Lutero e o orgulho de se salvar sozinho

Aproveitando o ensejo dos quinhentos anos da Reforma Protestante, penso que é oportuno voltar os olhos para Martinho Lutero. Debruçando-nos sobre os escritos do velho heresiarca, penso que é possível a nós, católicos, aumentarmos a nossa Fé — ainda que por contraposição.

Por exemplo, eu muitas vezes me pego a explicar, em aulas de catequese, que aprouve a Deus tornar-nos colaboradores d’Ele na ordem da Redenção. Isso se aplica em primeiríssimo lugar à nossa própria salvação (aqui, a frase de Santo Agostinho, tão antiga mas nunca gasta: “Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti”); aplica-se, também, à Mediação Universal da Virgem Santíssima (e, aqui, o título d’Ela, justíssimo, de “Medianeira de todas as graças”), mas se aplica também a muitas outras coisas comuns e ordinárias. A intercessão mútua é o dia-a-dia dos cristãos. Somos todos, em alguma medida, co-responsáveis pela sorte eterna uns dos outros.

Deus tem duas obras: a Criação e a Redenção. Ora, Ele não determinou que a transmissão da vida natural se desse mediante o concurso do homem e da mulher, através da relação sexual? Sem dúvidas a alma é criada diretamente por Deus, mas o corpo é transmitido dos pais. Não é o homem corpo e alma? Sem corpo, pois, não há homem. A conclusão aqui é assombrosa, mas inelutável: sem o concurso humano cessa a obra criadora de Deus.

E assim como a transmissão da vida natural — a continuação da obra criadora de Deus — não se dá sem a colaboração humana, assim também, mutatis mutandis, a continuação da obra salvífica de Deus — a redenção das almas, a comunicação da vida sobrenatural — não ocorre sozinha, exigindo também ela a cooperação voluntária dos filhos de Deus. A conclusão aqui é ainda mais assombrosa, mas não é menos certa: sem que os homens cooperem, portanto, mesmo o Sacrifício da Cruz queda estéril.

(Veja-se, é possível admitir que, no reino das meras possibilidades metafísicas, as coisas até poderiam ser de outra maneira. No entanto, não cabe a nós discutir com o Altíssimo sobre a melhor maneira de estabelecer a ordem do Universo: sim, as coisas poderiam ser de outro modo, mas o fato é que elas são assim, e a nós não compete senão reconhecê-lo, a fim de agimos conforme o que as coisas são e não o que poderiam ser.)

É este o fundamento da intercessão dos santos, é isto que justifica o múnus santificador da Igreja encarnada, é à luz dessa verdade que fazem sentido as palavras de Nossa Senhora em Fátima: “Muitas almas vão para o inferno por não haver quem se sacrifique e reze por elas”. Sim, Deus poderia fazer sozinho todas as coisas; não o quis, no entanto, preferindo em tudo depender da liberdade de suas criaturas.

Ocorre que Lutero não entende nada disso. Para Ele Deus faz tudo sozinho e o homem está sozinho diante de Deus, nem existe cooperação do homem com a graça divina e nem existem intermediários na relação do homem com Deus. O heresiarca simplesmente não compreende que Deus possa querer redimir os homens à força das boas obras de outros homens. Veja-se, para o ilustrar, esta reveladora passagem das 95 teses:

82. Por exemplo: por que o papa não evacua o purgatório por causa do santíssimo amor e da extrema necessidade das almas – o que seria a mais justa de todas as causas -, se redime um número infinito de almas por causa do funestíssimo dinheiro para a construção da basílica – que é uma causa tão insignificante?

Ora, a resposta a isso é bastante óbvia. Deus não esvazia o Purgatório sozinho pela exata mesma razão que Ele não salva sozinho as almas: porque Ele quer que os homens cooperem com a salvação uns dos outros. O dinheiro, em si, não tem nenhuma relevância nesta questão, o que está em jogo é a boa obra alheia. Esta pode ser uma obra indulgenciada (como, no caso do séc. XVI, era o auxílio material para a construção da Basílica de São Pedro) como pode ser qualquer outra coisa, uma oração ardente, uma tribulação suportada com paciência, um copo de água dado a um pobre, um ponto de costura dado na roupa: se por amor de Deus, se ordenada, é meritória e tem valor salvífico para nós e para o nosso próximo.

Veja-se, o problema de Lutero não é com o dinheiro. É com a “intromissão” de um terceiro na relação entre a alma e Deus. Não é que o monge atormentado achasse que o dinheiro era uma coisa suja ou que havia muita corrupção no clero da sua época, o que Lutero não aceitava era que alguém pudesse ser salvo graças a uma boa ação de uma outra pessoa. O que Lutero achava era que as pessoas deviam se salvar sozinhas. Um dos «erros de Martinho Lutero» condenados na Exsurge Domine é o seguinte:

As almas libertas do purgatório pelos sufrágios dos vivos são menos felizes do que se elas prestassem satisfação por elas mesm[as].

Não era, portanto, pelo dinheiro. Era pela noção de “boa obra”, cujo valor sobrenatural Lutero não admitia. Era por conta dos «sufrágios dos vivos» que, na concepção tortuosa de Martinho Lutero, apequenavam os mortos que os recebiam. Era, em suma, por conta do extremo individualismo do monge alemão, incapaz de aceitar que somente as mãos estendidas de outros homens (todos pecadores) poderiam resgatá-lo da danação eterna. Alegando ter acesso direto a Deus, o que Lutero desprezava era o auxílio dos seus irmãos; sob a rejeição da intercessão dos santos estava o orgulho de pretender se salvar sozinho.

Extremada loucura. É exatamente assim que acontece com todos nós: somos levados ao Céu graças somente ao trabalho incessante de uma miríade de pessoas desconhecidas, cujas orações e sacrifícios, cujas boas obras, cujos méritos aproveitam a nós e se não fosse por eles nós sem dúvidas pereceríamos miseravelmente. Esta é a realidade que Cristo nos revelou e Lutero não quis aceitar. Esta é a Fé Cristã, à qual o pai do Protestantismo tão desgraçadamente deu as costas — arrastando séculos afora uma multidão de almas à perdição atrás de si.

