Sobre a Reforma Litúrgica e perda de Fé dos católicos

A respeito de alguns textos (aqui) trazidos pelo Felipe Coelho nos comentários de um outro post do Deus lo Vult! sobre a Reforma Litúrgica, vale a pena tecer algumas considerações. Considero inegável que multidões de católicos perderam a Fé nas últimas décadas, muitas vezes sem sequer o perceber. No entanto, que tal se possa creditar ao «Novus Ordo» simpliciter, é um ponto francamente insustentável, como passaremos a demonstrar:

1. Os dois principais pontos apresentados nos textos acima linkados são i) que o «mysterium Fidei» foi deslocado das palavras da Consagração para imediatamente em seqüência a elas; e ii) que a «dimensão oblativa do Sacrifício da Missa», «significada pelo ofertório» tradicional, deixou de ser explicitada pelo do Novus Ordo. Estes constituem, aliás, em essência, o cerne das críticas que se costuma dirigir à Reforma: o “obscurecimento” de certas verdades distintivas do culto católico nos textos do Missal Reformado, mormente no Offertorium e no Canon Missae.

2. Ora, essas mudanças não poderiam jamais ter o condão de diminuir a Fé dos católicos medianos, por uma única e simples razão: na Missa Tradicional, todas essas orações eram proferidas em voz submissa pelo sacerdote somente, ou seja, o católico médio não tinha contato com elas no contexto da celebração da Santa Missa segundo as rubricas vigentes até 1969!

2.1. Tanto os católicos não tinham conhecimento do que o sacerdote falava ou deixava de falar no cânon que, p.ex., os católicos alemães da época da Reforma não perceberam quando os protestantes deixaram de o rezar, invalidando assim as Missas que eles assistiam! Isto é o que é contado pelo Mons. Klaus Gamber no seu livro sobre «A Reforma da Liturgia Romana»: «Quando por exemplo o reformador [Lutero] e seus partidários começaram a suprimir o cânon, ninguém se deu conta, pois, como se sabe, o cânon se dizia sempre em voz baixa» (op. cit., p. 24). O mesmo diz Sta. Catarina de Siena numa passagem d’O Diálogo que eu cito de memória, quando Deus diz à santa que muitos sacerdotes, por estarem em pecado e temerem comer a própria condenação caso comungassem o Santíssimo Corpo de Cristo, simplesmente deixavam de pronunciar as palavras da Consagração quando celebravam Missa. Como ninguém o percebia, o Altíssimo diz ainda à santa que ela poderia se precaver de adorar um simples pedaço de pão quando assistia Missa por meio de uma fórmula de adoração condicional: “adoro-Vos, Senhor, presente nesta Hóstia Consagrada, se este sacerdote pronunciou as palavras que deveria pronunciar”.

2.2. Os católicos medianos não tinham e não têm consciência do que o sacerdote rezava ou reza durante o Offertorium, pois ele, na Missa Antiga e na esmagadora maioria das Missas Novas, é rezado igualmente em voz baixa. Isso tanto é verdade que um sacerdote pode perfeitamente, p.ex., durante a celebração do Novus Ordo, trocar o Ofertório novo pelo tradicional, sem que os fiéis presentes sejam minimamente capazes de perceber a troca. Com semelhante mudança, aliás, a percepção da «dimensão oblativa» da Missa pelos fiéis presentes seria rigorosamente a mesma, sem tirar nem pôr, e uma vez que o acréscimo do Offertorium tradicional à celebração da Missa não é capaz de aumentar nos fiéis o sentido do seu caráter sacrifical, pela mesmíssima razão a sua retirada não pode ter sido capaz de lhes o diminuir.

2.3. É portanto totalmente contrário à realidade pretender que os católicos medianos tenham sido impactados por estas alterações nos livros litúrgicos, uma vez que eles não foram sequer capazes de percebê-las. Neste sentido “catequético”, aliás, a situação da Liturgia Reformada é até melhor, porque antes os fiéis não ouviam nada nem no Offertorium e nem no Canon, e agora continuam sem ouvir nada durante o Ofertório mas ao menos escutam em alto e bom som o Cânon da Missa, especialmente as palavras da Consagração.

2.4. Como todo efeito pede uma causa proporcionada, foge a toda razoabilidade pretender que a supressão de certas orações explicitamente sacrificais que constavam no Rito Tradicional possa ter minimamente afetado a Fé dos católicos comuns, uma vez que estes não as ouviam serem proferidas no Rito Antigo e, portanto, não podem, por óbvio, sentir a falta delas no Rito Moderno. Estas mudanças específicas foram completamente imperceptíveis para o grosso dos fiéis; logo, não podem ter feito jamais com que estes perdessem a Fé.

3. Deve portanto ser procurada em outro lugar a «causa» da perda da Fé dos fiéis médios. Na parte que cabe à crise da Liturgia, penso que esta deve forçosamente ser buscada naquilo que é perceptível aos fiéis, ou seja, não nas mudanças do Ofertório ou do Cânon, mas na sacralidade com a qual o Rito – qualquer que seja ele – é celebrado. Esta é aliás a opinião do então Card. Ratzinger:

“(…) Era de se esperar que os fiéis interpretem a liturgia a partir das formas concretas visíveis, e que sejam determinados espiritualmente por aquelas formas: os fiéis não penetram facilmente na profundidade da liturgia. As contradições e os contrastes que mencionamos não têm origem nem no espírito do Concílio, nem nos documentos conciliares. A ‘Constituição sobre a Sagrada Liturgia’ [do Concílio Vaticano II] não especifica nada sobre celebração virada para o altar ou para o povo; em tema de idioma, a Constituição recomenda que o latim seja mantido, mesmo dando um espaço maior para o vernáculo, ‘especialmente nas leituras e nas admonições, em algumas orações e nos cantos’ (Sacrosanctum Concilium, n. 36,2)”. Portanto, “a diferença entre velhos e novos livros litúrgicos é responsável somente em mínima parte pela crise da liturgia e a crise da Igreja, na qual se encontra há bastante tempo”. O verdadeiro ponto da questão é que houve uma mudança radical de mentalidade sobre a própria natureza da liturgia e até, em última análise, da Igreja. O Cardeal a sintetiza de forma peremptória: “O mistério sagrado foi substituído por uma criatividade selvagem”.

Dag Tessore,
“Bento XVI – Questões de Fé, ética e pensamento na obra de Joseph Ratzinger”,
pág. 85

4. Deste modo, à pergunta sobre «[q]ual foi, concretamente, o efeito da mudança [do texto] nas crenças do povo, na medida em que se pode avaliá-lo?», pode-se responder com bastante segurança: praticamente nulo. O fiel comum tinha pouquíssimo contato com os textos que foram mudados pela Reforma de Paulo VI. Os elementos da Liturgia que ele percebia e percebe mais diretamente sempre foram outros que não o texto: a dignidade dos paramentos, a posição do sacerdote, a língua, o canto. Nenhum desses últimos foi tocado pela Reforma Litúrgica. Não é, portanto, à «diferença entre velhos e novos livros litúrgicos» que se deve creditar a responsabilidade pela perda de Fé do comum dos fiéis.

