Conversas sobre Doutrina Social na Jornada Mundial da Juventude

Aconteceu durante a JMJ, no dia 23 de julho, no Mosteiro de São Bento, o DSI Talks. Estive presente às duas primeiras palestras, proferidas por S. E. R. Dom Antônio Rossi Keller e pelo prof. Carlos Ramalhete; não pude assistir à última conferência do evento, a do sr. Jesus Magaña, pois ela conflitava com o meu horário de serviço do dia como voluntário da Jornada e eu tive que sair mais cedo.

Mas a manhã foi extremamente proveitosa. Revi diversos amigos e pude conhecer outras pessoas com quem até então não travara senão contato virtual; e, principalmente, vi o pequeno auditório do mosteiro abarrotado de pessoas – em sua maioria jovens – preocupadas em aprender um pouco mais sobre a Doutrina Social da Igreja, e sinceramente preocupadas em encontrar formas concretas de aplicar em suas vidas o que a Igreja ensina sobre o tema.

Foi extremamente gratificante ver D. Keller chamando os leigos ao protagonismo próprio do seu estado de vida, querido por Deus e necessário à recristianização da sociedade. Vê-lo atacar – de modo até bastante duro – um certo “clericalismo” que intenta reduzir o papel do leigo a uma caricatura grotesca do serviço sacerdotal foi reconfortante, mormente nestes dias que correm em que parece que a pessoa é tanto mais católica quanto mais atribuições acumule para si dentro da paróquia, pouco importando o que faça fora dela. As perguntas surgidas após a sua fala deram um importante testemunho de que aquelas pessoas estavam, sim, interessadas no que o senhor bispo tinha para nos dizer.

Ouvir o Carlos Ramalhete falar é sempre prazeroso, e acompanhá-lo em sua busca à gênese das modernas insatisfações com a ordem social vigente – remontando até a origem da própria modernidade – era tão empolgante quanto escasso o tempo de que dispúnhamos para ouvi-lo falar. Também aqui, a participação das pessoas ao final da sua conferência testemunhava a sede de conhecimento daquele auditório: e como havia sido importante dar-lhes aquelas pequenas porções de catolicismo, mais adequadas a abrir o apetite do que a saciá-lo por completo. Saímos querendo mais, sem dúvidas; mas não é já um santo propósito e uma coisa terrivelmente necessária, isso de levar as pessoas a quererem saber mais das coisas de Deus e da Igreja?

Fiz algumas anotações sobre cada uma das duas palestras, que publico abaixo praticamente sem revisão. Apenas alguns tópicos, apenas algumas frases soltas e alguns esquemas muito mais indicativos do que desenvolvidos. Estes rascunhos decerto não substituem aquelas conferências. Mas faço votos de que eles possam aguçar a curiosidade e despertar o interesse daqueles que os lerem, reproduzindo – ainda que em menor medida – os saudáveis efeitos daquelas conversas sobre Doutrina Social da Igreja no Mosteiro de São Bento, durante a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro.

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Dom Keller – @Terça-feira, 23 de julho de 2013, 9:25 AM

– Vocação e missão especifica do leigo no mundo
– Colaboração com a criação
– Colaboração com a redenção.

A fundamentação da DSI é teológica, e se encontra em grande parte no Concílio Vaticano II.

Lumen Gentium (documento central do Vaticano II), n. 31
– atuações em tarefas e ambientes que não são da Igreja, mas ordenando-os para Deus.
– “esclarecer e ordenar todas as coisas temporais, com as quais estão intimamente comprometidos”.

Catecismo: 898-899

Christifideles Laici

Casamento faz parte da missão do leigo! “Nela têm os cônjuges a própria vocação, para serem, para si e para os seus filhos, sinal do amor de Cristo!”

Não há doença pior do que o clericalismo! O leigo cristão tem que ser anti-clerical. Essa idéia de que tudo tem que passar pela mão do padre e do bispo.

A missão específica do leigo não é na Igreja! Ela não lhe vem de nenhuma delegação, mas diretamente de Deus, por meio do Batismo e da Confirmação! Por estrutura ontológica!