Pode-se deixar de lado a verdade histórica?

O texto-base da Semana de Oração para a Unidade dos Cristãos deste ano provocou estranheza ao dizer, entre outras coisas, que Martinho Lutero — o reformador protestante — seria uma «testemunha do Evangelho». Literalmente, o documento fala logo no início:

Deixando à parte o que é polêmico, nas visões teológicas da Reforma, católicos agora são capazes de ouvir o desafio de Lutero para a Igreja de hoje, reconhecendo-o como uma “testemunha do evangelho” (Do Conflito à Comunhão 29).

Infelizmente, a referida «semana de oração» presta-se muitas vezes ao mesmo papel que, no Brasil, a CNBB desempenha com a sua Campanha da Fraternidade: obscurecer a mensagem do Evangelho com um discurso anódino cujo objetivo maior é quase sempre afirmar lugares-comuns. Porque, ora, «deixando à parte o que é polêmico» pode-se afirmar qualquer coisa, é lógico. Afinal de contas, sempre e por definição, tirando tudo o que está ruim tudo está sempre muito bem e não há como ser diferente. À parte tudo o que tem de errado a Reforma Protestante só tem coisas corretas, e o mesmo se pode dizer de absolutamente qualquer coisa na face da terra.

O problema é que «deixando à parte o que é polêmico» nós estaremos deixando de lado o próprio protestantismo, exatamente naquilo que o faz ser o que é, no que o distingue do Catolicismo. Deixando de lado o fato de que Lutero, falsificando o Evangelho, levou milhões de almas à perdição nos séculos seguintes, então se pode dizer, é claro, que ele tenha sido «testemunha» da mensagem cristã. Mas a pergunta que interessa aqui é: pode-se deixar de lado, desse jeito, a verdade histórica?

Porque quando a comissão conjunta atribui a Lutero o pomposo “título” de «witness to the Gospel» o que ela está fazendo é exatamente isto: valorizando as (supostas) intenções do monge atormentado e desculpando-lhe as atrocidades pelas quais ele passou à história. É rigorosamente o que se diz no «Do conflito à comunhão» (p. 22):

29. Aproximações implícitas com as preocupações de Lutero levaram a uma nova avaliação de sua catolicidade que teve lugar no contexto do reconhecimento de que sua intenção era reformar, não dividir a Igreja. Isso é evidente nos posicionamentos do Cardeal Johannes Willebrands e do Papa João Paulo II. A redescoberta dessas duas características centrais [de que não queria dividir e que queria reformar] de sua pessoa e teologia levaram a uma nova compreensão ecumênica de Lutero como “testemunha do Evangelho”.

Ou seja, pode-se chamar o velho alemão de «testemunha do Evangelho» porque, na verdade, a «sua intenção era reformar, não dividir a Igreja». Parece importar pouco que, historicamente, ele tenha dividido a Igreja ao invés de A reformar; a aproximação dita ecumênica autoriza ignorar os fatos para se ater às motivações ocultas. Ora, o problema é que desse jeito se pode justificar quase qualquer coisa! Deve ser muito pequeno o número de indivíduos no curso da história que não tinham, ao menos em alguma medida, intenções boas (e então, pra ficar só em um exemplo, a intenção de Fidel Castro provavelmente era libertar, e não escravizar o povo cubano); o ponto é que não é isso o que importa, e sim o resultado exterior, observável, das ações das personalidades históricas. A ignorância de Lutero, ou a sua demência, ou sua possessão demoníaca ou qualquer outra coisa do tipo, pode até lhe ter mitigado a responsabilidade pelos gravíssimos pecados que cometeu; mas não tem, no entanto, e nem pode ter, o condão de, externamente, transmutá-lo em defensor Fidei!

A investigação psicológica das motivações íntimas — essa espécie de história da vida privada — tem decerto relevância na medida em que o conhecimento verdadeiro é em si mesmo bom; mas é um claro equívoco utilizá-lo para lançar um manto de esquecimento sobre a tradicional história da vida pública, externa e factualmente observável. Não é sem razão que a sabedoria popular diz que de boas intenções o inferno está cheio. Lutero pode ter tido as melhores intenções do mundo: o fato objetivo e incontrastável, no entanto, é que causou um dano terrível à Cristandade, tendo precipitado ao inferno as almas — multidões de almas! — que deram mais ouvidos às suas sandices do que às palavras de Vida Eterna ecoadas pelo Vigário de Cristo.

Pesadas todas as coisas, sem deixar «à parte o que é polêmico», é evidente que a verdadeira testemunha do Evangelho, no contexto da Reforma Protestante, foi Leão X e não Lutero. O silêncio sobre isso corre o sério risco de se tornar uma inverdade histórica por omissão. É preciso haver reconciliação entre os cristãos, sim, porque é preciso que o filho pródigo retorne; mas qualquer reconciliação somente é possível na verdade e não no auto-engano — e simplesmente não tem lá muito sentido dizer que, deixando à parte o fato de se tratar de comida estragada, a lavagem dos porcos foi o alimento que deu ao irmão mais novo o vigor necessário para empreender o retorno à casa paterna.

Nam oportet et hereses esse ut et qui probati sunt manifesti fiant in vobis (ICor XI, 19): importa que haja heresias, para que se manifestem os que são probos. Esta passagem de São Paulo aplica-se também aqui. Lutero só é «testemunha do Evangelho» no sentido em que o erro é testemunha da verdade: por oposição. Aliás, é até curioso que a comissão luterana tenha subscrito aquele texto: de acordo com ele, só é possível reconhecer o testemunho evangélico de Lutero na exata medida em que a sua obra pública contradiz a presumida nobreza de suas intenções privadas.

