Idolatria na Igreja Católica

Nas minhas andanças pela internet descobri um curioso texto, escrito supostamente por um católico e divulgado por protestantes, chamado Tratado da Verdadeira Devoção – escrito por um católico. Não, não é o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem de São Luís de Montfort (este era o que eu estava procurando). Trata-se de um texto herético protestante (mesmo que se diga “escrito por um católico”, se for verdade, o tal católico que escreveu é de facto um herege protestante) onde o autor se esmera para provar a idolatria da Igreja de Cristo. O assunto é tão velho que já está gagá, mas vou me deter n’alguns comentários sobre esta obra específica por causa das referências ao Tratado verdadeiro, o de São Luís Maria.

Começa o texto com o velho blá-blá-blá sobre se “adoração” e “veneração” são a mesma coisa. Na Doutrina Católica, é óbvio que não são; se “todos dicionários colocam veneração como sinônimo de adoração” (op. cit., p. 3) eu não sei se é verdade mas, ainda que seja, não faz nenhuma diferença, porque é evidente que um dicionário não é o lugar adequado para se buscar o sentido de termos teológicos específicos da Doutrina Católica. Esta tem dois mil anos e não tem nenhuma obrigação de “se adequar” às exigências dos dicionários, pois os católicos sabem que a Doutrina se aprende no catecismo; se os protestantes querem aprender teologia no dicionário é problema deles, e só vai fazer com que eles não entendam nunca o que a Igreja está dizendo.

Acerta o autor do livreto quando diz que “veneração é ato de culto” (op. cit., p. 2) mas erra ao dizer que isso, por si só, já caracteriza a existência de idolatria. Como todo protestante, ele só aceita que exista culto de adoração. O que, dentro da Teologia Católica, é falso, pois existe o culto de latria devido a Deus e o culto de dulia devido aos santos e às imagens dos santos. Portanto, nem todo culto é culto de latria, e “revelar” que a Igreja cultua os santos é descobrir o sol ao meio-dia no céu límpido. As citações de diversas passagens bíblicas onde “venerar” (ou “honrar”, ou “cultuar”, ou qualquer coisa parecida) é usado no sentido de “adorar” são irrelevantes, primeiro porque as traduções portuguesas modernas não necessariamente contemplam a terminologia grega ou hebraica original com esta fidelidade farisaica que exige o autor da obra e, segundo (e muito mais importante), porque o sentido das palavras é evidentemente mais importante do que as palavras em si. Os católicos aceitam que se diga “venerar a Eucaristia” no sentido de latria. Mas, em contrapartida, exigem que seja aceito “venerar a Virgem Santíssima” no sentido de dulia.

O mesmíssimo vale para a citação do II Concílio de Nicéia (sobre adorar/venerar as imagens). A interpretação dada pelo “católico” sobre as passagens do Apocalipse onde São João adora um anjo e dos Atos dos Apóstolos onde Cornélio adora São Pedro é completamente estapafúrdia:

Na verdade, tanto João como Cornélio não tentaram adorar com adoração de latria, pois eles sabiam que o anjo e Pedro eram criaturas, e que, portanto, não poderiam ser adoradas. Eles queriam, na verdade, venerá-las, ou seja, prestar-lhes adoração de honra.

Contudo, vimos a Palavra de Deus advertindo que a adoração, seja de latria ou de dulia (de honra), só são devidas a Deus. Ou seja, que a veneração (como é popularmente conhecida a adoração de honra) só pode ser dada a Deus. Portanto, venerar uma criatura (um anjo ou um santo) é idolatria, sobretudo se a veneração coloca o santo no lugar de Deus. [op. cit., p. 5; grifos no original]

Se a “veneração” coloca o santo no lugar de Deus ela, por definição, é latria e não dulia, de modo que a frase não tem nenhum sentido. Agora, se “venerar uma criatura” for sempre idolatria, então o autor da obra difamatória vai precisar explicar por que a Bíblia manda, p.ex., honrar os velhos (cf. Lv 19, 32), por que o Templo era “venerado no mundo inteiro” (IIMac 3, 12), por que Jacó se prostrou diante de Esaú (cf. Gn 33, 3), por que o carcereiro “lançou-se trêmulo aos pés de Paulo e Silas” (At 16, 29), por que “José celebrou, em honra do seu pai, um pranto de sete dias” (Gn 50, 10), por que Lot prostrou-se diante dos dois anjos que chegaram a Sodoma (cf. Gn 19, 1), ou ainda por que Deus prescreveu: “Honra teu pai e tua mãe” (Ex 20, 12), entre muitas outras coisas. Donde se vê a que absurdas contradições chega o livre-exame das Escrituras, tomando textos isolados, misturando-os com preconceitos e desprezando quer a Tradição da Igreja, quer o próprio conjunto dos demais livros da Bíblia.