– Criação e Redenção

“Cuidar das coisas que Deus lhe confiou e estabelecer a Família” => Não são realidades autônomas! Devem ser realizadas de acordo com a vontade de Deus!

Conhecemos os desígnios de Deus por Revelação. Ordenar, segundo Deus, as coisas do mundo, porque Deus nos disse de forma positiva o que queria.

“Sereis como deuses” => é a tentação que hoje se faz presente na vida de todos nós. Todo o fundamento do moderno relativismo encontra-se aqui. Sociedades desenvolvidas à margem de Deus ou mesmo contra Deus!

Família, célula primeira e vital da sociedade. Quer destruir a humanidade? Quer destruir o ser humano? Comece destruindo a Família. Desestruturando-a, toda a sociedade é desestruturada.

Materialidade e Autonomia são os dois princípios – únicos princípios – aos quais estão sujeitas as coisas humanas. Falar de Deus é intromissão.

O cristão não pode adotar essas posições de encolhimento e pessimismo. “Tenho ensinado constantemente (…) o mundo não e ruim! (…) Nós, os homens, é que o fazemos ruim e feio!”

Deus nos espera para transformarmos a criação!

Redenção: apostolado dos leigos no ambiente secular, a fim de aproximar o mundo de Deus!

– vocação à santidade! Fé Católica sem o comprometimento da própria vida em busca da santidade do dia-a-dia. Pão com manteiga, pão sem manteiga: San Josemaría. O pessoal hoje em dia é burro mesmo, ganhar discussão é muito fácil. Ser capaz de calar a boca de gente burra não é salvar o mundo!

Como fazer?

– procura séria da santidade. Questão fundamental!
– um segredo em voz alta: crises mundiais são crises de santos. A alma de todo apostolado é a santidade!
– elevar o mundo a Deus e transformá-lo a partir de dentro!
– oração, expiação e ação.
– de mediocridade o mundo já está cheio. E a Igreja nem se fala!

O modo específico dos leigos contribuírem é essa ação livre e responsável no meio das atividades temporais. Espalhar o bom odor de Cristo!

Sejam, antes de tudo, leigos!

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Prof. Carlos – Terça-feira, 23 de julho de 2013, 10:43 AM

Explicar tudo desde Adão e Eva: mania de filósofo…

Doutrina Social da Igreja: o que é isso?
– não é uma receita de bolo; estas fizeram um estrago danado nos últimos séculos.
– aplicação da Lei Natural à sociedade. Como o homem se encaixa na realidade?

A ordem natural é hierárquica. Como a sociedade vai se organizar? Democracia, Oligarquia ou Monarquia. No Brasil, basicamente temos uma Oligarquia.

A DSI nos dá parâmetros. Ela não determina nenhuma forma de governo específica. Isto é uma questão leiga, a Igreja no máximo diz “não é assim”.

Compete a leigos terem posições, divergentes ou não, mas debaixo de certos princípios. Os bispos expõem os princípios. Os leigos vão fazer lobby.

Doutrina Social é relativamente recente. Antes se falava em teoria do Estado, coisas assim.

Isso começou a se romper com a Reforma Protestante. “Se o rei era católico, o paiszinho dele ia ficar católico, etc.” -> isso gerou o absolutismo.

Modernidade -> outra forma de absolutismo. “O Estado sou eu”, “todo o poder emana do povo e e exercido em nome dele por mim”.

Quando chega a Revolução Francesa, começa a centralização por meio desta forma de absolutismo anônimo. Isso leva à dissolução da ordem social.

Revolução Industrial: camponeses desempregados após a revolta anglicana, que distribuiu as terras da Igreja. Capitalismo selvagem. Isso é a modernidade. Proletários: os que só têm a prole pra vender.

Coisas novas: Rerum Novarum. Deixar o território da política para invadir o da economia social.

Modernidade: Um absolutismo ainda mais absoluto por ser impessoal.

Dicta&Contradicta: vale a pena ler o próximo número.

A gente sabe que querer que o poder civil invada arbitrariamente o santuário da família é um erro grave e funesto.