Hoje a Igreja celebra os protestantes que estão no Céu

Santo é uma palavra equívoca dentro da doutrina católica. Pode significar aquela pessoa que, por ter levado uma vida terrena de extraordinária conformação a Cristo, merece ser apresentada aos fiéis católicos como um modelo a ser seguido — é o seu sentido aliás mais comum e corriqueiro; mas pode significar, também e igualmente, aquela pessoa que simplesmente (como se “simplesmente” fosse um modo aplicável aos novíssimos, mas enfim) ao final da vida se salvou e, tendo já purificado os seus pecados, encontra-se na Glória diante de Deus. São os santos no seu sentido mais lato, i.e., todas aquelas pessoas que alcançaram a santidade — que, em última instância, outra coisa não é que a salvação. É por isso, aliás, que as proposições “fora da Igreja não há salvação” e “fora da Igreja não há santidade” são equivalentes, e por vezes nós as encontramos na sua forma mais sintética quando se quer enfatizar este papel insubstituível da Igreja Católica: Ela é a Igreja de Cristo, fora da qual não há salvação nem santidade.

Santo, assim, significa duas coisas distintas. Há, como gosta de dizer um velho professor amigo meu, o santo do Céu e o santo de altar. Todos aqueles que estão no Céu junto a Deus são, no rigor do termo e com todo o direito, santos; mas nem todas as pessoas que alcançaram a graça da perseverança final levaram necessariamente uma vida externa digna de ser reverenciada e imitada. O mais empedernido pecador que tenha se arrependido na hora de morte, e de cujo arrependimento a notícia não chegou a ser humano algum, pode purgar os seus pecados no Purgatório e, depois, alcançar a Bem-Aventurança junto a Deus — e será santo por estar no Céu. Mas não poderá jamais, por razões óbvias, ser santo de altar, ser apresentado como modelo de vida à imitação dos fiéis, simplesmente porque a única parte da sua vida propriamente digna de imitação — o arrependimento final — é desconhecido de todos os homens.

Não obstante, santo é santo. Todas as almas bem-aventuradas que estão diante de Deus gozam, por assim dizer, dos mesmos privilégios, independente dos caminhos pelos quais tenham passado até chegar à presença do Altíssimo. São, assim, todos eles, membros da Igreja Triunfante — e por conseguinte da única Igreja de Cristo — e podem interceder pela salvação dos homens que ainda vivem aqui na terra, na Igreja Militante ou fora d’Ela.

Hoje a Igreja celebra a Solenidade de Todos os Santos e esta festa é particularmente dedicada a estes “santos ocultos” — a estas almas benditas que, não possuindo a glória dos altares, são todavia membros da Igreja Triunfante e com Ela intercedem junto a Deus pela salvação do mundo inteiro. E hoje o Santo Padre, o Papa Francisco, termina a sua viagem apostólica à Suécia — uma viagem de polêmico cariz ecumênico — justamente com a celebração da Santa Missa de Todos os Santos. A data não podia ser melhor escolhida. Trata-se de um dia extremamente propício para a realização de atos ecumênicos pela seguinte singela razão: hoje é o único dia do ano litúrgico em que a Igreja celebra os não-católicos que estão no Céu!

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Afinal de contas, quem são os que se salvam? São aqueles que, conservando ao longo da vida as vestes puras que receberam no Santo Batismo, mediante uma vida de graça e de amizade com Deus adquirem d’Ele o imerecido dom da perseverança final. Esta é a regra. Mas há uma importante exceção: também se salvam aqueles que, cumprindo retamente os ditames da Lei Natural, «sofrem de ignorância da verdadeira religião, se aquela é invencível» (Pio IX, Singulari Quadam). E os que se salvam fora dos limites visíveis da Igreja Católica por esta ignorância somente de Deus conhecida são santos também, com todas as prerrogativas das almas bem-aventuradas cuja festa nós hoje celebramos. O Dia de Todos os Santos é também o dia destes santos.

Não dá para saber exatamente quem são as almas que apenas na hora da morte descobriram que deviam ter sido católicas a vida inteira, nem quantas elas são. No entanto é certo que elas existem; e se elas existem, e se no momento da morte descobriram que a religião que seguiram a vida inteira mais as afastou que as aproximou de Cristo, e se sabem agora que deveriam ter desde sempre, desde a mais tenra infância, militado nas fileiras da Igreja Católica e Apostólica sob o estandarte do Papa e da Virgem Santíssima… não é então razoável imaginar que elas, no Céu, junto de Deus, intercedam particularmente pela conversão dos que vivem nas trevas do erro religioso? Do mesmo erro que quase lhes valeu a danação eterna?

Imagine-se um protestante que tenha ido ao Céu — quer por ter se convertido verdadeiramente no último suspiro, quer porque viveu a sua vida inteira na mais cândida ignorância da verdadeira religião. Esse protestante há de ter se arrependido amargamente de toda a insubmissão na qual consumiu a vida inteira; há de ter pensado em como a sua vida teria sido mais fácil se ele acorresse com frequência aos sacramentos, se se valesse diariamente da invocação do nome da Santíssima Virgem Mãe de Deus. Há de aquilatar como não teria sido mais santo, e com muito mais facilidade, se tivesse à sua disposição os meios que Cristo instituiu para a santificação das almas. Ora, este protestante não há de se compadecer particularmente do risco terrível que correm os seus correligionários? Não há de consumir o seu Céu especialmente a serviço deles — para que não corram os mesmos riscos que correu e para que alcancem o quanto antes, ainda em vida!, a graça que ele só abraçou no instante derradeiro?

Façamos um pequeno exercício especulativo. Imaginemos que Lutero, na hora derradeira, após gravar nas paredes do seu quarto o agônico e blasfemo pestis eram vivens, moriens ero mors tua, papa, tenha se arrependido. Imaginemos que, por uma graça insólita da Virgem Mãe de Deus (pela qual, ao que parece, o Heresiarca conservou sempre um resquício de devoção), ao último suspiro o monge louco caiu em si e se arrependeu. Tal portento, que a História não registrou, se de fato ocorreu há de ficar oculto dos homens até a Segunda Vinda de Cristo. Mas semelhante graça, se existiu, aproveitou à pobre alma atormentada do monge alemão. Se tal tiver acontecido, o monge rebelde estará no Céu e não poderá ser jamais santo canonizado — porque a sua vida inteira foi um completo anti-exemplo de Cristianismo. Mas, se tal tiver acontecido, o único dia em que ele poderá ser de algum modo celebrado é o dia de hoje, Primeiro de Novembro, o day-after da Reforma. Seria uma deliciosa ironia.

