Pode-se deixar de lado a verdade histórica?

O texto-base da Semana de Oração para a Unidade dos Cristãos deste ano provocou estranheza ao dizer, entre outras coisas, que Martinho Lutero — o reformador protestante — seria uma «testemunha do Evangelho». Literalmente, o documento fala logo no início:

Deixando à parte o que é polêmico, nas visões teológicas da Reforma, católicos agora são capazes de ouvir o desafio de Lutero para a Igreja de hoje, reconhecendo-o como uma “testemunha do evangelho” (Do Conflito à Comunhão 29).

Infelizmente, a referida «semana de oração» presta-se muitas vezes ao mesmo papel que, no Brasil, a CNBB desempenha com a sua Campanha da Fraternidade: obscurecer a mensagem do Evangelho com um discurso anódino cujo objetivo maior é quase sempre afirmar lugares-comuns. Porque, ora, «deixando à parte o que é polêmico» pode-se afirmar qualquer coisa, é lógico. Afinal de contas, sempre e por definição, tirando tudo o que está ruim tudo está sempre muito bem e não há como ser diferente. À parte tudo o que tem de errado a Reforma Protestante só tem coisas corretas, e o mesmo se pode dizer de absolutamente qualquer coisa na face da terra.

O problema é que «deixando à parte o que é polêmico» nós estaremos deixando de lado o próprio protestantismo, exatamente naquilo que o faz ser o que é, no que o distingue do Catolicismo. Deixando de lado o fato de que Lutero, falsificando o Evangelho, levou milhões de almas à perdição nos séculos seguintes, então se pode dizer, é claro, que ele tenha sido «testemunha» da mensagem cristã. Mas a pergunta que interessa aqui é: pode-se deixar de lado, desse jeito, a verdade histórica?

Porque quando a comissão conjunta atribui a Lutero o pomposo “título” de «witness to the Gospel» o que ela está fazendo é exatamente isto: valorizando as (supostas) intenções do monge atormentado e desculpando-lhe as atrocidades pelas quais ele passou à história. É rigorosamente o que se diz no «Do conflito à comunhão» (p. 22):

29. Aproximações implícitas com as preocupações de Lutero levaram a uma nova avaliação de sua catolicidade que teve lugar no contexto do reconhecimento de que sua intenção era reformar, não dividir a Igreja. Isso é evidente nos posicionamentos do Cardeal Johannes Willebrands e do Papa João Paulo II. A redescoberta dessas duas características centrais [de que não queria dividir e que queria reformar] de sua pessoa e teologia levaram a uma nova compreensão ecumênica de Lutero como “testemunha do Evangelho”.

Ou seja, pode-se chamar o velho alemão de «testemunha do Evangelho» porque, na verdade, a «sua intenção era reformar, não dividir a Igreja». Parece importar pouco que, historicamente, ele tenha dividido a Igreja ao invés de A reformar; a aproximação dita ecumênica autoriza ignorar os fatos para se ater às motivações ocultas. Ora, o problema é que desse jeito se pode justificar quase qualquer coisa! Deve ser muito pequeno o número de indivíduos no curso da história que não tinham, ao menos em alguma medida, intenções boas (e então, pra ficar só em um exemplo, a intenção de Fidel Castro provavelmente era libertar, e não escravizar o povo cubano); o ponto é que não é isso o que importa, e sim o resultado exterior, observável, das ações das personalidades históricas. A ignorância de Lutero, ou a sua demência, ou sua possessão demoníaca ou qualquer outra coisa do tipo, pode até lhe ter mitigado a responsabilidade pelos gravíssimos pecados que cometeu; mas não tem, no entanto, e nem pode ter, o condão de, externamente, transmutá-lo em defensor Fidei!