É muito mais importante garantir que as leis não colem do que que elas não passem.

Rerum Novarum, contra o capitalismo;
Quadragesimo Anno, contra o comunismo;
Mit Brennender Sorge, contra o nazi-fascismo.

É preciso eliminar os que não se encaixam na idéia que querem impor à sociedade: prendendo, matando, whatever.

Modernidade é alguém que tem uma idéia de como a realidade deve ser, e quer dobrá-la àquela.

Nossa legislação é completamente louca. A realidade não tem chongas a ver com a legislação. O Estado no meio gera desordem.

Mercenários: terceirização de forças armadas. Estados estão perdendo seu poder: uma ONG matou milhares de americanos em 11 de setembro, e hoje os Estados Unidos contratam ONGs para garantir sua ocupação territorial.

Compêndio de Doutrina Social: incompreensível. Foi publicado num momento histórico complicado.

Quando uma ordem social acaba, em seus últimos estertores ela recrudesce em suas características próprias. Juliano o Apóstata, caça às bruxas, etc.

As manifestações são sinais de dissolução desta ordem hipercentralizadora. Nos USA, o TeaParty e o Occupy estão dizendo “não agüento mais”. As pessoas estão cansadas de tentar fazer a realidade se dobrar a uma idéia. As pessoas vão sempre se manifestar contra.

Realidades Naturais são sólidas demais! Simplificações da realidade não colam mais. Eles não sabem o que fazer, então eles queimam carros. Uma briga pelo timão do Titanic enquanto ele afunda.

Aqui no Brasil, a galera entrou nas manifestações. O que ela não agüenta mais é essa falsa solidez da modernidade. #NãoMeRepresenta – acabou essa lorota.

Pontos principais:

  • Anti-Partidarismo (subsidiariedade)
  • Atomismo das reivindicações: chegamos à solidariedade.
  • Revolta com a política representativa. Justiça.

É isso o que devemos procurar!

Manifestações são sintomas de uma exasperação generalizada. Devemos procurar fazer com que a ordem que há de vir seja conforme à DSI. Dá pra resolver evitando a burocracia? Se sim, então vamos fazer. A ordem formal está caindo! Não é se, e sim quando.

Adesão à moral tradicional: fazê-lo com visibilidade. Devemos fazer nossa voz ser ouvida! Fortalecer a ordem endógena, que – ao contrários desses ismos todos – é conforme a DSI.

Podemos nos aproveitar delas, como um sintoma!

Em qualquer mudança de ordem social há distúrbios.

Cristo-Rei: solenidade da Igreja contra o laicismo, «peste de nossos tempos»

Ontem, no novo calendário litúrgico, foi a celebração da Festa de Cristo Rei; em tempos de ateísmo militante como estes nos quais vivemos, é oportuno conhecer as origens desta festa e o porquê do Papa ter um dia mandado que ela fosse celebrada.

Quem a instituiu foi Pio XI na Encíclica Quas Primas (no site do Vaticano só tem em espanhol; encontrei uma tradução para o português aqui, e é desta que tiro as citações adiante (inclusive com a numeração, que diverge da do texto em espanhol), apenas para fins de praticidade – pois prefiro a versão espanhola e recomendo a todos a sua leitura nos pontos em que a tradução portuguesa se mostrar de difícil compreensão). Os pontos mais importantes desta Encíclica, no meu entender, são três:

1) Cristo é Rei de todos os homens, e não somente dos cristãos. Embora o Seu Reino seja primordialmente espiritual, disto não segue que o Filho de Deus seja menos Rei na esfera temporal. Assim Pio XI: «fora erro grosseiro denegar a Cristo Homem a soberania sobre as coisas temporais todas, sejam quais forem. Do Pai recebeu Jesus o mais absoluto domínio das criaturas, que Lhe permite dispor delas todas como Lhe aprouver» (QP 13). E ainda:

14. Assim, pois, a realeza do nosso Redentor abraça a totalidade dos homens. Sobre este ponto, de muito bom grado fazemos Nossas as palavras seguintes de Nosso Predecessor Leão XIII, de imortal memória: “Seu império não abrange tão só as nações católicas ou os cristãos batizados, que juridicamente pertencem à Igreja, ainda quando dela separados por opiniões errôneas ou pelo cisma: estende-se igualmente e sem exceções aos homens todos, mesmo alheios à fé cristã, de modo que o império de Cristo Jesus abarca, em todo rigor da verdade, o gênero humano inteiro” (Encícl. Annum Sacrum, 25 de Maio de 1899). E, neste particular, não cabe fazer distinção entre os indivíduos, as famílias e os estados; pois os homens não estão menos sujeitos à autoridade de Cristo em sua vida coletiva do que na vida individual. Cristo é fonte única de salvação para as nações como para os indivíduos. “Não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do Céu nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo qual nós devamos ser salvos” (At 4, 12). Dele provêm ao estado como ao cidadão toda prosperidade e bem-estar verdadeiro. “Uma e única é a fonte da ventura, assim para as nações como para os indivíduos, pois outra coisa não é a cidade mais que uma multidão concorde de indivíduos” (S. Aug., Epíst. ad Macedonium, c. 3). Não podem, pois, os homens de governo recusar à soberania de Cristo, em seu nome pessoal e no de seus povos, públicas homenagens de respeito e submissão. Com isto, sobre estearem o próprio poder, hão de promover e aumentar a prosperidade nacional.

2) Não se diga que isto é doutrina ultrapassada que já se encontra aggiornada. A Festa de Cristo-Rei continua sendo celebrada mesmo após a Reforma Litúrgica, e – segundo Pio XI – as Festas Litúrgicas servem para incutir mais eficazmente no povo fiel as verdades divinas:

19. Com efeito, para instruir o povo nas verdades da fé e levá-lo assim às alegrias da vida interna, mais eficazes que os documentos mais importantes do Magistério eclesiástico são as festividades anuais dos sagrados mistérios. Os documentos do Magistério, de fato, apenas alcançam um restrito número de espíritos mais cultos, ao passo que as festas atingem e instruem a universalidade dos fiéis. Os primeiros, por assim dizer, falam uma vez só, as segundas falam sem interminência de ano para ano; os primeiros dirigem-se, sobretudo, ao entendimento; as segundas influem não só na inteligência, mas também no coração, quer dizer — no homem todo.

3) Esta festa foi instituída contra o laicismo, e é dever dos católicos – mesmo (e talvez principalmente) dos fiéis leigos – lutar com denodo para recuperar a Nosso Senhor a Sua Realeza pública. Assim nos ensina o Papa:

22. Como bem sabeis, Veneráveis Irmãos, não é num dia que esta praga [o laicismo] chegou à sua plena maturação; há muito, estava latente nos estados modernos. Começou-se, primeiro, a negar a soberania de Cristo sobre todas as nações; negou-se, portanto, à Igreja o direito de doutrinar o gênero humano, de legislar e reger os povos em ordem à eterna bem-aventurança. Aos poucos, foi equiparada a religião de Cristo aos falsos cultos e indecorosamente rebaixada ao mesmo nível. Sujeitaram-na, em seguida, à autoridade civil, entregando-a, por assim dizer, ao capricho de príncipes e governos. Houve até quem pretendesse substituir à religião de Cristo um simples sentimento de religiosidade natural. Certos estados, por fim, julgaram poder dispensar-se do próprio Deus e fizeram consistir sua religião na irreligião e no esquecimento consciente e voluntário de Deus.

E ainda, sobre os leigos:

24. A festa, doravante ânua, de “Cristo-Rei” dá-nos a mais viva esperança de acelerarmos a tão desejada volta da humanidade a seu Salvador amantíssimo. Fora, com certeza, dever dos católicos, apressar e preparar esta volta com diligente empenho; a muitos deles, contudo, pelo que parece, não toca, na sociedade civil, o posto e a autoridade que conviriam aos apologistas da fé. Talvez deva este fato atribuir-se à indolência e timidez dos bons que se abstêm de toda resistência, ou resistem com moleza, donde provém, nos adversários da Igreja, novo acréscimo de pretensões e de audácia. Mas, desde que a massa dos fiéis se compenetre de que é obrigação sua combater com valentia e sem tréguas sob os estandartes de Cristo-Rei, o zelo apostólico abrasará seus corações, e todos se esforçarão de reconciliar com o Senhor as almas que o ignoram ou dele desertaram; todos, enfim, se esforçarão por manter inviolados os direitos do próprio Deus.