Lutero certamente pode não ter se salvado. Mas algum protestante que tenha vivido nestes últimos quinhentos anos provavelmente se salvou; e este protestante que gastou a sua vida na heresia e que consumiu seus anos distante de Deus tem hoje a chance de suplicar uma melhor sorte para os seus companheiros de infortúnio. Hoje a Igreja celebra todos os protestantes que a despeito do protestantismo tenham alcançado a salvação; é, portanto, um dia adequado, adequadíssimo, para suplicar a unidade de todos os cristãos sob o báculo do Vigário de Cristo. Ao Papa Francisco juntam-se hoje os santos do Céu; e entre os santos do Céu há alguns que em vida foram protestantes até o suspiro derradeiro.

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Hoje, na Suécia, o Papa Francisco rezou junto com os hereges, e a cena tinha certos contornos escatológicos. Porque hoje — especialmente hoje! –, no Céu, rezam juntos os católicos e os [que em vida foram, ao menos materialmente,] protestantes. Para que esta cena terrestre se reproduza um dia no Céu, no entanto, é preciso que todos, católicos e protestantes, estejam dentro da única Igreja de Cristo — fora da qual não há salvação e nem santidade. Isto já o perceberam todos os protestantes que estão no Céu. E todos estes hoje, diante de Deus, rezam para que também o percebam, e o quanto antes!, os protestantes que ainda estão na terra — as ovelhas tresmalhadas, moribundas e exânimes, ao encontro das quais nestes últimos dias o Papa Francisco moveu toda a Igreja.

O Bom Pastor vai ao encontro da ovelha desgarrada

O site do Vaticano ostenta hoje, logo na sua página inicial, a viagem apostólica do Papa Francisco à Suécia — seguida pelo constrangedor subtítulo de «por ocasião da comemoração comum luterano-católica da reforma». Como o assunto dá margem para muitíssima confusão — com pessoas exultando por um lado porque a Igreja está “aceitando” o protestantismo e, pelo outro, rasgando as vestes porque o Papa é a Besta do Apocalipse –, convém pontuar alguns detalhes aos quais não se costuma dar a devida atenção.

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Duas semanas atrás eu escrevi aqui sobre a peregrinação a Roma que o heresiarca Lutero, em efígie, foi constrangido pelos seus descendentes a fazer. Era Lutero se revirando no túmulo e os protestantes carregando a sua estátua para a apresentar ao Vigário de Cristo. Já então houve quem perguntasse, se fosse assim, como se deveria ler a anunciada viagem do Papa à Suécia que hoje se inicia. Ora, outra leitura não é possível fazer: é o Bom Pastor que, destemidamente, vai mesmo aos mais putrefatos charcos em busca da ovelha desgarrada, a fim de lhe colocar sobre ombros para a trazer de volta ao aprisco de Cristo — no interior do qual somente ela é capaz de encontrar segurança!

É claro que é incômodo ver falar-se de “comemoração” em se tratando de uma revolta luciferina que estraçalhou a Cristandade e precipitou milhões de almas no Inferno pelos últimos quinhentos anos. Dê-se, no entanto, um desconto ao bom-mocismo e à política de boa-vizinhança: é um tributo que mesmo os melhores pagam aos tempos que correm. Etimologicamente comemoração significa “lembrar junto” e pronto; não há que se falar n’alguma conotação laudatória intrínseca ao termo, como se o Papa estivesse louvando a heresia ou enaltecendo o heresiarca. Fui olhar a página da viagem apostólica em seus diversos idiomas; em inglês diz «commemoration», em espanhol, «conmemoración», em italiano «commemorazione». Ora, fala-se sem maiores celeumas em «commemorazioni del centenario» da Primeira Guerra Mundial (do início, em 2014, e não do fim) e em «commemoration of the Holocaust», e ninguém é louco de dizer que, por conta disso, o Holocausto ou a Primeira Guerra sejam coisas positivas. Por mais malsonante que o termo “comemoração” nos seja, portanto, o que interessa é o conteúdo do encontro e não o nome que se lhe dá. O mesmo, aliás, foi dito recentemente por um ex-protestante convertido à Igreja em 2014: a visita do Papa «comemora a reforma, não a celebra».

Os protestantes provavelmente consideram uma coisa boa a origem de sua religião; os católicos certamente não consideramos uma coisa positiva a ruptura eclesiástica. Católicos e protestantes, assim, podem até lembrar juntos o mesmo evento do 31 de outubro, mas o fazem sob óticas distintas: estes o lembram como um feito heroico a ser celebrado, enquanto os primeiros o veem como uma lembrança triste que se deve lutar por não repetir jamais. Toda declaração ecumênica tem um quê de fórmula de compromisso, passível de leituras diferentes por cada um dos lados — é óbvio. Não fosse assim, tratar-se-ia já de plena comunhão e não de caminho ecumênico.

O diálogo ecumênico travado a nível das grandes lideranças religiosas apresenta, assim, essa característica particular: por vezes dá mais ênfase ao consenso político que ao rigor doutrinário. Pode-se até discordar dessa abordagem, mas é equivocado conferir a esses documentos a mesma leitura que se dá aos cânones dos concílios dogmáticos: são dois discursos completamente diferentes a exigir hermenêuticas completamente distintas. Concretamente: diante — por exemplo — da declaração conjunta hoje proferida em Lund pode-se até dizer que silenciar os pontos de discordância entre a Fé e a heresia mais atrapalha que ajuda a causa da plena comunhão, mas não se pode ler na referência aos «dons espirituais e teológicos recebidos através da Reforma», por absurda que seja a frase, uma revogação tardia da Exsurge Domine.