5. Embora seja possível e útil analisar pormenorizadamente as questões levantadas sobre mudanças nas palavras da Consagração ou supressão dos elementos sacrificais do Offertorium – coisa que poderemos fazer oportunamente -, de antemão é possível dizer já duas coisas que, para o fim a que nos propusemos neste artigo, são mais do que suficientes:

5.1. que não há nenhuma dúvida séria entre os teólogos de que as palavras da Consagração da forma como se encontram hoje no Novus Ordo sejam suficientes para a confecção da Eucaristia e, portanto, as Missas celebradas com estas fórmulas são válidas, e igualmente que o caráter sacrifical da Missa Nova, ainda que ausente do Ofertório, está decerto presente em partes outras da Missa suficientes para lhe caracterizar enquanto culto católico; e principalmente

5.2. que nenhuma dessas mudanças pode ter jamais feito com que os fiéis comuns perdessem a Fé, uma vez que não foram sequer percebidas por eles; e portanto as causas da (inegável) crise de Fé hoje existente devem ser buscadas em outros lugares que não na simples mudança dos «textos» com os quais era celebrada a Santa Missa.

Possam estas considerações demonstrar como são infundadas certas acusações lançadas ao Missal de Paulo VI, como se ele fosse em si mesmo responsável por coisas que – como explicamos acima – não poderia absolutamente atingir nem mesmo que o intentasse explicitamente. Com isso, espera-se que as discussões sobre a [Reforma da] Reforma Litúrgica possam se voltar para os problemas reais e existentes, sem que sejam creditados a ela problemas que absolutamente não lhe cabem – coisa que nada contribui para a apreciação do assunto com a seriedade que ele exige e merece.

Que crédito merecem as especulações sobre quem vai ser o próximo Papa?

Nos últimos dias já me perguntaram uma vez ou outra quem vai ser o próximo Papa, como se eu tivesse a mínima condição de responder a esta pergunta ou como se a minha opinião sobre o governo da Igreja tivesse alguma importância neste momento terrível que estamos vivendo. O conclave vai começar amanhã e a única “dica” que eu posso dar (inclusive e principalmente para mim próprio) é que rezemos com fervor e confiança. Mais do que isso é muito difícil dizer.

Ao contrário do que aconteceu à época da morte de João Paulo II, Bento XVI não me parece ter um “sucessor natural”. Ratzinger foi por muitos anos o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e, principalmente nos últimos anos, o braço direito de João Paulo II; hoje, não existe ninguém que exerça este papel junto a Bento XVI. Isto, aliás, é reforçado pelo próprio fato da renúncia, uma vez que de todos os papas, no final da vida, quando não estão mais em condições de governar a Igreja, pode-se dizer que “deixam” o seu governo, ao menos em linhas gerais, a cargo dos seus colaboradores mais próximos.

Não nos enganemos: é claro que Bento XVI não foi o primeiro Papa a sentir, já próximo do final da vida, a perda do vigor do corpo e do espírito. Todos os Papas que morreram em idade avançada certamente sentiram a mesma coisa. A diferença é que Bento XVI, ao que parece, não se sente suficientemente confortável para deixar a Igreja ser governada a partir dos bastidores, como é natural que aconteça quando o avançar dos anos obriga qualquer monarca a delegar cada vez mais responsabilidades. Bento XVI não tem quem seja para ele o que ele próprio foi para João Paulo II no fim da vida; a frase já foi bastante repetida e, de minha parte, penso que ela faz uma análise correta da situação atual.

Isto, no entanto, parece-me ser o máximo que nos é lícito fazer. Via de regra, a especulação da mídia em torno do nome do próximo Papa tem somente dois objetivos. Primeiro, é uma tentativa pueril de influenciar os cardeais para que escolham (ou não escolham) algum determinado candidato – tentativa que é bastante inócua porque a mídia laica ainda não chegou aos umbrais da política eclesiástica. Não entendem a Igreja Católica e muitas vezes aparentam não A querer entender. Ao contrário da política mundana, o Colégio Cardinalício não se deixa conduzir pelas palavras de ordem do momento, porque um Papa é eleito para servir à Igreja de Deus e não para impôr ao governo da Igreja um programa político-partidário. Embora seja monarca plenipotenciário, o horizonte de ações possíveis de um Romano Pontífice é em certo sentido muito mais restrito do que o de um síndico de prédio ou presidente de associação de moradores.

O segundo objetivo da especulação é igualmente inútil, e pode ser comparado àquilo que faz com que videntes charlatões não percam a chance de espalhar “previsões” genéricas e abertamente chutadas: é a possibilidade de gozarem de algum glamour e prestígio na eventualidade de acertarem alguma delas. Não se enganem: a imprensa, quando diz quem vai ser o provável próximo Papa, está realizando rigorosamente um exercício adivinhatório cujo valor não é maior do que o das previsões de Mãe Dináh para o próximo ano. Sobre este assunto recomendo a leitura deste texto, do qual traduzo o finalzinho:

Luis Badilla Morales, colaborador da Radio Vaticana e observador que há anos navega na internet, observou argutamente que, desde o dia 11 de fevereiro, os nomes dos “papáveis” subiram de 23 para 47 [N.T.: bem mais de um terço do número total de cardeais-eleitores!], embora os mais recorrentes sejam “só” uma dúzia. E não são poucos os seus colegas que se apressam a acrescentar nomes em suas listas pessoais. Deste modo, poderão dizer a seus netos: “Eu o havia previsto!”.

Tentar acompanhar as mudanças de opinião da mídia nesta seara é um exercício extenuante, fútil e vão. Importa mais rezar e fazer penitência para que o Altíssimo nos conceda um Papa santo. Por exemplo, este “ramalhete espiritual” entregue recentemente aos cardeais em Roma – que eu já havia mencionado aqui no blog – tem muito mais valor do que duas centenas de textos de “especialistas” demonstrando por ‘a’ + ‘b’ quem é ou deveria ser o próximo Papa. A única certeza que temos é a de que ele virá, independente do que dissermos ou deixarmos de dizer sobre o seu nome. Amanhã os cardeais-eleitores entrarão na Capela Sistina alheios a todo o burburinho que podemos fazer aqui fora. Esforcemo-nos para lhes ser úteis! E, do extra omnes ao habemus Papam, é somente por meio das nossas orações que podemos ajudar os príncipes da Igreja a escolherem o próximo Vigário de Cristo.

“O Conclave e a Crise” – Dom Fernando Rifan

[Às vésperas do conclave, reproduzo na íntegra este interessantíssimo artigo de D. Fernando Rifan que, sem menosprezar a gravidade da crise atual, ao menos nos revigora com uma lufada de esperança. A Barca de Pedro é sacudida e faz água no mar agitado deste mundo, sim; mas podemos ter a certeza de que o Senhor do mundo – e dono da Igreja! – é mais forte do que o mar revolto. Lembremo-nos de que Ele um dia fez com o que o mar e o vento se calassem a uma ordem Sua; e penso que deve ter desta vez mostrado visivelmente o poder da Sua palavra para que acreditássemos n’Ele quando, de outra vez, sem grandes milagres visíveis, Ele dissesse que as portas do Inferno não prevaleceriam sobre a Sua Igreja.

Amanhã começa o conclave. Rezemos pela Igreja de Deus!]

chamine-capela

O Conclave e a Crise

 A Igreja aqui na terra chama-se militante, quer dizer, continuamente em guerra, contra inimigos internos e externos, ou seja, “em crise”. Mas isso já há dois mil anos! A paz completa só será na Igreja triunfante do Céu, quando a “Barca de Pedro”, após passar pelas ondas do mar bravio desse mundo, chegar ao porto da salvação eterna.

“Para levantar a Igreja do estado de relaxamento e de confusão em que se encontram universalmente todos os níveis, nem toda a ciência e prudência humana conseguem remediar, mas é preciso o braço onipotente de Deus. Entre os bispos, poucos são os que têm verdadeiro zelo pelas almas. As comunidades religiosas, quase todas e mesmo sem o quase, estão relaxadas, porque nas congregações, na presente confusão das coisas, falta a observância e a obediência se perdeu. No clero secular as coisas estão piores e, por isso, faz-se necessária aí uma reforma geral para todos os eclesiásticos, de maneira a reparar a grande corrupção dos costumes, que existe entre os seculares”.