Segue o suposto “católico” com uma enorme lista de “[t]extos oficiais da Igreja Católica admitindo (sic) a adoração de imagens” (op. cit., pp. 5-10). De novo a mesma coisa: o pressuposto de que toda veneração é adoração, de que adoração é uma palavra que só pode ser usada no sentido de latria, de que a Igreja é alguma espécie de idiota que não sabe nem mesmo o que Ela própria diz. Não é sequer concedido a Igreja o beneplácito de ter a Sua Doutrina julgada da maneira que Ela mesma a entende; o protestante pega textos católicos, interpreta-os com um sentido expressamente contrário àquele que a Igreja lhes dá, e quer com isso mostrar como Ela é idólatra. Um esforço gigantesco e inútil, pelo simples fato de que a Igreja não entende os Seus textos do mesmo jeito que os entende o “teólogo dos dicionários”.

Adoração é latria, é daí que vem a palavra “idolatria” (que significa “adoração a ídolos”), e se a Igreja deixa claro que existe uma coisa chamada “latria” e uma outra coisa chamada “dulia”, então é porque Ela diferencia as duas coisas, e não é intelectualmente honesto dizer que Ela as considera ambas iguais. O máximo que os protestantes podem fazer é tentar provar que tanto a latria quanto a dulia são proibidas pelas Escrituras Sagradas. Só que isso é impossível, porque até as mais criativas exegeses (como a acima citada, de São João e de Cornélio) são incapazes de explicar o conjunto das Escrituras Sagradas, onde vemos, sim, criaturas sendo honradas o tempo inteiro.

As páginas subseqüentes são fruto de uma leitura seletiva do Tratado da Verdadeira Devoção à SSma. Virgem de São Luís Maria Grignion de Montfort. O autor do livreto dá às palavras do santo um sentido expressamente condenado por ele – coisa, aliás, muitíssimo parecida com o expediente de fazer a Igreja “admitir” que adora imagens. É como se alguém dissesse “o sol ilumina e o fogo queima, mas a lua pode refletir a luz do sol e, por isso, também ilumina, e o ferro pode ficar em brasas se em contato com o fogo e, portanto, também queima”. Daí o gênio sentenciasse: ah! Ele diz que a lua ilumina, mas só o sol ilumina e, por isso, ele diz que a lua é sol! Ele diz que o ferro queima, mas todo mundo sabe que só o fogo queima e, portanto, ele diz que o ferro é o fogo! É em um “raciocínio” estritamente análogo a isto que se baseia o “católico” escritor do livreto. Afinal, São Luís de Montfort deixa claro, por diversas vezes, que as qualidades atribuídas à Santíssima Virgem o são por graça, por causa de Deus, e não por “natureza” ou por poder próprio. Lembra repetidas vezes que Maria é uma criatura e não o Criador. Mas as suas palavras encontram os ouvidos surdos (ou os olhos analfabetos) do suposto católico que não quer saber de outra coisa que não atacar, per fas et per nefas, a Doutrina da Igreja.

No final, a inteligência ilustre responsável pelas páginas deste livro não quis assumir-se, mantendo-se anônimo. É forçoso reconhecer que ele, ao menos, tem senso do ridículo; eu próprio ficaria envergonhado de reclamar a autoria de linhas sofríveis assim. O responsável pela divulgação do livreto – Wellington Leão, do “Notícias do Evangelho” – diz que o autor pediu para ser mantido no anonimato “temendo (…) que pudesse ser excluído do catolicismo”. Quanto a isso, aviso ao ex-católico que ele não tem com o quê se preocupar: a excomunhão por heresia é automática, latae sententiae, segundo prescreve o Código de Direito Canônico, de modo que o anonimato não o protege de se auto-excluir da comunhão com a Igreja de Cristo.