E não se diga que tal é coisa exclusiva do atual pontificado! Bento XVI não foi para Erfurt dizer que o «pensamento de Lutero, a sua espiritualidade inteira era totalmente cristocêntrica»? A única diferença entre as duas atitudes é o estilo do velho pontífice alemão. De resto é a mesma coisa: são os usos contemporâneos, as regras de etiqueta socialmente aceitas nos tempos de hoje. É um equívoco imaginar que elas sejam mais do que fórmulas de tratamento e regras de educação — função fática que só serve para manter aberto o canal de comunicação adequado à sensibilidade contemporânea.

É grande a miséria espiritual dos pobres filhos da Reforma! Não é para os manter na indigência que o Papa Francisco lhes vai ao encontro. O que move o Vigário de Cristo não é a indiferença pela sorte eterna dos que morrem longe da Igreja de Cristo, mas a «esperança da reconciliação» entre os discípulos de Cristo e os sequazes de Lutero. Também pelos hereges morreu Nosso Senhor, também a eles se estende a mensagem salvífica do Evangelho. Não é possível bater o pó das sandálias de uma vez para sempre; a cada homem Cristo dirige o Seu chamado. Para que se converta, evidentemente, que não se trata (talvez não seja nunca demais repetir) de manter os hereges longe da Fé. Mas não se pode simplesmente presumir que todos os transviados do mundo tenham a exata dimensão do quanto estão perdidos.

Se o Papa se apresenta sujo de lama e coberto de espinhos, portanto, talvez não precisemos lançar-lhe em face o desleixo ou censurar-lhe pelas costas a displicência com a qual ele se entrega à causa do Evangelho. Talvez ele esteja fazendo o melhor que pode. Talvez esteja fazendo melhor do que qualquer um de nós faríamos. Talvez ele faça exatamente o que precisa ser feito. Não se passa uma vida inteira pregando em meio aos bárbaros sem lhes adquirir alguns hábitos que pareçam repulsivos a uma sensibilidade mais refinada. Ora, o mundo moderno é completamente insano; deveríamos nos surpreender tanto assim que, à força de ser obrigada a lhe falar dia e noite sobre Cristo, a Igreja historicamente encarnada adquira dele alguns cacoetes?

Talvez a voz cansada do Bispo de Roma não esteja à altura dos coros angélicos que desejaríamos ver anunciando o Evangelho. É possível. Mas Cristo nos mandou seguir o velho pescador e não as falanges angélicas. A submissão ao Romano Pontífice é absolutamente necessária à salvação de toda criatura humana, e a observância dessa regra básica não está condicionada a nenhuma qualidade particular daquele que esteja sentado no Trono de Pedro. Nem muitíssimo menos aos juízes particulares que somos tentados a fazer a respeito das qualidades daquele que porta na fronte a tríplice coroa do poder supremo.

Enfim, o Papa Francisco vai à Suécia. O Bom Pastor vai ao encontro das ovelhas desgarradas em meio aos pântanos pestilentos, do filho pródigo refestelando-se na lavagem dos porcos, dos bastardos de Lutero chafurdando na heresia. Os seus pés podem estar rasgados, suas vestes, enlameadas, sua voz rouca; mas são só os pés dele que conhecem o caminho da Salvação, é nas suas vestes apenas que estão estampadas as insígnias do Rei, é através da voz dele somente que Cristo nos fala e nós O temos que ouvir. 

Lutero, enfim, vai a Roma

Um leitor faz a gentileza de me perguntar:

Queria ver sua explicação para a imagem de Lutero no Vaticano. Sei que você terá uma boa explicação. Já vi um padre dizer no facebook que foi uma provocação dos protestantes. A sua será semelhante? Algo do tipo: os luteranos que trouxeram e seria falta de educação não colocar ali?

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Não acho que tenha sido provocação. A questão me parece toda outra.

Deus criou o ser humano para Si, como diz Sto. Agostinho, e por isso o coração do homem vive inquieto enquanto não repousa n’Ele. Esta inquietude pode ser ignorada e pode ser posta de lado, pode ser enterrada por um tempo, pode ser disfarçada, maquiada, anestesiada, pode tudo: só não pode ser plenamente vencida. Porque ela foi posta pelo próprio Deus e, portanto, nada que o homem faça por si só, por suas próprias forças, será capaz de prevalecer sobre aquilo que Deus mesmo estabeleceu. É como, mutatis mutandis, aquela inimizade — inimicitias ponam… — que no início do Mundo foi estabelecida entre os filhos de Deus e os filhos das Trevas. Ela simplesmente não pode ser superada: o engenho humano não pode, absolutamente não pode lograr sucesso contra a vontade positiva do Onipotente.

Nada que os homens façam por sua própria conta será capaz de (re)estabelecer a unidade do gênero humano. Aqui falharam todas as empresas humanas, todos os impérios do passado, todas as potências do presente, todas as construções teóricas e os modelos de pensamento, tudo, tudo. As verdadeiras paz e concórdia só são possíveis aos pés da Cruz de Nosso Senhor, e mil vezes o mundo não queira aceitar esta verdade, mil vezes será despedaçado por guerras fratricidas. Nem sequer a própria Igreja, digo, nem sequer os próprios homens pertencentes à Igreja, os católicos, independente do prestígio do qual gozem, poderão ser vitoriosos nesta seara: os católicos podem anunciar mil e um arranjos de convivência pacífica plural, podem se esforçar pessoalmente na consecução de semelhante objetivo, e pode ser até — concedamos — que em determinados momentos eles o devam realmente fazer: o resultado assim obtido será sempre uma obra inacabada, terá sempre algo de contingente, de frágil, de periclitante, não raro prestes a desmoronar ao mais leve sopro de realidade. É evidente, todos nós o sabemos, que alguma paz cotidiana e pragmática, alguma condescendência hic et nunc, precisa ser feita para possibilitar um mínimo de vida em sociedade: nós fazemos isso o tempo inteiro. Esse armistício temporário, no entanto, essa — eis a palavra verdadeira — indiferença tolerante não se pode revestir de características deontológicas absolutas. É dizer: não se trata de um fim último a ser buscado a todo custo. Não é assim que as coisas devem ser, embora seja possível que, em determinadas circunstâncias concretas, elas praticamente (só) possam ser assim. Na percepção clara da diferença entre uma coisa e outra reside a distinção entre a Fé e a apostasia.