“Por isso é preciso rezar a Jesus Cristo que nos dê um Chefe da Igreja que, mais do que de doutrina e de prudência humana, seja dotado de espírito e de zelo pela honra de Deus, e seja totalmente alheio a qualquer partido e respeito humano, porque se, por nossa desgraça, acontecesse um Papa que não tem apenas a glória de Deus diante dos olhos, o Senhor pouco o assistirá e as coisas, como estão nas presentes circunstâncias, irão de mal a pior”.

“As orações podem trazer remédio a tanto mal, ao obter de Deus que ele mesmo ponha a sua mão e conserte… eu desejaria ver reformados tantos desarranjos presentes… Em primeiro lugar, gostaria que o próximo Papa escolhesse, entre aqueles que lhe serão propostos, os mais doutos e zelosos pelo bem da Igreja… Que se usasse diligência ao escolher os bispos (dos quais, principalmente, depende o culto divino e a salvação das almas), solicitando informações a mais pessoas sobre a sua vida digna e doutrina necessária para governar as dioceses. E que, também para aqueles que já estão em suas igrejas, se exigisse dos metropolitanos e de outros, secretamente, a informação sobre aqueles bispos que pouco atendem o bem de suas ovelhas… Sobretudo, desejaria que o Papa reconduzisse universalmente todos os religiosos à observância do seu primeiro Instituto, pelo menos nas coisas principais… Nada podemos fazer, a não ser rezar ao Senhor, que nos dê um Pastor pleno do seu espírito, que saiba estabelecer estas coisas que acenei brevemente, conforme for mais conveniente à glória de Jesus Cristo”.

Essas considerações acima foram feitas em 24 de outubro de 1774 e são trecho de uma carta de Santo Afonso Maria de Ligório ao Cardeal Castelli, que lhe havia solicitado observações sobre a eleição do novo Papa e os principais abusos que deveriam ser extirpados da Igreja, pretendendo o Cardeal levar a carta ao Conclave próximo. Essa descrição de Santo Afonso nos mostra que as crises na Igreja não são de agora. A “barca de Pedro” já venceu outras tempestades.

“Peçamos com insistência ao Senhor que nos ofereça um pastor segundo o seu Coração, um pastor que nos guie ao conhecimento de Cristo, ao seu amor, à verdadeira alegria” (Cardeal Joseph Ratzinger, na preparação para o Conclave de 2005).

Não, Bento XVI não fracassou como papa

Um pouco instigado pela curiosa peculiaridade intelectual de um comentarista do blog que conseguiu a proeza de recomendar um texto de um autor que acabara de desqualificar, peço licença aos meus leitores para voltar um pouco ao Pondé. Um outro leitor, por email, já me solicitara algumas considerações sobre o mesmo texto; de modo que, tecendo-as agora, procuro atender a ambos.

O texto em questão, que se pretende uma “Análise” do atual pontificado, defende a tese de que Joseph Ratzinger «é brilhante como teólogo, mas fracassou como papa». A análise é terrivelmente injusta e já o digo o porquê; antes, porém, duas palavras sobre o articulista. Não concordo que o Pondé seja simplesmente “do contra”, como foi comentado aqui; parece-me, isto sim, que os seus textos são via de regra pessimistas. Isto não é de per si um demérito; apenas exige um pouco de contraponto, a fim de que a compreensão da realidade não fique prejudicada pelo único viés negativo a partir do qual o colunista costuma escrever os seus textos. Ainda: ser pessimista não implica em ser superficial. Ser levianamente “do contra” é uma invectiva que de modo algum merecem os textos do Pondé, ao menos não os que eu já li e comentei aqui.

Sem mais delongas, ao texto. Não posso concordar mais com o articulista quando ele fala que «Bento 16 foi um duro crítico da ideia de que a igreja deva aceitar soluções modernas para problemas modernos»; ao mesmo tempo, contudo, quando ele fala que «[s]ua ideia de igreja é a de um pequeno grupo coeso de crentes, fiéis ao magistério da igreja (conjunto de normas para condução moral da vida), distante das “modas moderninhas”», não posso discordar mais dele.

Por diversas razões. Primeiro porque o Papa não tem nenhuma “idéia” eclesiológica diferente das diversas definições de “Igreja” que o Magistério multissecular legou à humanidade – e, portanto, em se tratando do Papa Bento XVI, falar em “idéia de Igreja” é até incorreto.

Segundo, porque a referência ao “pequeno grupo coeso de crentes” é recorrente em Ratzinger e não tem, absolutamente, o sentido que Pondé lha dá. Ela aparece, p.ex., n’O Sal da Terra e em Dios y El Mundo (excerto aqui, pág. 43), sempre contraposta à noção de “Igreja de massas” e sempre como constatação do fenômeno moderno da diminuição do número de cristãos no mundo – nunca como um ideal a ser buscado ou um “modelo” de Igreja a ser perseguido.

Terceiro, porque a fidelidade ao Magistério é conditio sine qua non para se pertencer à Igreja, quer se esteja falando de Igreja de massas, quer de minorias. Isto não é uma “visão” ou uma “idéia” exclusiva do Papa Bento XVI, é uma decorrência necessária do significado de “Igreja” dentro do Catolicismo. Não existe e nem pode existir Igreja de outra maneira.

Quarto, porque o Magistério não se refere somente à forma como se deve agir (= “conjunto de normas para condução moral da vida”), mas também e principalmente àquilo em que se deve crer. Sem fazer referência sequer remota à Fé, o articulista induz o leitor a cair na velha dicotomia entre ortodoxia e ortopráxis – ironicamente, tendo sido esta última condenada pelo próprio Cardeal Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, na sua famosa Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação.

Por fim, quinto, porque o “distante das modas moderninhas” que o Pondé emprega para dizer como os cristãos (na alegada visão do Papa!) deveriam agir passa uma forte impressão de sectarismo ou de fuga do mundo, e nada pode ser mais contrário ao Catolicismo do que isso. Os fiéis, embora obviamente devam evitar as más práticas do mundo (do moderno, do renascentista ou do medieval, tanto faz), devem ser para este o fermento que leveda a massa e não têm o direito de se furtar a esta missão. É isso o que diz o Cardeal Ratzinger no Dios y El Mundo citado, falando exatamente sobre a igreja “pequena”:

A Igreja não pode ser um grupo fechado, auto-suficiente. Devemos, sobretudo, ser missionários, no sentido de voltar a propor à sociedade aqueles valores que são os fundamentos da forma legal que a sociedade deu a si mesma, e que estão na base da própria possibilidade de construir qualquer comunidade social verdadeiramente humana. A Igreja continuará a propor os grandes valores humanos universais.

Isto, sim, é o que pensa o Papa Bento XVI – não o que o Pondé resumiu em três linhas que, lidas em si mesmas, chegam às raias da falsificação do pensamento alheio. E, compreendidas as coisas da forma como o Papa as compreende, desaparece o modelo de Igreja fadado ao fracasso ao qual a análise da Folha induzia o leitor desatento. Porque o Papa, diferentemente do Pondé, exala em tudo o que diz o doce e revigorante odor do otimismo cristão.

