se fazem significativamente sentir (porque hoje, como já se disse, multiplicam-se estrados para qualquer canastrão). Não é revolucionária a mera referência às mulheres, e nem existe anticlericalismo intrínseco ao fato de se parabenizar as pessoas do sexo feminino em uma data específica do ano. Este não é e nem nunca foi o ponto relevante aqui.

O que realmente interessa é o seguinte. Em referência aos grunhidos das feministas pela legalização do aborto a que se referiu acima, veja-se esta notícia hoje publicada: maioria dos internautas se posicionaram contra o aborto. É provavelmente a milésima pesquisa sobre o assunto que corre a internet; pela milésima vez, as pessoas se dizem contrárias a esta covardia suprema que é o assassinato de uma criança no ventre de sua mãe. Ou seja, em um dia abertamente devotado à propaganda da agenda pró-aborto mais escancarada, as sedizentes representantes das mulheres amargaram, de novo e mais uma vez, uma rotunda derrota: não, as pessoas não acreditam, graças a Deus!, que uma mãe pode dispôr da vida do seu filho, ainda que ele se encontre em seu ventre. As pessoas não aceitam o aborto, por mais que insistam no assunto. No meio da revolução moral em que vivemos, essa resistência não pode deixar de ser notada. Por que isso é assim?

Porque «mulher» e «aborto» são expressões que se repelem mutuamente. Porque na verdade as mulheres, como o Papa Francisco disse na mensagem de ontem, são aquelas que «trazem a vida», e esta é a imagem que resplandece com maior força sempre que alguém lhes faz alusão. Para obscurecer a íntima relação existente entre feminilidade e maternidade é necessário um grau de embrutecimento muito maior do que as pessoas estão geralmente dispostas a aceitar – e tal intuito tem falhado miserável e consistentemente, por mais que as feministas tenham consagrado todas as suas forças ao longo das últimas décadas à sua imposição. Para vencer a agenda revolucionária das inimigas das mulheres, portanto, não é necessário combater o oito de março: basta enaltecer a mulher naquilo que lhe é mais próprio. Porque, no fundo, quem diz “mulher”, diz “mãe”. E a maternidade é a mais radical rejeição ao aborto que pode haver.

É de novo Quaresma…!

Que tempo é a Quaresma? Tempo, por excelência, de penitenciarmo-nos. Todo o ano litúrgico – muitos já o disseram – gravita em torno da Páscoa da Ressurreição: praticamente todo o resto do ano é ou preparação para ela, ou seu natural desdobramento.

Pois bem. Chegamos ao início do tempo quaresmal que é, por antonomásia, o tempo de preparação para a Semana Santa – para a Páscoa. Como nos devemos preparar? A vida cristã é uma vida de penitência, sem dúvidas: nunca é demais o repetir. Já disse várias vezes que aqueles que têm por Deus um Crucificado não podem esperar, da vida, mais que os sofrimentos do Calvário, mais que as lágrimas da Cruz. Toda a vida cristã é assim uma grande penitência, que as nossas orações cotidianas (lembremo-nos de quando suspiramos à Santíssima Virgem «gemendo e chorando neste Vale de Lágrimas»…) não nos deixam jamais esquecer. Se toda a vida cristã é já uma vida de penitência, que tempo é, portanto, a Quaresma?

Deus é maior do que a nossa capacidade de O compreender e, por extensão, a vida cristã é também maior do que a nossa capacidade de vivê-la. O sofrimento é apanágio do Cristianismo, sem dúvidas; mas também o é a alegria e a esperança, o temor e a reverência, a honra e a glória! A vida cristã é mais ampla do que somos capazes de viver. Não dá para enaltecer todas essas características ao mesmo tempo; resta-nos, portanto, vivê-las todas, sim, mas diacronicamente. Ao longo do ano. Ao longo da vida.

Os diversos tempos litúrgicos são, portanto, isso: ênfases distintas dadas aos diversos aspectos de que é composta a única vida cristã. Ora é a alegria da Criação, ora a tristeza do pecado; ora o ardor missionário, ora a esperança na Vida Futura; ora a expectativa do Nascimento do Salvador, ora a dor da Sua Paixão e Morte, ora o júbilo da Ressurreição. Ora as festividades da Páscoa! Ora as penitências quaresmais. Nenhum tempo, é óbvio, esgota-se naquilo que ele enfatiza e enaltece, porque o Cristianismo não se pode reduzir a nenhuma de Suas notas constituintes. Mas viver proficuamente o ano litúrgico pressupõe acompanhar aquilo que a Igreja propõe a cada tempo. É passado o Carnaval! Iniciam-se os violáceos dias da Quaresma…

É tempo de penitência; particularmente, de jejum, esmola e oração. Estes três elementos devem ser vividos em seu sentido literal, sem dúvidas; mas é fundamental que saibamos a quê cada um deles serve. A oração «é sempre a primeira e fundamental condição para nos aproximarmos de Deus»; o jejum, «significa domínio sobre nós mesmos»; a esmola, «dividir não só os bens materiais mas também os dons do espírito». Assim disse S. João Paulo II há mais de três décadas, em 1979; e as palavras que ele dirigiu então à Igreja de Roma serve, ainda hoje, para todos nós.

Porque é de novo Quaresma…! E a sucessão de quaresmas da nossa vida nunca será suficiente para nos deixar prontos e acabados. Nunca estaremos, neste mundo, suficientemente prontos para Deus. Nunca teremos vivido a vida cristã em plenitude – ela é maior do que nossa experiência, dizíamos acima. Cumpre, portanto, vestir – de novo! – o roxo penitencial e caminhar, de novo!, ao longo dos quarenta dias de preparação para a Semana Santa. Por debaixo das coisas antigas há tesouros sempre novos. No âmago das práticas seculares está o segredo dos santos de todos os tempos.