Cristo é Rei e Se revestiu de Majestade: esta verdade solenemente cantada ontem em todas as nossas igrejas não perde o seu valor por conta da lastimável situação na qual o mundo se encontra hoje em dia. Assim como Nosso Senhor está substancialmente presente nas espécies eucarísticas ainda que d’Ele zombem e blasfemem, Cristo é Rei das Nações ainda que os nossos governantes deixem-se guiar pela impiedade e batalhem ostensivamente para erigir «o esquecimento constante e voluntário de Deus» como única regra de fé permitida no Estado Moderno. A nós, contudo, que tivemos a graça de ouvir da Igreja de Cristo a doce mensagem da Salvação, cumpre batalhar com todas as nossas forças pelos «direitos do próprio Deus». Não ousemos nos furtar a tão grave dever! Porque, se o fizermos – Deus não o permita! -, n’Aquele Dia Terrível «de tamanha afronta há de tomar o Supremo Juiz a mais terrível vingança» (QP 33).

“É prova de uma submissão pouco sincera estabelecer uma oposição entre um Pontífice e outro” – Leão XIII

O blog “Tradição em Foco com Roma” publicou a tradução de uma interessante carta do Papa Leão XIII ao Cardeal Guibert, então arcebispo da França. Buscando o original, encontrei a Lettre de Sa Sainteté a Son Em. Le Cardinal Guibert aqui (a partir da página 12). As admoestações do Papa feitas em 17 de junho de 1885 são bastante atuais e podem servir para lançar luzes sobre a situação atual da Igreja: se é verdade que passamos por uma crise talvez sem precedentes na história da Igreja, não é menos verdadeiro que Cristo instituiu sobre esta terra uma Igreja Indefectível e, por mais que as coisas nos pareçam difíceis, não podemos perder de vista a força daquele vigoroso NON PRAEVALEBUNT que, há tantos séculos, Nosso Senhor decretou na Cesaréia.

É claro que a infalibilidade da Igreja é restrita e não ampla: ela engloba os atos do Magistério Supremo entendidos como tais, e não todo pronunciamento de qualquer prelado. No entanto, o contrário de “ser infalível” não é “errar”, como alguns parecem gostar de concluir em um exercício totalmente heterodoxo de lógica proposicional. É bem verdade que há, em princípio, situações nas quais o católico – mesmo o leigo – tem mesmo o dever de desobedecer às ordens da autoridade legítima; inobstante, transformar uma hipótese extraordinária na regra de fé ordinária é uma interpretação tão perigosamente elástica da doutrina católica que deveria ao menos provocar um certo incômodo naqueles que se sabem feridos pelo Pecado Original. Deveria pelo menos lhes deixar com alguma dificuldade de consciência. Como eu escrevi aqui lá no primeiro ano do Deus lo Vult!:

Sempre é possível inventar exemplos e mais exemplos de situações hipotéticas nas quais o homem estaria realmente dispensado da obediência e ainda nas quais obedecer cegamente seria um pecado; mas quando esta hipótese é aplicada amiúde em situações concretas que não guardam com os exemplos aventados senão uma vaga e forçada semelhança, então nós temos um sério problema: nós temos a repetição do non serviam primordial sob uma nova roupagem. Afinal, aquele que é capaz de “se transfigura[r] em anjo de luz” (IICor 11, 14) também é capaz de dar ao seu brado rebelde uma aparência de virtude.

Abaixo, um excerto da supracitada carta de Leão XIII, com grifos meus. Para uma leitura na íntegra, remeto aos links que foram colocados no início deste post.