Sobre a dificuldade do Papa em fazer a Doutrina Católica chegar límpida e pura aos fiéis católicos, o colunista da Folha acerta em cheio ao culpar o “fogo amigo” dos sacerdotes – padres e bispos, em geral. Está certíssimo: a Igreja está repleta de sabotadores internos, que dedicaram os últimos anos a dificultar enormemente o trabalho do Papa Bento XVI. Ao contrário do que insinua o Pondé, no entanto, os fiéis não têm papel significativo neste processo diabólico de boicote doutrinário. Embora eles sejam em sua maioria de «países pobres», disto não segue que estejam «mais próximos de um discurso contaminado pelas teorias políticas de esquerda» – a menos, é claro, que não se esteja falando de uma predisposição sócio-cultural, e sim da mera proximidade dos líderes demagogos de plantão.

O que uma análise mais acurada dos fatos nos mostra é que o êxodo católico no Terceiro Mundo é diretamente proporcional à cantilena marxistóide que substituiu o gregoriano nas nossas igrejas. Os católicos militantes – mesmo aqueles de “países pobres”, e talvez até principalmente estes de países pobres – não suportam o Evangelho falsificado que sói ser hoje em dia pregado nos nossos púlpitos. Nada mudou nesta Terra de Santa Cruz: hoje, como à época do pe. António Vieira, é por culpa dos pregadores que a palavra de Deus não dá fruto nem mesmo nesta abençoada terra em que se plantando tudo dá.

Por fim, sobre os seminários, o Pondé tem toda razão em denunciar o estado lastimável em que eles se encontram, mas comete um enorme erro de perspectiva ao omitir o fato de que, com toda a desgraça, nós estamos hoje incomparavelmente melhores do que há vinte ou trinta anos. Trata-se, mais uma vez, do idiossincrático pessimismo do autor, que o impede de ver os inegáveis avanços concretos que obtivemos nesta questão da educação católica.

É somente este pessimismo, aliás, que o leva a sentenciar que «o papado de Bento 16 fracassou». Ora, mesmo sem considerar as coisas abertamente históricas que ocorreram neste pontificado – a liberação da Missa Tridentina, o levantamento das excomunhões dos bispos da FSSPX, o Ordinariato erigido para os anglicanos -, é forçoso reconhecer que Bento XVI obteve silenciosos sucessos administrativos cuja contribuição para a Igreja será fundamental nos próximos anos: coisas como a demissão de dezenas de bispos, o enfrentamento da pedofilia, a reorganização da Caritas Internationalis, as leis sobre transparência financeira, a transferência dos seminários para a jurisdição da Congregação para o Clero, etc. Como se pode ver, trata-se de um pontificado extraordinariamente profícuo! Sob que ótica é possível dizer que ele “fracassou”? Queríamos, porventura, que todos os chefes de Estado do mundo fossem em romaria ao Vaticano para, de joelhos, jurar vassalagem ao Vigário de Cristo da Terra? Esperar mais do que efetivamente foi feito por Bento XVI não seria um idealismo utópico demais, totalmente irreal dentro das atuais conjunturas?

A provocação final do Pondé é deliciosa, quando ele se refere à Igreja como quem pensa que a vida é «mais do que conforto, prazer e liberdade pra transar com quem quisermos e quando quisermos». Mas a imagem da «Igreja [que] agoniza diante de um mundo que cada vez [Lhe] é mais opaco» é de uma retórica apocalíptica caricata extremamente dispensável. No final das contas, descontados os exageros do texto, é-nos possível vislumbrar um quadro muito mais promissor e reconfortante do que aquele que o Pondé nos pintou originalmente. Oxalá o professor de Filosofia possa perceber a seletividade da sua análise e chegar a uma visão mais equilibrada – e justa! – do que realmente significou, para a Igreja e para o mundo, este pontificado de Bento XVI.

“Não vos conformeis com nada menos do que Cristo” – obrigado, Bento XVI!

Dizem que nós passamos por cinco estágios quando experimentamos uma perda. Na última segunda-feira, dia de Nossa Senhora de Lourdes, quando acordei e soube que o Papa havia renunciado, pude entender isso um pouco melhor.

Praticamente não tive tempo de passar pelo estágio da negação: a internet é implacável. O Papa renunciou: a gente encontra a notícia num comentário do blog, no instante seguinte chega à nota em português da Rádio Vaticana (cujo site – pensamos ainda! – pode ter sido hackeado…), vai no Google e vê o mesmo dito no site da Santa Sé (com um vídeo inclusive), abre o email e percebe que está todo mundo falando disso. Não dá tempo de negar: sim, é verdade, é terrivelmente verdade. Não leva um mísero minuto para o confirmar em definitivo. Neste momento difícil, nem mesmo à dúvida nós temos direito.

Aqui é difícil organizar as idéias. No estágio da raiva, eu provavelmente seria injusto se escrevesse alguma coisa aqui. Afinal, há seiscentos anos que um Papa não renunciava e, obviamente, há alguma boa razão para isso: como apontou muito pertinazmente um amigo por email, o Papa é o Pai dos católicos, e um pai não renuncia jamais. Muitos Papas deixaram-se morrer Papas, e seria mesquinho imaginar que eles não passaram pelas agruras da idade avançada que, hoje, Bento XVI invoca como razão para apresentar a Grã Renúncia. Os Papas morrem Papas, e isso não é por acaso: a figura paterna neles encarnada não é objeto de escambo, de vil utilitarismo impessoal como se a Igreja fosse simplesmente uma grande máquina cujas engrenagens podem ser intercambiadas sem prejuízo do seu funcionamento.

E ainda há tanto por fazer! Não é justo interromper agora a obra de restauração da Igreja de Deus; o Altíssimo é Aquele que não deixa inacabadas as Suas obras e, portanto, não deveria ser lícito ao Seu maior servo fazer aquilo que o seu Senhor é conhecido precisamente por não fazer. Ainda há muito por ser feito, e a convocação de um conclave agora introduz um risco de ruptura no governo da Igreja do qual, no meio da guerra, nós não estamos em condições de nos dar ao luxo. João Paulo II foi Papa por vinte e sete anos, até o último esgar de dor, até a última respiração sôfrega; Bento XVI não está nem perto disso. Poderia perfeitamente ficar por mais tempo.

À fase da raiva segue-se a da barganha, que aqui se transforma meramente em auto-repreensão: eu devia ter rezado mais, ter jejuado com mais constância, ter feito maiores penitências, ter passado mais tempo de joelhos diante de Nosso Senhor Sacramentado; em suma, eu devia ter feito alguma coisa porque, se eu o tivesse feito, Deus teria me ouvido e o Papa ainda seria Papa. Bento XVI pediu-me expressamente para que eu rezasse por ele, a fim de que ele não fugisse por medo dos lobos: eu não rezei e, por minha culpa, propter peccata mea, agora ele está fugindo e nos abandonando.

Abandonando-nos! O declive da auto-repreensão à depressão é óbvio e por ele se vai em um átimo. Aqui não convém demorar-se, que é pecado contra a virtude teologal da Esperança. Apenas registro a sensação de abandono, a impressão de que tudo está perdido, o sabor amargo da derrota que já se pode entrever sob o vão da porta, a dor de ter sido tudo em vão.

Mas Deus é o dono da Sua Igreja e, portanto, não pode ter sido tudo em vão. Aqui a aceitação começa a desabrochar, aqui a dor já começa a dar lugar à serenidade. O Papa não está nos abandonando; na verdade, ele fez tudo o que poderia fazer, e ninguém tem envergadura moral para lhe interpelar e dizer-lhe que retome a cruz sobre seus ombros e continue a subida do Gólgota até o Calvário definitivo. Porque, na verdade, a Cruz sempre esteve em seus ombros, e é somente a nossa miopia sobrenatural que nos impede de perceber esta obviedade.

