Aborto e Reforma do Código Penal: comentarista opõe os anseios da população à democracia do Brasil (!)

Os nossos comentaristas políticos são engraçados. Hoje pela manhã eu ouvia, na CBN, o Kennedy Alencar falar sobre o anteprojeto de Reforma do Código Penal que está tramitando no Senado. A fala dele foi um misto de loas ao trabalho dos juristas e lamentos pelos nossos senadores – os quais, na opinião dele, não permitirão que o Novo Código Penal seja aprovado do jeito que está.

O Kennedy reservou a maior parte do seu tempo na rádio para falar sobre a proposta “mais polêmica”, que é a de legalização do aborto até os três meses. Entre mal-disfarçados esgares de desprezo para com os conservadores fundamentalistas que cometem o bárbaro crime de ser contra o extermínio de bebês no ventre de suas mães (a propósito, para quem não sabe, um bebê de doze semanas se parece com este aqui), o comentarista teve ao menos a decência de lembrar, verbis, que este «é o Senado em quem a gente votou, [e] portanto ele tem toda a legitimidade, ele representa o Brasil». Não obstante, ele ainda assim foi capaz de concluir a sua fala enfatizando o seu pesar pela (prevista) não-aprovação do anteprojeto, dizendo que ele é uma «proposta muito boa, que moderniza e faz o Brasil avançar como Democracia».

Ora, se o Senado é hostil a esta proposta de Reforma do Código Penal e o Senado representa legitimamente a população brasileira, isto só pode ser porque o próprio povo brasileiro – como as pesquisas demonstram à exaustão – não concorda com estas propostas “polêmicas” que uma minoria do Congresso quer impôr a toda a população. Assim, torna-se inexplicável por quais obscuros e esotéricos meios seria possível que a aprovação de uma proposta abertamente rejeitada pela maioria dos brasileiros fosse, ao mesmo tempo, um avanço para a democracia. A contradição é tão aberrante que só pode significar uma de duas coisas: ou o comentarista da CBN não faz a menor idéia do que está falando (e aí não se preocupa em se contradizer dentro de quatro minutos) ou então, para esta gente, “democracia” é apenas um chavão vazio de significado e que não tem, absolutamente, nada a ver com os anseios da população de um certo país: “democracia” é como se fosse um mantra ou um talismã que deve ser invocado no debate público sempre que se deseje buscar apoio para a bobagem ideológica da vez. A “Democracia” assim entendida pode perfeitamente estar dissociada da vontade política de um povo ou até mesmo ser contrária a ela, não importa: ela é somente um fetiche a ser empregado em favor da idéia (de jerico que seja) que alguém deseje vender em um dado momento.

Entre outras incríveis razões pelas quais esta Reforma do Código Penal seria muito boa, na opinião expressa do Kennedy Alencar, estão:

  • tornar a homofobia crime inafiançável;
  • endurecer a lei seca (permitindo que o motorista responda pelo crime de dirigir embriagado somente com o testemunho do guarda de trânsito); e
  • fazer com que deixe de ser crime plantar, portar ou guardar droga para consumo pessoal.

E olhe que ele nem falou da eutanásia…

Ora, com um tão grande número de propostas tão abertamente estranhas à cultura brasileira, fica claro que apenas gente do naipe do Dipp pode ter a cara-de-pau de dizer que estas propostas são equilibradas. O mesmo Dipp, aliás, ao qual o comentarista da CBN não poupou elogios: é um “homem sério” que “não deixou nenhum tabu de lado” nesta reforma do Código Penal. De novo: como é possível que uma coisa seja ao mesmo tempo “equilibrada” e “não deixe nenhum tabu de fora” é outro dos arcanos da fantástica capacidade de conciliação de paradoxos exercida com tanta maestria por nossos governantes. Nós é que não conseguimos enxergar isso.

