Onde estudar doutrina católica?

Alguém me perguntou recentemente onde estudar doutrina católica. A pergunta, fazendo-me pensar talvez pela primeira vez em muito tempo sobre o assunto, fez-me perceber que não existem (mais) espaços virtuais de referência em catolicismo, como tais amplamente reconhecidos e capazes de pautar as discussões sobre determinados temas. Hoje tudo é muito pulverizado e, se por um lado há um ganho na amplitude dos assuntos acessíveis, por outro lado uma visão sistemática do todo exige, da parte do leitor, uma disciplina que a própria pulverização da informação torna cada vez mais difícil conseguir.

As coisas eram diferentes há uns dez anos atrás: tudo era muito mais, por assim dizer, concentrado. Os católicos estavam reunidos no canal #catolicos do IRC. Havia duas comunidades “Católicos” no Orkut, uma maior, e mais superficial, e outra, menor, voltada especificamente para dúvidas e debates. Havia dois grandes sites de referência em Catolicismo, o Veritatis Splendor e o da Associação Cultural Montfort. Havia a lista de emails do prof. Carlos Ramalhete, a tradicao-catolica. E praticamente era só.

Se alguém quisesse saber algo sobre um determinado assunto, os sites eram organizados tematicamente, sendo relativamente fácil encontrar o que se procurava. Se alguém tivesse alguma dúvida mais elaborada, a comunidade do Orkut era palco dos mais apaixonados debates — sobre temas não raro inéditos e, às vezes, bem espinhosos. A lista de emails do Yahoo Groups, por sua vez, também já abrigou as polêmicas católicas mais exaltadas que já trafegaram mediante TCP/IP. Em suma, havia uma grande concentração de esforços em um número restrito de espaços, o que tornava cada um deles um centro de excelência.

Hoje não. Primeiro porque, por incrível que pareça, as ferramentas que incentivam construção colaborativa de conhecimento são hoje mais raras do que nos primórdios da Web 2.0: o Facebook, convenhamos, é no máximo arena de propaganda, não comunidade de discussões. Segundo porque os blogs ocuparam o espaço dos grandes portais, e a proposta do blog é diferente daquela de um portal de referência: no próprio Deus lo Vult!, por exemplo, há sem dúvidas muito conteúdo de relativa qualidade, mas eu não posso dizer que, depois de quase uma década, haja suficiente sistematização dos textos aqui publicados. Se alguém chega agora e me pergunta o que já escrevi sobre um dado assunto, eu tenho pouca coisa a fazer além de recomendar o mecanismo de busca do site… Além do mais, os blogs, em regra projetos pessoais, costumam ter o estilo dos seus autores e o ritmo de sua disponibilidade particular, e um site que consegue manter uma boa equipe tende a possuir maiores versatilidade e constância.

Resumindo, a minha sincera impressão é a de que hoje a informação é muito mais completa e mais detalhada do que no início dos anos 2000, mas no entanto está muito mais espalhada — sendo, por isso, de muito mais difícil acesso.

Onde estudar então doutrina católica? Bom, pensando no assunto à luz do que falei acima, o que posso fazer é dar alguns conselhos que mimetizem, o quanto seja possível, a minha experiência particular da década passada. Se isso interessar a alguém, ótimo.

No tocante a dúvidas gerais sobre o Catolicismo envolvendo temas polêmicos, a sempre recomendada revista do saudoso D. Estêvão oferece uma espécie de apologética preambular. Os temas lá tratados, embora raramente sejam exauridos (até por conta dos limites de espaço), são contextualizados de modo bastante satisfatório para quem pretende entender os contornos gerais do problema. Muitas edições da revista estão disponíveis online e podem ser acessadas aqui. Desconheço se há alguma perspectiva de digitalizar os exemplares faltantes [p.s.: conforme informaram nos comentários, todo o acervo digitalizado da P&R está disponível no Scribd].