Lembro-me do último conclave, do primeiro conclave dos meus vinte e muitos anos. Estava na faculdade, e a televisão ligada mostrava a fumaça branca saindo da chaminé da Capela Sistina. Esperei um pouco para ver o anúncio do novo Pontífice, e logo após ouvi pela primeira vez o “Eminentissimum ac Reverendissimum Dominum, Dominum Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem Ratzinger” que me fez vibrar tão profundamente já então e pelos próximos oito anos. Lembro-me com clareza das palavras do Pontífice recém-eleito: un semplice e umile lavoratore nella vigna del Signore. Lembro-me, inclusive, do que pensei à época: claro que era falsa modéstia, claro que ele estava proferindo meramente um discurso protocolar, claro que ele estava só repetindo o que as pessoas esperavam que um Papa dissesse.

Os anos se encarregaram de mostrar que eu estava enganado, terrivelmente enganado, e hoje não me é permitido ter nenhuma dúvida de que o velho Joseph Ratzinger sempre se considerou, verdadeiramente, um simples e humilde trabalhador da vinha do Senhor, que ele parece não ter a menor consciência da própria genialidade absolutamente insubstituível. A verdade é que o professor de teologia não queria outra coisa que não lecionar na obscuridade incógnita de alguma sala de aula empoeirada.

E eu penso entendê-lo. Li em algum lugar esta excelente metáfora: Ratzinger só queria dar aulas, mas Deus quis que o mundo inteiro fosse a sua sala de aula. Penso que talvez ao velho professor alemão incomode a sua autoridade pontifícia, como penso que deve incomodar a qualquer professor outra obrigatoriedade de ouvi-lo que não a da própria verdade que ele deseja ensinar. Mas ele engoliu o seu incômodo e ensinou-nos; por oito anos nos ensinou a amar a Cristo! Isto é um sacrifício quotidiano que não se pode olvidar.

Li muitas coisas ao longo da semana, e talvez um dos textos que mais me tocou foi este aqui. Há uma sua tradução para o português no Facebook, da qual me utilizo para a seguinte citação:

Mas agora sei, senhor Ratzinger, que vivo em um mundo que vai sentir falta do senhor. Em um mundo que não leu seus livros, nem suas encíclicas, mas que em 50 anos se lembrará como, com um simples gesto de humildade, um homem foi Papa, e quando viu que havia algo melhor no horizonte, decidiu partir por amor à sua Igreja. Vá morrer tranquilo senhor Ratzinger. Sem homenagens pomposas, sem um corpo exibido em São Pedro, sem milhares aclamando aguardando que a luz de seu quarto seja apagada. Vá morrer, como viveu mesmo sendo Papa: humildemente.

E percebo que é verdade. Alguém classificou Bento XVI como o Papa do básico da Fé Cristã, e a análise não é injusta. Estive com o Papa na última JMJ. Do discurso que ele não pronunciou em Cuatro Vientos por causa da chuva, recolho esta simples sentença que, pra mim, resume muito o pontificado do Papa teólogo:

Queridos jovens, não vos conformeis com nada menos do que a Verdade e o Amor, não vos conformeis com nada menos do que Cristo.

Simples e básico, mas nem por isso menos verdadeiro. Nem por isso menos importante. De repente, percebo que as pessoas não precisam ser extraordinárias para serem insubstituíveis, e o que vai fazer mais falta ao mundo será o jeito sereno e didático de Bento XVI falar as verdades mais básicas, das quais o mundo moderno anda ensandecidamente esquecido. De repente, percebo que a renúncia do Papa não tem nada de inusitada, muito pelo contrário até: está perfeitamente de acordo com o estilo do professor da Baviera, cuja genialidade noto decorrer precisamente da pouca conta em que ele tem a si próprio.

Sim, o velho alemão não subiu ao sólio pontifício para ser nosso Rei: apenas sentou-se na cátedra de Pedro para nos dar uma lição de amor a Deus. E levanta-se dela agora que a aula está terminada exatamente porque sabe que a lição é mais importante do que o professor, e não pode correr o risco de que os seus alunos se esqueçam disso. Na verdade, esta renúncia final é parte integrante do seu ensinamento, sem a qual ele não estaria completo. Por mais que Bento XVI seja grande, Aquele de quem o Papa é vigário é muito maior do que ele. Afinal, maldito é o homem que confia no homem, mesmo que este homem seja Joseph Ratzinger. À luz de tudo isso, é claro que o Sumo Pontífice não está fugindo de sua missão, antes a está consumando com uma fidelidade perturbadora. O Papa não deita a cruz ao chão para que outro a carregue, muito pelo contrário: acrescenta-lhe o peso da incompreensão e do ostracismo. Impossível negar o valor sobrenatural deste último sacrifício.

O referido modelo de Kübler-Ross termina no estágio da aceitação, mas a Fé Cristã nos impele a transcender este caminho natural. Ouso ir além e proclamar um outro estágio, talvez incompreensível para os homens modernos, mas que o Cristianismo chega a exigir: o estágio da gratidão. Impossível não volver os olhos para o velho Papa dessa maneira.

Obrigado, Santo Padre, por nos ter aceitado como seus alunos. Obrigado por ter consumido os últimos anos na luta quotidiana contra a sua natureza introspectiva, a fim de ser para nós o que Deus o chamava a ser. Obrigado por nos ter falado de Deus mais do que merecíamos escutar, e com a simplicidade insistente que mesmo a nossa cegueira era capaz de entrever. Obrigado por ter tantas vezes escondido a própria excelência, a fim de que a Fé resplandecesse com mais vigor. Obrigado, ainda, por nos deixar, a fim de que revigoremos a nossa Esperança; obrigado por passar a férula papal, a fim de que seja conhecido Quem, afinal, é o verdadeiro Guia da Igreja de Cristo. Obrigado, enfim, por toda uma vida dedicada a Deus e à Sua Santa Igreja, em agradecimento pela qual a tristeza que hoje nos provoca a sua renúncia é talvez o testemunho mais sincero que podemos prestar.

Obrigado, Bento XVI. O incomensurável bem realizado por Vossa Santidade ao longo dos últimos oito anos já reverbera na Eternidade, à cuja Luz eu rogo à Virgem Santíssima que não o cesse de conduzir jamais.

O destempero e despreparo dos que defendem o “casamento gay”

O deputado Jean Wyllys voltou a subir nas tamancas para proferir ataques grosseiros à Igreja Católica e ao Papa Bento XVI. O último “piti” do excelentíssimo deputado ocorrera em janeiro deste ano, e nós tratamos então exaustivamente do assunto aqui no blog. Na última sexta-feira (14 de dezembro) o deputado iniciou nova saraivada de invectivas com esta postagem do Twitter, à qual seguiram-se outras com a sua já característica deselegância.

O Ecclesia Una fez a cobertura, e é dele que colho o seguinte printscreen com as delicadezas proferidas por um suposto representante do povo brasileiro (ainda facilmente acessíveis a partir de sua timeline, se a rolarmos um pouco para baixo):

jean-wyllys-xingando-no-twitter

A origem do ataque histérico foi esta matéria, que falava sobre a Mensagem Pontifícia do XLVI Dia Mundial da Paz (contra ela, aliás, o Jean Wyllys não foi o único a se levantar). Analisemo-la com um pouco mais de atenção (coisa que o excelentíssimo deputado se furtou de fazer).

Em sua mensagem, o Papa começa lembrando que o nosso tempo – marcado «por sangrentos conflitos ainda em curso e por ameaças de guerra» – requer a busca «[d]o desenvolvimento de todo o homem e do homem todo». Falando especificamente sobre a Paz, Sua Santidade diz:

A paz é construção em termos racionais e morais da convivência, fundando-a sobre um alicerce cuja medida não é criada pelo homem, mas por Deus.