Volto aos luteranos para explicar o que quero dizer. Deve ser bem difícil ser herege; a posição em que se encontram os filhos da Reforma luciferina do ex-monge alemão é sem dúvidas bastante desagradável. Em todos os aspectos o luteranismo é insustentável: nos (incontáveis) vícios pessoais do seu fundador, nas conseqüências históricas dramáticas de seus pressupostos (eis aí o esfacelamento do Protestantismo em milhares de seitas mutuamente incompreensíveis entre si), na incoerência de sua visão histórica do Cristianismo (afinal de contas, por onde andaria o Paráclito no milênio e meio compreendido entre a ascensão de Cristo e as 95 Teses?), na maleabilidade promíscua de sua doutrina contemporânea (por exemplo, há diversas denominações luteranas hoje favoráveis às práticas homossexuais — talvez até mais do que contrárias), et cetera. Ora, Deus criou os homens para Si; e parece evidente que a Babel protestante, assim como a primeira, não é capaz de conduzir os homens ao céu.

E alguns luteranos o percebem. Eles notam que falta alguma coisa no arremedo de religião que eles se acostumaram a chamar de “igrejas”; é a sede de Deus que clama mais forte nas profundezas de suas almas e que, incapaz de se saciar no lamaçal da heresia luterana, reclama águas mais puras. O encontro dos luteranos com o Papa na última quinta-feira, assim, é talvez a mais eloqüente manifestação da falência do luteranismo. São os filhos degredados, sujos, maltrapilhos e machucados, voltando sobre os passos do pai louco e prestando, timidamente, a vassalagem contra a qual o seu patriarca originalmente se revoltou.

Uma peregrinação saída «dalla regione di Lutero» em direção à «sede del Vescovo di Roma» carrega um simbolismo que não se pode ignorar: são os protestantes dando as costas ao heresiarca, deixando Lutero para trás, e caminhando de maneira esforçada, firme, resoluta — ultrapassando os acidentes geográficos e as fronteiras dos países — rumo ao Doce Cristo na Terra!

No limiar da Reforma, quando Lutero não havia ainda rompido definitivamente com a Igreja, ele foi convidado a ir a Roma para defender as suas doutrinas. Recusou-se. Posteriormente o Concílio de Trento convidou os protestantes para participarem das assembleias conciliares. É possível dizer que o convite lançado há quase cinco séculos ainda estava aberto e, finalmente, de algum modo o Heresiarca lhe deu na última semana uma resposta. Leão X não logrou trazer Lutero a Roma; Francisco fê-lo ser carregado pela sua estirpe degenerada em desesperada peregrinação. O monge bêbado provavelmente encararia muito a contragosto semelhante patacoada. Mas aos filhos não deve ser impedido entrar pela porta da Vida Eterna que o pai louco fechou atrás de si.

Enfim, perguntam-me se isso foi uma provocação. Eu digo que foi uma catarse. O luteranismo chegou a tornar-se tão insuportável que, na busca desesperada pelo Deus que Lutero expulsou das igrejas que roubou ao Papa, os luteranos aceitaram até mesmo carregar nas costas o monge rebelde de volta para o Vaticano.

Qual a verdadeira interpretação da Bíblia?

A questão da interpretação das Escrituras Sagradas é o calcanhar de Aquiles de todo o Protestantismo. Coloquemo-lo claramente: duas pessoas podem ser ambas muito santas e muito inteligentes e, ainda assim, chegarem a interpretações diametralmente opostas de um mesmo texto bíblico. Como resolver este problema?

A pior solução é sem dúvidas fazer circunlóquios do tipo “a Bíblia se interpreta pela própria Bíblia” ou “o critério da doutrina é a sua fundamentação bíblica”. Coisas assim absolutamente não resolvem o problema, que é apenas deslocado para um patamar anterior e se reduz, em última instância, ao subjetivismo mais radical: a interpretação correta passa a ser aquela que “me convence” melhor. É bem sabido que os adeptos desta tese fundamentam-se em um “é o Espírito Santo que convence” capaz, sem dúvidas, de fechar o sistema; mas é um fechamento autorreferencial e perfeitamente inútil para fins de apostolado, uma vez que o sujeito primeiro precisa se convencer para só depois entender que o seu convencimento é suficiente. Esta solução, enfim, flerta intimamente com aquela loucura que Chesterton menciona no início do seu Ortodoxia: é tão perfeita quanto um círculo fechado, limitado ao estreito horizonte de si próprio e incapaz de abrir-se à realidade circundante.

O mesmo se diga de qualquer tentativa de conferir a autoridade religiosa a um determinado grupo de pessoas — um grupo de pessoas santas, pessoas estudiosas, pessoas prudentes ou qualquer outra coisa do tipo. Sempre haverá outros grupos, formados por pessoas prudentes, estudiosas e santas; e o problema de decidir em qual dos grupos acreditar é, no limite, o mesmíssimo problema de decidir entre um líder religioso e outro, ambos alardeando deter a verdade do Cristianismo.

Uma solução talvez mais interessante seria apelar para a coletividade: a interpretação verdadeira é aquela geralmente aceita pelo conjunto de todos os crentes. O critério transfere-se assim do autoconvencimento para a presunção de razoabilidade, o que é sem dúvidas melhor: o erro individual é muito comum, mas o equívoco sincronizado de diversas pessoas, todas de boa fé, é consideravelmente mais raro. Talvez ainda mais: este consenso — construído e momentâneo — seria o máximo a que o homem, naturalmente, é capaz de chegar e, portanto, uma religião proporcionada à natureza humana não poderia desconhecer estes limites. Tratar-se-ia, assim, resumidamente, de uma aplicação do agir comunicativo habermasiano à esfera religiosa.