Porque, na opinião do Kennedy Alencar, nós somos meros ignorantes dignos de pena. Nas palavras dele, o nosso Legislativo está repleto de «senadores muito fracos, como o Magno Malta», o qual «é só um exemplo de um grupo de senadores e de deputados que reúnem o conservadorismo à ignorância, o que a gente tem de pior no Congresso Nacional». O problema é que nós temos a irritante mania de manter a coerência dos nossos posicionamentos, habilidade que parece estar tão atrofiada nos progressistas que nos deixa de cabelo em pé. Dou só um exemplo e, com ele, encerro.

O comentarista da CBN fez questão de lembrar (com uma entonação de voz de quem está descobrindo a pólvora) que «a legalização [do aborto] não obriga a mulher a interromper a gravidez: ainda vai continuar sendo uma decisão dela, de foro íntimo». É inacreditável: eu fico pensando se ele está fazendo somente uma declaração hipócrita ou se, ao contrário, ele realmente acredita que não passou pela cabeça de ninguém que a descriminalização do aborto faz com que cada mulher possa decidir abortar ou não! Como se – agora, sim! – fizesse uma enorme diferença e os anseios dos brasileiros que acreditamos ser errado abortar estivessem plenamente respeitados.

Alguém avise a este sujeito que ser contra o aborto é acreditar que é moralmente errado matar crianças no ventre de suas mães, e que – por óbvio – não tem nenhum cabimento se dizer “contra o aborto” e aceitar tranqüila e alegremente que as pessoas possam abortar impunemente! Ninguém é contra o aborto, meu caro senhor, como quem não gosta de brócolis ou de caminhar na praia, que aí tanto faz se fulanos ou sicranos fazem isso ou não. É-se contra o aborto como se é contra o roubo, o assassinato ou a escravidão: não faz nenhum sentido tornar o aborto “facultativo” da mesma maneira que não fazia nenhum sentido dizer (p.ex.) aos abolicionistas do século XIX que eles ficassem “tranqüilos” porque a legislação atual não “obrigava” ninguém a ter escravos, mas somente dava a cada um a capacidade de decidir tê-los ou não. Esta “argumentação” só tem sentido na cabeça de quem já é a favor do aborto, pois somente uma coisa que é indiferente pode ser objeto de liberdades individuais. Uma coisa que é intrinsecamente errada – como roubar ou abortar – não pode ser ao mesmo tempo um direito de ninguém. Nós acreditamos que abortar não é indiferente. É incrível como alguém que não tem capacidade de entender uma obviedade dessas se ache mais gabaritado do que a população brasileira para saber o que é ou não é melhor para a democracia do Brasil.

Querendo questionar dogmas católicos…

Com um pouco de atraso, gostaria de comentar um artigo que foi publicado na Folha de São Paulo há mais de uma semana, e que leva o singelo título de “É justo questionar dogmas católicos”. A pérola é da autoria do sr. Kennedy Alencar. Aqui, não interessam tanto os chavões já ad nauseam repetidos e refutados bem além do que merecia a sua [ir]relevância; gostaria de me deter no princípio que dá título ao artigo e que é desenvolvido nos seus dois primeiros parágrafos:

A Igreja Católica é composta por homens e mulheres de carne e osso. Como toda instituição viva, seus dogmas merecem contestação de quem pertence aos seus quadros, de quem já pertenceu e de que não pertence. Os de fora têm o direito de opinar sobre as decisões de uma instituição poderosa e que influencia o debate público no mundo inteiro.

No Brasil, há separação entre Estado e igreja. Apesar disso, os religiosos se julgam no direito de criticar decisões legais, como o aborto de uma criança de 9 anos que foi estuprada. Ora, se podem meter o bedelho nas regras do Estado laico e democrático, podem também ouvir críticas aos seus dogmas e às suas regras.