E, logo em seguida, repetindo e desenvolvendo a mesma idéia:

A negação daquilo que constitui a verdadeira natureza do ser humano, nas suas dimensões essenciais, na sua capacidade intrínseca de conhecer a verdade e o bem e, em última análise, o próprio Deus, põe em perigo a construção da paz. Sem a verdade sobre o homem, inscrita pelo Criador no seu coração, a liberdade e o amor depreciam-se, a justiça perde a base para o seu exercício.

Finalmente, o Papa chega ao ponto que provocou urticária no deputado:

Também a estrutura natural do matrimónio, como união entre um homem e uma mulher, deve ser reconhecida e promovida contra as tentativas de a tornar, juridicamente, equivalente a formas radicalmente diversas de união que, na realidade, a prejudicam e contribuem para a sua desestabilização, obscurecendo o seu carácter peculiar e a sua insubstituível função social.

O argumento do Papa é rigoroso: a paz é o exercício da convivência, e esta precisa estar alicerçada em critérios objetivos e válidos para todos. O que aliás é bastante óbvio: se a gente não entra em acordo sobre quais são os direitos e deveres do ser humano, é impossível arbitrar os conflitos surgidos e é impossível haver paz. Estes critérios – diz o Papa – são essencialmente aquilo que «constitui a verdadeira natureza do ser humano», e esta identifica-se com a antropologia cristã da qual a Igreja age há vinte séculos como porta-voz.

No mundo há os não-crentes e, por certo, há os que não reconhecem à Igreja de Cristo autoridade alguma para sentenciar a «verdadeira natureza do ser humano». Isto, no entanto, não invalida o argumento: trata-se na verdade de um tema caro ao Papa Bento XVI já há muitos anos. Segundo o então cardeal Joseph Ratzinger:

[A] tentativa, levada ao extremo, de considerar as coisas humanas menosprezando completamente Deus nos leva cada vez mais ao abismo, ao encerramento total do homem. Deveríamos, então, voltar ao axioma dos Ilustrados e dizer: mesmo quem não consiga encontrar o caminho da aceitação de Deus deveria buscar viver e dirigir sua vida “veluti si Deus daretur”, como se Deus existisse. Este é o conselho que dava Pascal a seus amigos não crentes; é o conselho que queríamos também dar a nossos amigos que não crêem. Deste modo, ninguém fica limitado em sua liberdade e nossa vida encontra um novo sustentáculo e um critério cuja necessidade é urgente.

É possível discordar do Papa, naturalmente. Mas é preciso fazê-lo no plano dos argumentos e dos fatos que ele coloca; ninguém diga que isto é uma alegação gratuita, porque não é. É a conclusão de um longo e  minucioso arrazoado (que pode ser visto no link acima) feito por um homem que, para além de quaisquer reservas teológicas contra o qual se tenha, é um intelectual de peso e renome. Evidentemente, não se pode discordar do Papa dando um chilique afetado e desfilando meia-dúzia de calúnias históricas que absolutamente nada têm a ver com o tema em pauta. Isto só mostra o destempero e despreparo dos que defendem o “casamento gay” e demais pontas de lança da revolução moral. E, mais uma vez, só demonstra que o Papa está com a razão.

P.S.: Quem quiser fazer uma reclamação oficial à Câmara dos Deputados contra esta (mais uma!) quebra de decoro do deputado Jean Wyllys, não hesite em usar o site da Câmara.

Abertura do Ano da Fé

A Fé é aquela virtude teologal pela qual o indivíduo humano, movido pela graça divina, presta a adesão do seu intelecto e da sua vontade às verdades reveladas por Deus e propostas pela Igreja. A definição é talvez a mais clássica possível; no entanto, longe de se encontrar desgastada pelo uso ao longo dos séculos, reveste-se de uma – imperecível! – luminosa vitalidade também nos dias de hoje, somente à luz da qual o homem dos tempos modernos pode encontrar a Deus e, encontrando-O, descobrir o verdadeiro sentido da sua existência e realizar plenamente a sua vocação nesta terra.

Vivemos em uma terrível crise de Fé: imagino que ninguém o ignore. No entanto, o que eu percebo que muitas vezes se ignora é o significado mais profundo desta crise. Muitas vezes costuma-se percebê-la como a simples falta de clareza na expressão do Dogma católico, não raro com injustas e pouco reverentes acusações aos Legítimos Pastores da Igreja – o Sumo Pontífice em particular – e ao próprio Magistério Católico recente. Isto, no entanto, é perder de vista o essencial. Sem (absolutamente!) desprezar o valor das formulações dogmáticas históricas, é preciso ter sempre em mente que o Depositum Fidei não se confunde com elas. A Fé pressupõe esta colaboração entre dois elementos: por um lado o dogma católico (mediante a sua formulação) e, pelo outro, a razão humana que livremente lhe presta assentimento. Tenho a impressão de que hoje muitas vezes se insiste em demasia nas deficiências da formulação dogmática, sem no entanto prestar atenção à malícia humana que, por conta do pecado, insiste em rejeitar o conteúdo da Fé.

A mais perfeita e cristalina exposição da Doutrina Católica não seria capaz de, sozinha, produzir nas almas a virtude da Fé: este é um fato incontestável que decorre imediatamente da própria definição de “Fé” como resposta livre e pessoal ao Deus que Se revela e que convida a crer. Temos problemas com a exposição sistemática da Fé Católica? Sem dúvidas que sim! No entanto, temos também o problema – no meu entender ainda mais grave do que o anterior – de uma humanidade orgulhosa e fechada à transcendência, sem interesse algum pelo dogma católico (bem ou mal formulado).

Hoje é a abertura do Ano da Fé. Sem dúvida, e isto provavelmente nunca será repetido tanto quanto necessário, é preciso insistir na clareza da exposição da Fé (acessível aos homens e livre de erros ou interpretações equivocadas); mas é também da mais alta importância cultivar a “sede de Deus” dos homens, aquela santa inquietação da qual Santo Agostinho fala tão maravilhosamente ao dizer que o coração dos homens – criados para Deus! – vive inquieto enquanto não repousa n’Ele. Hoje, os erros em matéria religiosa são muito mais básicos do que o foram historicamente: enquanto uma heresia é uma opção visceral – ex imo cordis – por uma doutrina errônea, o relativismo dos dias modernos é a negação da própria necessidade de se aderir a qualquer doutrina, errônea ou não. Um herege ao menos entende a importância de se crer em alguma coisa, e erra somente quanto ao objeto da sua crença; muitos dos homens de hoje em dia, ao contrário, não têm sequer este sentido da importância de crer em algo. É por isso que, para estes, debruçar-se sobre o conteúdo específico e detalhado da Fé é não apenas inútil como também maçante. Há, hoje em dia, a exigência de um trabalho (geralmente árduo e demorado) de, antes de dizer aos homens no que eles devem ter Fé, convencê-los simplesmente de que eles devem crer. É por isso que a questão da clareza do dogma é somente uma parte do problema atual: de nada adianta expôr perfeitamente uma doutrina a quem não se convenceu ainda de que precisa de uma. Ambas as questões merecem a nossa atenção.

No dia de hoje, vale ainda fazer referência a quatros textos que, embora bem diferentes entre si, guardam estreita relação com este Annus Fidei que hoje se inicia. São eles:

1. O motu proprio Porta Fidei, com o qual se proclama o Ano da Fé: «Como se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a vontade a quanto é proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico revelado por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se acredita, se aceita livremente todo o mistério da fé, porque o garante da sua verdade é o próprio Deus, que Se revela e permite conhecer o seu mistério de amor».