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Por certos índices que se observam, não é difícil constatar que, entre os católicos, certamente em razão da infirmeza do tempo, existem os que, pouco contentes com sua situação de súditos que têm na Igreja, crêem poder ter alguma parte em seu governo ou pelo menos imaginam que lhes é permitido examinar e julgar à sua maneira os atos da autoridade. Se isto prevalecesse, seria um grande dano na Igreja de Deus, na qual, pela vontade manifesta de seu divino Fundador, distingue-se no seu pessoal os que são ensinados e os que ensinam, o rebanho e os pastores, entre os quais um é o chefe e o pastor supremo de todos.

Apenas aos pastores foi dado poder de ensinar, de julgar, de corrigir, aos fiéis foi imposto o dever de seguir os ensinamentos, de submeter-se com docilidade ao julgamento e de deixar-se governar, corrigir, conduzir à salvação. Assim é absolutamente necessário que os simples fiéis se submetam de espírito e de coração a seus próprios pastores, e esses com eles ao Chefe e Pastor supremo; é nesta subordinação e dependência que gira a ordem e a vida da Igreja; é nela que se funda a condição indispensável do bem fazer e tudo levar a bom porto. Ao contrário, se ocorre que os simples fiéis se atribuem autoridade, se eles a pretendem como juízes e senhores; se os subordinados, no governo da Igreja universal, preferem ou tentam fazer prevalecer uma diretriz diversa daquela traçada pela autoridade suprema, é uma subversão da ordem; leva-se dessa forma a confusão a muitos espíritos, e sae-se do caminho.

E não é necessário, para faltar a um dever tão santo, fazer ato de oposição manifesta, seja aos bispos, seja ao chefe da igreja, é bastante que tal oposição se faça por meios indiretos, tão mais perigosos quanto mais ocorre a preocupação de escondê-los por aparências contrárias. Desta forma, falta-se a esse dever sagrado desde que, ao mesmo tempo que se manifesta zelo pelo poder e as prerrogativas do Supremo Pontífice, não se respeitam os bispos que a ele estão unidos, não se tem em conta suficiente a sua autoridade, e se interpretam lamentavelmente seus atos e suas intenções sem aguardar o julgamento da Sé Apostólica.

Da mesma forma, é prova de uma submissão pouco sincera, estabelecer uma como que oposição entre um Pontífice e outro. Aqueles que, entre duas direções diversas, repudiam o presente para prender-se ao passado, não dão prova de obediência à autoridade que tem o direito e o deverde guiá-los: e sob um certo aspecto se assemelham aos que, condenados, quisessem apelar ao Concílio futuro ou a um Papa melhor informado.

Sob esse aspecto, o que é necessário fixar é que no governo da Igreja, salvo os deveres essenciais impostos a todos os Pontífices por seu cargo apostólico, cada um deles pode adotar a atitude que julgar a melhor, segundo os tempos e outras circunstâncias. Disto é ele o único juiz; considerando que para isso ele tem não somente luzes especiais, mas ainda o conhecimento de condições e necessidades de toda a catolicidade a que convém que condescenda sua previdência apostólica. É ELE QUE CUIDA DO BEM PARTICULAR [??? – C’est lui qui doit procurer le bien de l’Eglise universelle, auquel se coordonne le bien de ses diverses parties, no original], e todos os outros que são submetidos a esta ordem devem secundar a ação de um diretor supremo e servir ao fim que ele quer atingir. Como a Igreja é uma e um o seu chefe, assim é uno o governo a que todos devem conformar-se.

Apologia de um leigo (ou “Eu, Apóstata”)

Hoje pela manhã, descubro que o “Denúncias e Críticas” (ou “Denúncias Críticas”, sei lá) publicou um texto totalmente nonsense onde acusa o Deus lo Vult! de ser, verbis, «um exemplo de veículo de informação que trabalha a favor da apostasia». Eu não lembrava do blog, e já tinha começado a escrever aqui que nunca ouvira falar dele até então; no entanto, vi o nome do autor – Armando Cintra, jornalista de Taubaté – e tive a impressão de que ele não me era estranho. Fui procurar e… bingo!