A investigação psicológica das motivações íntimas — essa espécie de história da vida privada — tem decerto relevância na medida em que o conhecimento verdadeiro é em si mesmo bom; mas é um claro equívoco utilizá-lo para lançar um manto de esquecimento sobre a tradicional história da vida pública, externa e factualmente observável. Não é sem razão que a sabedoria popular diz que de boas intenções o inferno está cheio. Lutero pode ter tido as melhores intenções do mundo: o fato objetivo e incontrastável, no entanto, é que causou um dano terrível à Cristandade, tendo precipitado ao inferno as almas — multidões de almas! — que deram mais ouvidos às suas sandices do que às palavras de Vida Eterna ecoadas pelo Vigário de Cristo.

Pesadas todas as coisas, sem deixar «à parte o que é polêmico», é evidente que a verdadeira testemunha do Evangelho, no contexto da Reforma Protestante, foi Leão X e não Lutero. O silêncio sobre isso corre o sério risco de se tornar uma inverdade histórica por omissão. É preciso haver reconciliação entre os cristãos, sim, porque é preciso que o filho pródigo retorne; mas qualquer reconciliação somente é possível na verdade e não no auto-engano — e simplesmente não tem lá muito sentido dizer que, deixando à parte o fato de se tratar de comida estragada, a lavagem dos porcos foi o alimento que deu ao irmão mais novo o vigor necessário para empreender o retorno à casa paterna.

Nam oportet et hereses esse ut et qui probati sunt manifesti fiant in vobis (ICor XI, 19): importa que haja heresias, para que se manifestem os que são probos. Esta passagem de São Paulo aplica-se também aqui. Lutero só é «testemunha do Evangelho» no sentido em que o erro é testemunha da verdade: por oposição. Aliás, é até curioso que a comissão luterana tenha subscrito aquele texto: de acordo com ele, só é possível reconhecer o testemunho evangélico de Lutero na exata medida em que a sua obra pública contradiz a presumida nobreza de suas intenções privadas.

Lutero, enfim, vai a Roma

Um leitor faz a gentileza de me perguntar:

Queria ver sua explicação para a imagem de Lutero no Vaticano. Sei que você terá uma boa explicação. Já vi um padre dizer no facebook que foi uma provocação dos protestantes. A sua será semelhante? Algo do tipo: os luteranos que trouxeram e seria falta de educação não colocar ali?

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Não acho que tenha sido provocação. A questão me parece toda outra.

Deus criou o ser humano para Si, como diz Sto. Agostinho, e por isso o coração do homem vive inquieto enquanto não repousa n’Ele. Esta inquietude pode ser ignorada e pode ser posta de lado, pode ser enterrada por um tempo, pode ser disfarçada, maquiada, anestesiada, pode tudo: só não pode ser plenamente vencida. Porque ela foi posta pelo próprio Deus e, portanto, nada que o homem faça por si só, por suas próprias forças, será capaz de prevalecer sobre aquilo que Deus mesmo estabeleceu. É como, mutatis mutandis, aquela inimizade — inimicitias ponam… — que no início do Mundo foi estabelecida entre os filhos de Deus e os filhos das Trevas. Ela simplesmente não pode ser superada: o engenho humano não pode, absolutamente não pode lograr sucesso contra a vontade positiva do Onipotente.