2. Este texto inédito de Bento XVI por ocasião do 50° aniversário do Concílio Vaticano II: «Os Padres conciliares não podiam nem queriam criar uma Igreja nova, diversa. Não tinham o mandato nem o encargo para o fazer: eram Padres do Concílio com uma voz e um direito de decisão só enquanto bispos, quer dizer em virtude do sacramento e na Igreja sacramental. Então não podiam nem queriam criar uma fé diversa ou uma Igreja nova, mas compreendê-las a ambas de modo mais profundo e, consequentemente, «renová-las» de verdade. Por isso, uma hermenêutica da ruptura é absurda, contrária ao espírito e à vontade dos Padres conciliares».

3. A homilia do Santo Padre na Missa de hoje da abertura do Ano da Fé: «É por isso que repetidamente tenho insistido na necessidade de retornar, por assim dizer, à «letra» do Concílio – ou seja, aos seus textos – para também encontrar o seu verdadeiro espírito; e tenho repetido que neles se encontra a verdadeira herança do Concílio Vaticano II. A referência aos documentos protege dos extremos tanto de nostalgias anacrônicas como de avanços excessivos, permitindo captar a novidade na continuidade. O Concílio não excogitou nada de novo em matéria de fé, nem quis substituir aquilo que existia antes. Pelo contrário, preocupou-se em fazer com que a mesma fé continue a ser vivida no presente, continue a ser uma fé viva em um mundo em mudança».

4. Este texto de Dom Fernando Rifan chamado “A Fé em perigo”. «Quando estava em Roma, no ano 2001, assisti admirado, na Praça de São Pedro, à chegada de milhares de fiéis do movimento Kolping, vindos da Alemanha, sobretudo homens, cantando com entusiasmo contagiante. Comentei então com um Cardeal alemão que estava ao meu lado: “Diante disso, Eminência, não se pode dizer que a Alemanha não seja um país católico!” Ele, porém, observou, acalmando um pouco o meu entusiasmo: “É, mas a Fé sempre corre perigo!”. Era o Cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé».

E que a Virgem Santíssima, Mãe de Deus e da Igreja, conceda-nos muitas graças ao longo deste ano que hoje se inicia. Que Ela nos faça crescer sempre em estatura, sabedoria e graça diante do Seu Divino Filho.

Illum oportet crescere

Hoje é a festa de Exaltação da Santa Cruz e, no dia de hoje, nada mais eloqüente do que divulgar esta foto do revmo. pe. Demétrio Gomes celebrando a Santa Missa, que o próprio sacerdote compartilhou recentemente em seu álbum do Facebook.

A fotografia ficou simplesmente perfeita: a Hóstia Consagrada ao centro e em foco, o sacerdote elevando-a piedosamente e – mais importante! – o rosto do sacerdote, erguido em direção a Cristo Crucificado que ele segura em suas mãos, oculto pelo grande crucifixo que se encontra sobre o altar.

Muita coisa já foi dita sobre a conveniência de se manter sobre o altar esta cruz que esconde a figura do padre; a quem se interessar pelo assunto, recomendo esta conferência do Mons. Guido Marini, bem como estes excertos de livros do Card. Ratzinger falando sobre a Cruz no centro do altar. De minha parte, quero apenas comentar o quão adequada me parece a frase do Evangelho de São João que dá título a este artigo: illum oportet crescere, i.e., “importa que Ele cresça”: é São João Batista falando de Nosso Senhor.

Eu conheci esta frase muito antes de conhecer qualquer outra coisa de latim, porque ela está gravada em grandes letras douradas no altar da Matriz de Nossa Senhora do Rosário, onde – criança ainda – comecei a participar da Santa Missa e para onde, depois de adulto, voltei para me crismar e para trabalhar na catequese. Embora a paróquia da Torre seja antiga, eu desde criança sempre vi este altar exatamente deste jeito e, portanto, não sei dizer se ele é o altar original que foi separado da parede após a Reforma Litúrgica ou se, ao contrário, foi feito especificamente para as novas disposições arquitetônicas dos anos 70. Sei que, de um modo ou de outro, ele se presta a traduzir de modo excelente uma das razões pelas quais, antigamente, o padre celebrava o Santo Sacrifício “de costas para o povo” e, hoje, é conveniente colocar um Crucifixo no meio do altar: importa que Ele cresça, isto é, o que se deve buscar na celebração da Santa Missa – e, p.ext., na nossa vida cristã – é que Cristo apareça diante de todos, é que Ele refulja e seja o centro de todas as atenções.

O centro da Santa Missa não é o sacerdote. Na Santa Missa, o essencial (fazendo uma paráfrase involuntária de Saint-Exupéry) é invisível aos olhos: é Cristo, Sacerdote e Vítima, que Se oferece à Trindade Santa em expiação pelos nossos pecados. É o Sacrifício da Cruz que Se faz presente de maneira incruenta. E a melhor maneira de chamar a atenção para o que é permanente e invisível é tirar a atenção daquilo que é mutável e visível: é esconder o sacerdote. A melhor maneira de fazer Cristo crescer é exatamente aquela que se encontra na seqüência da frase de São João Batista: me autem minui, “que eu diminua”. Esconda-se, portanto, o sacerdote durante a Consagração, para que somente Cristo Eucarístico apareça: esconda-se o sacerdote com a casula romana nas suas costas enquanto ele se inclina versus Deum para consagrar, ou se o esconda por detrás do Crucifixo no centro do altar quando ele celebra de frente para o povo, o que seja, mas que ele seja escondido para que Cristo cresça! É este o verdadeiro espírito da Liturgia que urge ser resgatado.

E nesta Festa de Exaltação da Santa Cruz – mesmo dia, aliás, em que se comemora o 5º ano de entrada em vigor do motu proprio Summorum Pontificum, que autoriza a celebração da Santa Missa na forma antiga – é uma alegria poder compartilhar o testemunho de sacerdotes zelosos pelas coisas do alto. Sacerdotes comprometidos com o resgate da sacralidade litúrgica na Igreja de Deus. Sacerdotes que, à semelhança de São João Batista, perceberam que é importante Cristo crescer, e que isto só é possível se eles próprios estiverem dispostos a diminuir.

Sim, o casamento gay é nocivo ao progresso da sociedade humana. São as próprias atitudes dos homossexuais que o demonstram

O Papa não disse nenhuma novidade anteontem ao se “pronunciar contra o casamento gay”. Eu já disse e repeti aqui diversas vezes que a Igreja já emitiu estas mesmíssimas opiniões naquelas Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais de 2003 – quando o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé era ainda o então Cardeal Ratzinger, hoje Papa Bento XVI gloriosamente reinante. E, neste documento, é-nos possível encontrar muito claramente a posição da Igreja Católica (por conta da qual os hipócritas rasgam as vestes hoje, como se o Papa estivesse falando alguma coisa inesperada e inaudita). Por exemplo, no seu número 8:

As uniões homossexuais não desempenham, nem mesmo em sentido analógico remoto, as funções pelas quais o matrimónio e a família merecem um reconhecimento específico e qualificado. Há, pelo contrário, razões válidas para afirmar que tais uniões são nocivas a um recto progresso da sociedade humana, sobretudo se aumentasse a sua efectiva incidência sobre o tecido social.