Para se obter uma visão ampla dos diversos ramos do Catolicismo o caminho mais simples é a leitura dos manuais — em português antigo, quase sempre xerocados ou, pior, em xerox digitalizadas. Para citar os mais facilmente encontráveis: Dogmática, Ludwig Ott; Moral, Del Greco, Royo Marín; Mística, Tanquerey. Também o Boulenger (Instrução Religiosa; Apologética) me foi muito útil nos proêmios do Catolicismo. Alguns sites que possuem obras valiosas disponíveis na íntegra são o Mercabá, o Alexandria Católica e o Obras Raras do Catolicismo: não deixem nunca de visitar, divulgar e colaborar com eles.

Livros clássicos, há-os muitos e é até difícil sistematizá-los aqui. Mais uma vez, com base unicamente na minha experiência particular, sem nenhuma sistematização mais rigorosa, sem pensar muito no assunto, os livros que tiveram maior relevância na minha formação foram: o Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem (São Luís de Montfort), A prática do amor a Jesus Cristo (Santo Afonso de Ligório), Filotéia (São Francisco de Sales), Ortodoxia (Chesterton), A Fé em Crise? (Vittorio Messori / Card. Ratzinger), A Imitação de Cristo (Tomás de Kempis), Confissões (Santo Agostinho), O Diálogo (Santa Catarina de Sena). Ao lado destes há um sem-número de outros cuja não-leitura até hoje perfaz talvez o aspecto mais embaraçoso da minha parca erudição, como a História de uma Alma (Santa Teresinha), o Castelo Interior (Santa Teresa), A alma de todo apostolado (Dom Chautard), As Grandes Heresias (Billoc), a Apologia Pro Vita Sua (Card. Newman), As três idades da vida interior (Garrigou-Lagrange) e tantos, tantos outros. Trata-se de lista que eu não tenho envergadura para elaborar.

Leituras demoradas e silenciosas de coisas antigas: em linhas gerais é isso. Reconheço que é uma receita muito diferente da sistemática atual, onde a Timeline tem uma efemeridade assustadora e onde as pessoas só parecem capazes de ler manchetes ou assimilar memes. Mas eu penso que a apreensão de um conhecimento sólido sobre o que quer que seja não condiz com a forma como se consome informação na internet atualmente. É preciso parar para ler algumas coisas que não fiquem mudando rapidamente na tela do computador ou do celular enquanto você olha para o lado: é preciso ler aquilo que tem suficiente estabilidade ao longo do tempo para valer a pena ser lido. Talvez essa não seja a única forma de se aprender doutrina católica, reconheço; mas serviu para mim e, portanto, talvez sirva para mais alguém.

Clássicos católicos para o Kindle: Lúcio Navarro e Tanquerey

A quem interessar possa, a Amazon está vendendo, em formato Kindle, dois livros excelentes em português. Cliquem nas capas para os obter.

Legítima Interpretação da Bíblia, de Lúcio Navarro. Obra seminal da apologética contra o protestantismo, durante muitos anos esteve fora de edição; lembro-me inclusive de que há alguns anos um grupo de católicos daqui de Recife dividiu entre si as xerox dos capítulos do livro para que ele pudesse ser transcrito e reeditado — um trabalho colaborativo muito tempo antes de existir o crowdfunding. A obra é verdadeiramente clássica e vale muito a pena para conhecer mais a fundo a doutrina católica extraída das Escrituras — e como a interpretação dos protestantes é totalmente insustentável diante da Bíblia que eles próprios têm por sagrada.

Compêndio de Teologia Ascética e Mística, de Tanquerey. Outro clássico da vida espiritual, cuja única tradução comercial para o português, até onde eu conhecia, era a da Permanência que hoje, salvo engano, encontra-se esgotada. Eu costumo ter medo de “novas traduções atualizadas”, mas este compêndio possui uma autoridade multissecular — difícil, quero crer, de ser obscurecida por eventuais problemas de tradução. De qualquer modo o produto está bem avaliado no site da Amazon, e não encontrei críticas ao trabalho do Dalton César Zimmermann. Quem quiser comparar com uma edição tradicional pode baixar a do pe. João Ferreira Fontes aqui.

E se você ainda não tem um Kindle, ele está em promoção na Amazon; considere adquirir. Vale muito a pena.