Nada que os homens façam por sua própria conta será capaz de (re)estabelecer a unidade do gênero humano. Aqui falharam todas as empresas humanas, todos os impérios do passado, todas as potências do presente, todas as construções teóricas e os modelos de pensamento, tudo, tudo. As verdadeiras paz e concórdia só são possíveis aos pés da Cruz de Nosso Senhor, e mil vezes o mundo não queira aceitar esta verdade, mil vezes será despedaçado por guerras fratricidas. Nem sequer a própria Igreja, digo, nem sequer os próprios homens pertencentes à Igreja, os católicos, independente do prestígio do qual gozem, poderão ser vitoriosos nesta seara: os católicos podem anunciar mil e um arranjos de convivência pacífica plural, podem se esforçar pessoalmente na consecução de semelhante objetivo, e pode ser até — concedamos — que em determinados momentos eles o devam realmente fazer: o resultado assim obtido será sempre uma obra inacabada, terá sempre algo de contingente, de frágil, de periclitante, não raro prestes a desmoronar ao mais leve sopro de realidade. É evidente, todos nós o sabemos, que alguma paz cotidiana e pragmática, alguma condescendência hic et nunc, precisa ser feita para possibilitar um mínimo de vida em sociedade: nós fazemos isso o tempo inteiro. Esse armistício temporário, no entanto, essa — eis a palavra verdadeira — indiferença tolerante não se pode revestir de características deontológicas absolutas. É dizer: não se trata de um fim último a ser buscado a todo custo. Não é assim que as coisas devem ser, embora seja possível que, em determinadas circunstâncias concretas, elas praticamente (só) possam ser assim. Na percepção clara da diferença entre uma coisa e outra reside a distinção entre a Fé e a apostasia.

Volto aos luteranos para explicar o que quero dizer. Deve ser bem difícil ser herege; a posição em que se encontram os filhos da Reforma luciferina do ex-monge alemão é sem dúvidas bastante desagradável. Em todos os aspectos o luteranismo é insustentável: nos (incontáveis) vícios pessoais do seu fundador, nas conseqüências históricas dramáticas de seus pressupostos (eis aí o esfacelamento do Protestantismo em milhares de seitas mutuamente incompreensíveis entre si), na incoerência de sua visão histórica do Cristianismo (afinal de contas, por onde andaria o Paráclito no milênio e meio compreendido entre a ascensão de Cristo e as 95 Teses?), na maleabilidade promíscua de sua doutrina contemporânea (por exemplo, há diversas denominações luteranas hoje favoráveis às práticas homossexuais — talvez até mais do que contrárias), et cetera. Ora, Deus criou os homens para Si; e parece evidente que a Babel protestante, assim como a primeira, não é capaz de conduzir os homens ao céu.

E alguns luteranos o percebem. Eles notam que falta alguma coisa no arremedo de religião que eles se acostumaram a chamar de “igrejas”; é a sede de Deus que clama mais forte nas profundezas de suas almas e que, incapaz de se saciar no lamaçal da heresia luterana, reclama águas mais puras. O encontro dos luteranos com o Papa na última quinta-feira, assim, é talvez a mais eloqüente manifestação da falência do luteranismo. São os filhos degredados, sujos, maltrapilhos e machucados, voltando sobre os passos do pai louco e prestando, timidamente, a vassalagem contra a qual o seu patriarca originalmente se revoltou.

Uma peregrinação saída «dalla regione di Lutero» em direção à «sede del Vescovo di Roma» carrega um simbolismo que não se pode ignorar: são os protestantes dando as costas ao heresiarca, deixando Lutero para trás, e caminhando de maneira esforçada, firme, resoluta — ultrapassando os acidentes geográficos e as fronteiras dos países — rumo ao Doce Cristo na Terra!

No limiar da Reforma, quando Lutero não havia ainda rompido definitivamente com a Igreja, ele foi convidado a ir a Roma para defender as suas doutrinas. Recusou-se. Posteriormente o Concílio de Trento convidou os protestantes para participarem das assembleias conciliares. É possível dizer que o convite lançado há quase cinco séculos ainda estava aberto e, finalmente, de algum modo o Heresiarca lhe deu na última semana uma resposta. Leão X não logrou trazer Lutero a Roma; Francisco fê-lo ser carregado pela sua estirpe degenerada em desesperada peregrinação. O monge bêbado provavelmente encararia muito a contragosto semelhante patacoada. Mas aos filhos não deve ser impedido entrar pela porta da Vida Eterna que o pai louco fechou atrás de si.

Enfim, perguntam-me se isso foi uma provocação. Eu digo que foi uma catarse. O luteranismo chegou a tornar-se tão insuportável que, na busca desesperada pelo Deus que Lutero expulsou das igrejas que roubou ao Papa, os luteranos aceitaram até mesmo carregar nas costas o monge rebelde de volta para o Vaticano.