Gostaria que o sr. Kennedy explicasse qual a relação entre a Igreja ser “composta por homens e mulheres de carne e osso” e “seus dogmas merece[re]m contestação”. O que tem uma coisa a ver com a outra? Que a Igreja é formada por “homens e mulheres de carne e osso” é uma obviedade (para que fique teologicamente correto, no entanto, seria mister afirmar que a Igreja é também composta pelas almas dos fiéis que estão no Purgatório – Igreja Padecente – e no Paraíso – Igreja Gloriosa – e, portanto, não é formada apenas por homens de carne e osso, sendo também composta por alguns que estão a aguardar a Ressurreição Final a fim de terem carne e osso uma vez mais; mas isso são outros quinhentos), mas não é de modo algum evidente o nexo causal que liga esta evidência à proposição seguinte. Serve-se o sr. Kennedy de uma comparação para tentar elucidar um pouco o seu confuso raciocínio: os dogmas da Igreja merecem contestação “como [os de] toda instituição viva”. Para aceitarmos a analogia do articulista, no entanto, seria necessário que ele apresentasse quais são as outras “instituições vivas” (com a Igreja comparadas) cujos dogmas são passíveis de contestação. Aliás, gostaria muitíssimo de que ele começasse elencando quais são as instituições fora a Igreja, vivas ou não, que possuem “dogmas”…

Não contente em postular a “contestabilidade” dos dogmas da Igreja, apressa-se o articulista a determinar quem são as pessoas passíveis de exercer este direito à contestação; e descobrimos, com surpresa, que, na opinião do sr. Kennedy, todas as pessoas do mundo – “quem pertence aos seus [da Igreja] quadros, (…) quem já pertenceu e (…) que[m] não pertence” – podem contestar a Igreja! A justificativa? Não tem nenhuma. É pura birra: “se [os religiosos] podem meter o bedelho nas regras do Estado laico e democrático, podem também ouvir críticas aos seus dogmas e às suas regras”. Pura vingança, infantilidade pueril do tipo “se tu podes, eu posso também”. Só que, no caso, descabida.

Por que descabida? Simplesmente porque os católicos não “metem o bedelho” em regras de Estado Laico nenhum! O Estado não é democrático? Se é democrático, então os católicos também têm direito de falar e expôr os seus anseios e suas reivindicações – ou não? Ou a democracia do Estado Laico não contempla os católicos? Ou a democracia que o sr. Kennedy postula é similar àquela d’A Revolução dos Bichos: todos os cidadãos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros?

Coisa completamente diferente ocorre com os dogmas da Igreja; estes, não são “laicos e democráticos” e não pressupõem a sua “discutibilidade” – ao revés, postulam precisamente o contrário. Por que motivo quer o sr. Kennedy – agora sim – meter o bedelho [e sem ser chamado!] nos dogmas da Igreja? Que autoridade tem o sr. Kennedy para sentenciar que é “um erro considerar um meio católico ou um mau católico quem apoia a decisão de abortar nas circunstâncias em que se encontrava a menina de 9 anos”? Por que deveríamos dar ouvidos ao sr. Kennedy em detrimento de – p.ex. – Dom José Cardoso Sobrinho? Se este último é bispo da Igreja Católica e o primeiro é… é… quem é o primeiro, afinal de contas?

Por fim, só mais um reparo a ser feito ao texto publicado na Folha de São Paulo: não, sr. Kennedy, não é “[n]o direito canônico” que “o aborto é mais grave que o estupro” – é objetivamente! O Direito Canônico reproduz a realidade, e não fica “inventando” arbitrariedades descabidas! E o aborto é mais grave do que o estupro pelo motivo auto-evidente (isto sinceramente já cansou…) de que uma agressão que destrua a vida é mais grave do que uma outra que não a destrua, já que a vida é o bem maior do qual dependem todos os outros – o que não tem nada a ver (nunca é demais repetir) com considerar a segunda agressão como de pouca monta ou irrelevante. Com essas idéias descabidas, o sr. Kennedy revela-se um eminente expoente dos “idiotas da subjetividade” que critica; mas eu seria capaz de apostar que ele não consegue perceber isso…