Duas são as dificuldades aqui. Em primeiro lugar é preciso questionar-se, seriamente, se este consenso é factualmente alcançável — e aqui se trata de uma crítica que, em princípio, pode-se fazer a toda a teoria da comunicação de Habermas. Não é preciso nem discutir se os pressupostos básicos de honestidade na comunicação estão ordinariamente presentes: mesmo que tal se conceda, é incontestável que o conjunto de coisas sobre as quais as pessoas no geral concordam é bastante restrito e não tem como ser de outra maneira. Afinal, se todo mundo sempre concordasse sobre tudo o próprio problema da interpretação dos textos sagrados não se colocaria.

Mas o pior é a segunda dificuldade: coletivos de pessoas são capazes de ao longo do tempo rever as suas convicções, e o consenso geral é sempre e por definição momentâneo. Isto não é um problema para o modelo habermasiano em geral — ele até prevê e pressupõe isso –, mas aplicá-lo a uma religião significaria esvaziá-la de todo conteúdo próprio. As sociedades podem se desenvolver até o ponto de se tornarem outras sociedades; mas um desenvolvimento de uma religião que chegasse ao ponto de transformá-la em uma outra religião é algo que, no mínimo, não é compatível com o conceito de Revelação Cristã.

Pegue-se o exemplo mais radical para o demonstrar: a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo é um dado objetivo, revelado por Deus e independente da crença ou descrença dos homens, ou é um consenso dos cristãos meramente útil para que eles se possam organizar em uma sociedade de crentes? Dito de outra maneira: é admissível que o conjunto dos crentes, um belo dia, decida que pode prescindir dessa complicação de união hipostática entre as naturezas humana e divina e que é suficiente encontrar em Cristo um sujeito iluminado que é modelo para todos nós? O número dos cristãos que se inclinariam por esta afirmativa é provavelmente bastante pequeno, desprezível até. Ora, se não existe consenso entre os cristãos sobre a possibilidade de sujeitar a verdade religiosa a este mesmo consenso, então é óbvio que o critério da correta interpretação dos textos sagrados do Cristianismo não pode ser o consensual.

Nem se pode dizer, registre-se, que certas coisas estariam sujeitas ao agir comunicativo (como, digamos, a forma do culto, a questão do batismo de crianças ou a guarda do Sábado ou do Domingo) e, outras (como a divindade de Cristo), não; porque neste caso permaneceria a dúvida sobre quais são, afinal, as coisas que dependem do consenso e quais as que não dependem, e o problema do qual se tentou fugir terminaria, cedo ou tarde, por retornar (e se um dia a generalidade dos crentes passasse a aceitar que a guarda do Domingo é revelada e não consensual?). Também este modelo de solução, em suma, deve ser rejeitado.

A melhor resposta ao problema, em conclusão, é aquela apresentada pelo Catolicismo: há uma instância superior, sim, capaz de dirimir a dúvida religiosa, e esta instância é a Igreja — mais especificamente até, tal instância consubstancia-se na figura do Romano Pontífice, um homem de carne e osso, vivo, que se pode interpelar pessoalmente e sobre o qual repousa a promessa de Cristo de que a sua Fé não haverá de desfalecer, por mais que Satanás reclame joeirá-lo como trigo (cf. Lc XXII, 31). Mas esta instância está vinculada a Ela mesma, e Pedro está sujeito a Pedro, e cada Papa tem os seus movimentos limitados ao espaço deixado pelos seus predecessores. A Igreja, que é o conjunto dos cristãos, estende os Seus alicerces por toda a História e abarca todos os séculos: existe n’Ela uma necessária harmonia diacrônica que simplesmente não cabe nos moldes de nenhuma das teorias que à doutrina clássica se pretendem alternativas.

Curiosamente, nenhuma das 95 teses de Lutero reivindicava a todo fiel — nem mesmo a um determinado grupo de fiéis, nem à sua totalidade — o poder de encontrar a correta interpretação da Bíblia, como infelizmente fizeram e fazem os seus sucessores. Nestes tempos de diálogo ecumênico, a questão sobre a interpretação das Escrituras Sagradas é primordial e precisa ser corajosamente abordada. Aceitarão os irmãos separados voltar às origens e dizer, parafraseando Lutero, que «expor a Igreja e o papa à zombaria dos [seus] inimigos» é, em última instância, «fazer os cristãos infelizes» (T. 90)? Cinco séculos de protestantismo já demonstraram de modo mais que suficiente o acerto dessa tese. Já passou da hora de o reconhecer.

O julgamento de um bom cristão

Um leitor do Deus lo Vult! fez a gentileza de entrar em contato com o blog, enviando o seguinte comentário:

De: Edeorande Faria

Boa tarde Jorge. Estou com 70 anos de idade e tive minha vida como católico, como tantos outros. Confesso para você que nunca entendí nada de religião, a não ser o quer os padres falavam durante as missas, pois elas eram sempre a mesma coisa.. Aprendi a falar amém a tudo que se dizia. Até que um dia um amigo me perguntou sobre a Inquisição Católica, onde aqueles que não seguiram o Catolicismo foram torturados e queimados na fogueira, considerados como hereges. Gostaria se póssível, e sem enrolação, que você me esclarecesse sobre esta questão. Lí sobre a vida de grandes ex-católicos, como Martinho Lutero, Giordano Bruno, John Huss, esses dois ultimos queimados na fogueira pela Igreja Católica, por ordem do Papa, e eu comecei a me perguntar: será que eles estavam errados?? Quase que a totalidade dos evangélicos do mundo todo, são todos egressos do Catolicismo, será que estes milhões, também estão equivocados, e você esta certo??? Lí sua crítica e julgamento (coisa que um bom cristão não deve fazer) sobre o Espiritismo. Tenho vários amigos espíritas que nunca criticaram e nem fazem qualquer tipo de julgamento em relação ao nosso próximo, como nos ensinou Jesus. Fazem um trabalho junto as comunidades carentes, e pregam o amor ao próximo, como Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensinou, e Deus como nosso Criador. Penso que ao invés de você se acomodar em suas críticas ao Espiritismo( mesmo porque você não irá conseguir convencer os espíritas com os seus argumentos religiosos, uma vez que os recursos desta Doutrina é Ciência, Filosofia e tem um aspecto religioso) Você ainda é muito jovem e aparentemente inteligente, para ficar atacando as crenças de quem quer que seja…..Ficarei imensamente feliz em receber sua resposta, dentro dos padrões da boa educação, que eu sei que você tem . Fique com Deus…..