No entanto, as manchetes dos jornais dos últimos dias noticiavam com estardalhaço: o Papa dissera que o casamento gay ameaça a humanidade! Rapidamente todos os defensores das idéias modernas (aquelas pessoas para as quais, na feliz comparação que vi no Facebook dia desses, ter “uma mente aberta” significa concordar completamente com tudo o que elas dizem) começaram a protestar. Com celeridade se revelou (pela n-ésima vez) a incrível e hipócrita intolerância dos que exigem que sejamos todos tolerantes. Por exemplo, o conhecido deputado Jean Wyllys cuspiu no seu Twitter as seguintes pérolas de caridade fraterna e de respeito à diversidade:

É com esta lista enorme de gentilezas que os inimigos da civilização tratam os que discordam de suas idéias doentias. Questionar se os que matam homossexuais não são os seus próprios (ex-)parceiros homossexuais é um absurdo homofóbico inadmissível em uma sociedade civilizada; chamar abertamente o líder da Igreja Católica de simpático ao nazismo e acobertador de pedófilos é legítimo exercício do direito à liberdade de expressão. Quando a gente fala que pedofilia e homossexualismo andam de mãos dadas, somos uns ignorantes desonestos espalhando mentiras pela internet; quando eles associam aberta e gratuitamente a pedofilia aos “membros da Igreja”, não estão de maneira alguma fazendo um discurso de ódio – e sim divergindo civilizadamente de pessoas que eles sem dúvidas tratam da mesma maneira que exigem ser tratados. A hipocrisia dessa gente é assustadora.

Mas voltemos ao discurso de Sua Santidade ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé. O ponto que gerou polêmica foi este aqui:

A educação é um tema crucial para todas as gerações, pois depende dela tanto o desenvolvimento saudável de cada pessoa como o futuro da sociedade inteira. Por isso mesmo, aquela constitui uma tarefa de primária grandeza num tempo difícil e delicado. Para além de um objectivo claro, como é o de levar os jovens a um pleno conhecimento da realidade e, consequentemente, da verdade, a educação tem necessidade de lugares. Dentre estes, conta-se em primeiro lugar a família, fundada sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher; não se trata duma simples convenção social, mas antes da célula fundamental de toda a sociedade. Por conseguinte, as políticas que atentam contra a família ameaçam a dignidade humana e o próprio futuro da humanidade. O quadro familiar é fundamental no percurso educativo e para o próprio desenvolvimento dos indivíduos e dos Estados; consequentemente, são necessárias políticas que o valorizem e colaborem para a sua coesão social e diálogo.

Nada de novo sob o sol, Bento XVI não disse esta semana nada que já não estivesse dito no documento de 2003. O Papa é contra o “casamento” gay? É claro que é, ora bolas, e daí? Todo mundo é porventura obrigado a rezar pela cartilha gay? Estes intolerantes gayzistas fanáticos não são capazes de conviver civilizadamente com os que discordam de suas opiniões disparatadas? Por acaso as depravações do estilo-de-vida homossexual precisam ser aplaudidas por todo mundo, de tal modo que não haja espaço para uma única voz dissoante? Poucas vezes o “acuse-os do que você é e xingue-os do que você faz” foi empregado com tanta clareza e tanto cinismo quanto nas atitudes do Movimento Homossexual! Se restava ainda alguma dúvida de que a promoção do Gayzismo era danosa à sociedade, esta virulência intolerante e anti-civilizada da militância gay demonstra de forma cabal os perigos de se conferir direitos ao vício e privilégios ao comportamento contrário à natureza.

O racha doutrinário na CNBB: o Papa x “os tempos atuais”

CNBB vive racha político. Sim, o título da reportagem é esse mesmo. Foi publicada n’O Globo de hoje (12 de maio de 2010) e reproduzida, além de pelo IHU, aqui no Clipping do TSE.

“Racha político”! É possível ver os dois lados da moeda. Por um lado, é terrivelmente doloroso que os nossos bispos não estejam unidos, para mais eficazmente proteger o povo católico nestes tempos difíceis nos quais vivemos. Por outro lado, para quem conhece o histórico da CNBB… graças a Deus que há discordância! E discordância pública. Estávamos acostumados a ver, na CNBB, a perfeita concordância dos sucessores de Iscariotes. Hoje – dizem-nos as notícias que nos chegam – há discordância. Nem todos querem ser pusilânimes. Nem todos querem ser vendidos. Nem todos querem trair Nosso Senhor. Louvado seja Deus!

Lendo a reportagem, nós podemos perceber que o racha não tem nada de político. É teológico, é doutrinário; é o racha entre os bispos que querem servir a Deus e os que querem servir ao mundo, entre as sentinelas fiéis e as relapsas. Repito: graças a Deus que a discordância é pública! Que a Virgem Santíssima fortaleça os prelados fiéis. Eles vão precisar de nossas orações.

O racha não é político. Veja-se a reportagem: “Bispos influentes decidiram agir para evitar a politização da entidade e esvaziar o ressurgimento de grupos com atuação de esquerda”. Ora, tais grupos são os adeptos da Teologia da Libertação de cunho marxista, já repetidas vezes condenada por Roma. Tais grupos são socialistas, e o socialismo já foi incontáveis vezes condenado pela Igreja. Portanto, não estamos diante de uma sadia e lícita divergência política. Estamos falando de uma profunda e irreconciliável cisão doutrinária: há os que querem ser fiéis à Cidade Eterna, e há os que querem trair a Igreja.

E as palavras de Dom Demétrio Valentini ecoam-me nos ouvidos de uma maneira particular, com um misto de dor e deleite. Dor, porque ele atribui um “certo fundamentalismo incompatível com os tempos atuais” aos bispos bons e fiéis que – nas palavras de Dom Demétrio – “querem mandar o plano [Nacional de Direitos Humanos] e o Lula para o inferno”. Mas deleite, porque eu já ouvi esta expressão antes. Há cinco anos. Na missa Pro Eligendo Pontifice. Pronunciadas pelo então cardeal Ratzinger, hoje Papa Bento XVI gloriosamente reinante. Eis o que disse o então cardeal:

Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar “aqui e além por qualquer vento de doutrina”, aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos.

E encaixa-se como uma luva, porque rejeitar o PNDH-3 é precisamente ter uma Fé clara – que não aceita conluios promíscuos e exige a linguagem do “sim, sim, não, não”. Não estamos falando de picuinhas políticas, e sim de fidelidade a Cristo, pois é quase como se não existisse ponto da Doutrina Social da Igreja – e também da Moral – que não seja espezinhado pelo Plano de Direitos Humanos do governo: defesa do aborto, legalização da prostituição, repúdio a símbolos religiosos públicos, louvores ao gayzismo, ofensas à família, atentados à propriedade privada, ultraje à memória nacional, ataque ao ensino religioso, viés totalitário, ideologia comunista… O que Dom Demétrio quer “salvar” no meio deste compêndio de anti-catolicismo? Será preciso ser um “fundamentalista” retrógrado para perceber que as coisas boas do PNDH-3 estão irrecuperavelmente viciadas e contaminadas pelo veneno do qual ele está embebido de uma ponta a outra?

Para Dom Demétrio, então, a Fé da Igreja é “incompatível com os tempos atuais”. Logo, é o discurso de Dom Demétrio que é incompatível com a Igreja Católica. O paralelo – às avessas – com a homilia daquele que viria logo depois a sentar-se no Trono de Pedro é notável, e é triste. Mas ao menos revela que há, entre os bispos, hoje, no Brasil, aqueles que se alinham com o sucessor de Pedro. Rezemos por estes. Que a Virgem Santíssima possa ser em seu favor.

Sobre o mesmo assunto: De O Globo, com comentários – 48ª Assembléia Geral da CNBB e o PNDH-3