O sr. Cintra foi quem motivou um texto cá do Deus lo Vult! do ano passado, intitulado “A qualidade dos ataques à Igreja”. A relevância jornalística do sujeito é tão grande que eu já me esquecera por completo dele. Vou apenas aproveitar o artigo atual para dar algumas explicações. Vou ignorar a tagarelice sobre “apostasia” que é francamente desinteressante. Sobre este humilde blog, o sr. Cintra fala quanto segue:

É interessante notar que, apesar de defender a Igreja Católica, esta não endossa o blog como sendo um dos seus veículos oficiais de informação. Fica tudo por conta das opiniões pessoais do autor do blog, que também permite comentários anônimos, desde que, independentemente de lógica ou não, defendam a igreja católica e ataquem outras crenças. Este é um exemplo de veículo de informação que trabalha a favor da apostasia.

O “veículo oficial de informação” da Igreja Católica é o site do Vaticano. O resto só é “oficial” dentro de cada âmbito: o site da CNBB é oficial da CNBB, o da Arquidiocese de Olinda e Recife é oficial da Arquidiocese de Olinda e Recife e este blog é oficial de Jorge Ferraz. Ninguém precisa ter “selo de veículo oficial de informação” para falar sobre a Igreja Católica. Na verdade, eu estou aqui atendendo a um pedido da Igreja; veja-se, p.ex., a Christifideles Laici:

Por isso, a Igreja pede aos fiéis leigos que estejam presentes, em nome da coragem e da criatividade intelectual, nos lugares privilegiados da cultura, como são o mundo da escola e da universidade, os ambientes da investigação científica e técnica, os lugares da criação artística e da reflexão humanística (CL 44).

E ainda a Lumen Gentium do Vaticano II:

[T]odo e qualquer leigo, pelos dons que lhe foram concedidos, é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da missão da própria Igreja, «segundo a medida concedida por Cristo» (Ef. 4,7). […]  Segundo o grau de ciência, competência e autoridade que possuam, têm o direito, e por vezes mesmo o dever, de expor o seu parecer sobre os assuntos que dizem respeito ao bem da Igreja (LG 33. 37).

Portanto, i) não existe a “lista dos blogs oficiais da Igreja Católica”, ii) ninguém precisa de autorização explícita da hierarquia para falar da Igreja Católica, e iii) a comunhão com a Igreja depende da sintonia entre o discurso de um veículo de comunicação e o ensino da Igreja, e não de se o site é mantido por um leigo, um bispo, uma diocese ou uma Conferência. Neste último quesito, aliás, o Deus lo Vult! vai muito bem na fita, obrigado. Só o que é “opinião pessoal” minha aqui é o que está devidamente identificado como tal: este blog traz com freqüência documentos do Magistério, textos de catequese, escritos dos santos, de teólogos, de Papas, et cetera. E não existe aqui, nem mesmo entre as “opiniões pessoais”, nada que seja contrário à Doutrina Católica.

A acusação de que o blog só permite comentários que, «independentemente de lógica ou não, defendam a igreja católica e ataquem outras crenças» é de uma injustiça atroz. Todo mundo sabe (e inclusive disso muita gente reclama) que, aqui no blog, comentam gatos, cachorros e papagaios, ateus e espíritas, gays, protestantes e pagãos, todo mundo. Aliás, eu não conheço nenhum outro lugar da internet lusófona onde sejam permitidos tantos comentários contraditórios quanto aqui. É possível concordar com esta política (mantida, aliás, desde o início do blog com alterações mínimas que infelizmente foram necessárias) e é possível discordar dela, mas não é aceitável contrariar a realidade e dizer simplesmente que tal política não existe.

Por fim, “apostasia” é o “repúdio total da Fé Católica”, coisa que este blog obviamente não faz e qualquer pessoa que não seja analfabeta é capaz de perceber com cinco minutos por aqui. A acusação absurda e ofensiva é depravadamente falsa, sem o menor cabimento, e contra ela eu manifesto o meu mais veemente repúdio.