Sacrificando as ovelhas

Ai, que grande lixo! “CNBB contra a nota”, diz O Dia Online. A nota em questão é aquela da Pastoral de Católicos na Política do Rio de Janeiro, que eu reproduzi aqui e que condena o PNDH-3 do governo petista. Segundo a matéria d’O Dia:

A nota diz que o plano é uma cartilha “de estilo radical-socialista”. Em janeiro, a CNBB condenou aspectos do programa, como a proposta de legalização do aborto. Mas, ao mesmo tempo, se dizia “desejosa de participar do diálogo nacional” sobre o PNDH.

E, sim, eu me lembro da declaração da CNBB sobre o tema que eu também reproduzi aqui. Pelo andar da carruagem, parece ser patente a divisão dentro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Graças a Deus.

O estilo “morde-e-sopra” certamente não me agrada e nem agrada a Nosso Senhor, que exigiu que a linguagem dos Seus discípulos fosse “sim, sim, não não”. No entanto, dá-me esperanças ver que existem pessoas dentro da CNBB preocupadas em soprar. Pelo menos isso! A situação atual está muito melhor do que já foi anteriormente, quando, da Conferência, só esperávamos receber facadas pelas costas e ofensas à Igreja de Nosso Senhor.

Aproveito o ensejo para agradecer publicamente aos membros da CNBB que são responsáveis pelas coisas decentes emanadas pela Conferência. São poucos, mas prestam um serviço inestimável. Que tenham coragem! São minoria, mas são fiéis, e a fidelidade a Deus é uma característica capaz de mover montanhas e possibilitar vitórias que, humanamente, seriam impossíveis. Que tenham coragem, e continuem! Que os lobos sejam desmascarados, e que a CNBB seja expurgada de toda influência demoníaca e, arrancada às garras de Satanás onde esteve por tanto tempo, possa ser recolocada a serviço de Nosso Senhor.

Voltando ao assunto: “Para Dom Dimas, bispo-auxiliar do Rio, o maior problema da nota é que ela ataca todo o PNDH e não apenas alguns pontos específicos”. Oras, em primeiro lugar, todo o PNDH, sim, está repleto de uma ideologia anti-cristã e, nos pontos onde há concordância entre o maldito Plano e a Doutrina Cristã, esta concordância é meramente acidental.

E, em segundo lugar, é de uma ingenuidade irresponsável procurar defender o cão raivoso porque ele tem “olhos bonitinhos”, ou tentar salvar a maçã envenenada por causa da sua cor lustrosa. É de uma ingenuidade irresponsável, repito – que, diga-se de passagem, a Igreja nunca adotou -, vir em defesa das heresias por causa das coisas corretas que elas ainda mantêm.

Imagino uma declaração deste tipo na época da Reforma Protestante. O Papa Leão X, na bula Exsurge, Domine, enumerou os erros de Martinho Lutero. Mas não enumerou os pontos em que ele acertava, e nem muito menos defendeu o heresiarca por causa dos pontos que o Luteranismo mantinha da Fé Católica. Ao contrário: proibiu Lutero de pregar, mesmo sabendo que o Luteranismo não era condenável “no todo”, e sim somente n’alguns pontos específicos – especificamente, os que foram condenadas pela referida bula.

Houvesse secretariados-gerais àquela época, viriam em socorro ao Heresiarca. Diriam que esta posição não era a da Conferência – caso houvesse Conferências. Insistiriam nos pontos positivos da Reforma. Desejariam participar do diálogo. E, enquanto dialogassem com o lobo, as ovelhas seriam dispersas.

Quem poupa o lobo sacrifica as ovelhas, conforme disse (salvo engano) Victor Hugo. Esta é uma lição que os excelentíssimos responsáveis pela CNBB já deveriam ter aprendido. E espero que a aprendam depressa, antes que seja tarde demais.