Recomendações

Dois grandes amigos meus publicaram recentemente livros pelo Clube de Autores. São pessoas que a maior parte dos meus leitores deve conhecer – o Rafael Vitola Brodbeck e o Taiguara Fernandes de Sousa, ambos do Veritatis Splendor – e que dispensam maiores apresentações. Gostaria de escrever uma resenha sobre os livros para apresentá-los, mas a escassez de tempo mo impede, infelizmente. Mas adianto a recomendação: cliquem nas capas dos livros para os adquirir.

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Ligeiro apanhado de coisas pendentes

– Frei Betto: “Mercado da fé”. Mais do mesmo: o velho dominicano destila o seu veneno contra a Igreja Católica a Quem ele deveria servir, lamentando a crise pela qual passa o catolicismo, a falta de vocações, as “missas (…) desinteressantes”, os “sermões (…) vazios de conteúdo”, reclamando da “desconstrução do Concílio Vaticano II” (sic), enaltecendo as igrejas protestantes e as CEBs, criticando o “clericalismo”, a exigência de “virtudes heróicas, como o celibato”, etc. Não percebe [ou não quer perceber?] que as coisas defendidas por ele estão exatamente na raiz da crise e que a Igreja voltará a crescer, sim, sem dúvidas, quando Se desvencilhar de Bettos, Boffs et caterva. Esta gente sem Fé que caminha a passos largos para o Inferno parece querer, por alguma comichão diabólica, arrastar a Igreja para baixo junto com ela. Mas não adianta, porque portae inferi non praevalebunt.

– Era bom demais para ser verdade: recebi por email um discurso do 1º ministro australiano à comunidade muçulmana que continha tudo o que a gente gostaria de ouvir alguém dizendo aos muçulmanos. “A maior parte do Australianos crê em Deus. (…) Se Deus vos ofende, sugiro-vos então que encarem outra parte do mundo como o vosso país de acolhimento, porque Deus faz parte da nossa cultura”. “[S]e vocês tem muitas razões de queixa, se estão fartos da nossa bandeira, do nosso compromisso, das nossas crenças cristãs, ou do nosso estilo de vida, incentivo-os fortemente a tirarem partido de uma outra grande liberdade australiana: o direito de partir”. Lindo; mas infelizmente é hoax

– Reforço as três recomendações do Gustavo. Lei Natural, aborto, Teologia Moral. Leiam lá.

– Também recomendo o texto publicado no Tubo de Ensaio contendo os comentários de um amigo comum meu e do Marcio a um texto do Marcelo Gleiser do último domingo, sobre se a matemática é algo inventado ou descoberto. Leiam lá.

– Não tenho tempo de traduzir, mas serve a indicação: uma organização americana (NOW – National Organization for Women), após o assassinato do Dr. Tiller, está exigindo que o Departamento de Justiça e Segurança Nacional classifique os pró-vida como terroristas. O fato de todos os grupos pró-vida americanos terem condenado o crime não tem nenhuma importância para a citada organização. Aliás, foi publicado um editorial do Kansas City Star onde se diz que os pró-vida bem poderiam guardar para si próprios as suas manifestações de espanto e tristeza, porque estariam intimamente – privately – agradecidos pelo assassinato do dr. Tiller! Dá para acreditar que há jornais publicando este tipo de exercício de adivinhação difamatório?

Pandemia de Lucro, sobre os interesses econômicos por detrás da gripe suína. A pergunta final, à parte o viés esquerdista, é pertinente: “Pero si la gripe porcina es una pandemia tan terrible como anuncian los medios de comunicación… Si a la Organización Mundial de la Salud le preocupa tanto esta enfermedad, ¿por qué no la declara como un problema de salud pública mundial y autoriza la fabricación de medicamentos genéricos para combatirla?”.

– Vale uma visita ao Micro Book Studio, que contém diversas obras em inglês, português, espanhol, italiano e latim disponíves gratuitamente, de Garrigou-Lagrange (A Synthesis of Thomistic Thought), de Santo Tomás de Aquino (Comentários a Aristóteles), de René Muller (As Primeiras Missões Jesuítas). Aproveitem!