O objetivo deste blog é servir a Igreja Católica. Se ele não atinge os fins para os quais foi criado (e muitas vezes há muita coisa a melhorar) é propter peccata mea. Posso facilmente aceitar (e eu penso nisso todos os dias) que o Deus lo Vult! poderia e deveria ser bem melhor; mas daí a “trabalhar a favor da apostasia” vai uma distância imensa e absurda, cuja transposição qualquer pessoa com tele-encéfalo minimamente desenvolvido e polegar opositor percebe ser totalmente nonsense. E disto eu tenho convicção por conta dos comentários que recebo de pessoas normais, de bons católicos, tanto leigos quanto sacerdotes. Porque, afinal de contas, para medir a ortodoxia de um apostolado, são estas as manifestações dignas de credibilidade – e não as diatribes de um jornalista anti-clerical de Taubaté.

Podcast IV – Direitos da Igreja, apostolado

Com algum tempo de atraso, trago o novo podcast do Deus lo Vult!. Desta vez, falando sobre a expansão da Fé Católica, os direitos da Igreja de pregar o Evangelho e o Apostolado – inclusive e principalmente dos leigos – enquanto direito e dever de todos os membros da Igreja.

O documento citado no áudio pode ser lido aqui: Apostolicam Actuositatem.

[podcast]https://www.deuslovult.org//wp-content/uploads/podcast/podcast-004-apostolado-leigos.mp3[/podcast]

Clique aqui para baixar.

Para ler

1. Íntegra da nota em que o governo interino [hondurenho] acusa a ingerência de Lula. “[S]endo a presença do senhor Zelaya na missão do Brasil em Tegucigalpa um ato promovido e consentido pelo governo do Brasil, recai sobre este a responsabilidade pela vida e pela segurança do senhor Zelaya e pelos danos à integridade física das pessoas e às propriedades derivadas por permitir que se converta dita missão em uma plataforma de propaganda política e concentração de pessoas armadas que ameaçam a paz e a ordem pública em Honduras”.

2. Não Agüentamos Mais! (Carta ao Clero Italiano) – parte 1 e parte 2. “Nós, leigos, ousamos queixar-nos ao Clero, mas não somos anticlericais, são tais, esses sim, os que renegando o sacerdócio, recusam a instituição, sua dignidade, seus poderes. […] Nosso silêncio poderia ser culposa aquiescência, logo cumplicidade, que convidaria o mundo ridicularizar nossa fé, pisotear nossos mais amados e eternos valores”.

3. O abortamento legal e as mortes evitáveis. “Legalizar o abortamento e disponibilizá-lo na rede pública de saúde se trata de uma ação indispensável na luta por uma justiça social”. É o PSB. O partido ao qual vai se filiar o Gabriel Chalita. E então, Canção Nova?

Bento XVI aos bispos da Regional Nordeste II

[O]s fiéis leigos devem empenhar-se em exprimir na realidade, inclusive através do empenho político, a visão antropológica cristã e a doutrina social da Igreja. Diversamente, os sacerdotes devem permanecer afastados de um engajamento pessoal na política, a fim de favorecerem a unidade e a comunhão de todos os fiéis e assim poderem ser uma referência para todos. É importante fazer crescer esta consciência nos sacerdotes, religiosos e fiéis leigos, encorajando e vigiando para que cada um possa sentir-se motivado a agir segundo o seu próprio estado.

O aprofundamento harmônico, correto e claro da relação entre sacerdócio comum e ministerial constitui atualmente um dos pontos mais delicados do ser e da vida da Igreja. É que o número exíguo de presbíteros poderia levar as comunidades a resignarem-se a esta carência, talvez consolando-se com o fato de a mesma evidenciar melhor o papel dos fiéis leigos. Mas, não é a falta de presbíteros que justifica uma participação mais ativa e numerosa dos leigos. Na realidade, quanto mais os fiéis se tornam conscientes das suas responsabilidades na Igreja, tanto mais sobressaem a identidade específica e o papel insubstituível do sacerdote como pastor do conjunto da comunidade, como testemunha da autenticidade da fé e dispensador, em nome de Cristo-Cabeça, dos mistérios da salvação.

Ad Limina dos Bispos do Brasil – Regional Nordeste 2,
17 de setembro de 2009,
Papa Bento XVI