Por partes:

1. Há – inclusive neste mesmo blog – extensa bibliografia a respeito da Inquisição Católica, mesmo em português: há este livro de história do Direito, este documentário da BBC, estas páginas apologetas do pe. Devivier, há (sobre a Idade Média mais amplamente) a obra de medievalistas como Régine Pernoud e Jacques Le Goff. Para quem se interessa sobre o tema, a quantidade de material atualmente disponível é, graças a Deus, farta e diversificada – já bastante afastada dos preconceitos iluministas anacrônicos que, infelizmente, ainda assombram o Ensino Médio e as redes virtuais anti-católicas do séc. XXI.

2. No mérito, e de maneira bastante superficial, sim, houve pessoas que foram torturadas e queimadas. A tortura era forma de interrogatório amplamente aceita à época e, a fogueira, modalidade de pena capital universalmente praticada. A Igreja não inventou nem a tortura e nem a fogueira. (Leia-se, à guisa de desabafo, este texto.) Condescendeu com algumas características do seu tempo, tão-somente. Foi a primeira a estabelecer limites – primeiro em seus próprios procedimentos, depois inspirando as legislações civis – à violência estatal. Construiu o Ocidente que, hoje, Lhe vira as costas e, atacando-A de maneira injusta e absurda, precipita-se de modo cada vez mais acelerado à barbárie e ao caos.

“Inquisição”, aliás, é termo bastante ambíguo no que concerne à variedade de fenômenos históricos diversos que soem ser agrupados sob o mesmo nome. Houve, por exemplo, a Inquisição Romana, as inquisições ibéricas, as inquisições protestantes e os suplícios por matéria religiosa iniciados pelos tribunais seculares – embora só seja responsável por uma parcela ínfima dessa taxa de mortalidade, é à Igreja Católica que costuma ser atribuída toda a carnificina…

Ainda, fazer juízo de valor a posteriori sobre fatos ocorridos em sociedades distintas das em que nos encontramos hoje é crasso equívoco metodológico que, em história, recebe o nome de anacronismo. Já é evitado, parece-me, na Academia; mas urge que o seja também nos debates de internet. Contribuamos com este nobre propósito.

3. Martinho Lutero, Giordano Bruno, John Hus (e outros) foram hereges notórios e agitadores sociais da pior estirpe. Pode-se até questionar se a pena capital não lhes fora uma punição excessivamente dura; não é contudo possível condenar, de maneira acrítica, a reprovação social que as atitudes de cada um deles eles receberam dos seus contemporâneos.

De Lutero (cujo antissemitismo tem até uma página na Wiki espanhola), por exemplo, vale lembrar que a sua vocação para fazer deboche religioso da Fé alheia é coisa da qual pouco se fala nos dias de hoje. De Giordano Bruno, frade dominicano, diga-se apenas que foi católico que (aparentemente…) se fez protestante e depois voltou a ser católico, esgotando a benevolência de cada país e confissão religiosa pelos quais passou, culminando este seu itinerário tumultuoso – que pouco se parece com o de um “mártir da ciência” – com uma morte na fogueira mais pelo seu hermetismo do que por conta de uma suposta pregação heliocêntrica. E, de John Hus, registre-se que a sua história está entrelaçada com a de Wyclif – este cuja tradução da Bíblia não goza de prestígio sequer entre os protestantes, e a cuja defesa Hus consagrou as suas energias mesmo à custa da indisposição com os poderosos do seu tempo. Mais uma vez: pode-se até questionar se tais medidas não foram exageradas. Mas não se pode chamar tais pessoas de «grandes ex-católicos», a menos que “grandes” aqui se refira às lendas posteriormente reconstruídas em torno a eles, e não à visão que deles tinham os seus contemporâneos – católicos ou não.

4. Não se afere a verdade ou falsidade de uma doutrina pelo critério quantitativo: se fosse assim, errado estaria Cristo, e não a multidão que, diante de Pilatos, gritou para que este libertasse Barrabás e crucificasse o Filho de Deus. Sim, os milhões de evangélicos do mundo estão equivocados, porque não podem estar corretos ao mesmo tempo eles e os milhões de católicos que crêem naquilo de que eles desdenham e repudiam aquilo em que eles põem fé. Ao menos um desses conjuntos de “milhões” há de necessariamente estar errado, por necessidade imperiosa da lógica – por que não podem ser os evangélicos? Há, porventura, de serem necessariamente os católicos os equivocados?

Diga-se, no entanto, que uma coisa é a doutrina protestante estar errada, e outra coisa completamente diferente é o protestante concreto ser um falsário mau-caráter. Do fato de alguém abraçar uma doutrina equivocada não segue que seja, ele próprio, uma pessoa “maligna” ou algo do tipo: pode perfeitamente estar no erro em maior ou menor grau de boa-fé, e este julgamento compete a Deus somente fazer, no dia do Juízo. Nós, católicos, podemos e devemos dizer que tal ou qual doutrina está errada; o grau de responsabilidade de cada qual na adesão a esta doutrina errada, contudo, é matéria reservada ao Justo Juiz n’Aquele Dia.

São, assim, dois erros opostos a evitar: lançar o infeliz ao inferno por conta do erro objetivo que ele comete, e negar-se a apontar o erro objetivo por não ser possível lançar ninguém no inferno. Cumpre distinguir uma coisa da outra. Não sei da sorte eterna de absolutamente ninguém (a não ser, claro, dos santos canonizados pela Igreja): do acerto ou equívoco de uma determinada doutrina (v.g. da que nega a Imaculada Conceição da SSma. Virgem), no entanto, tenho o dever de saber – e todo mundo o tem, na medida da sua capacidade.

5. O espiritismo é uma falsa doutrina que afasta as almas de Cristo, uma vez que afasta as pessoas da Igreja por Ele fundada e, portanto, impede-lhes de obter a Graça que Cristo mesmo distribui mediante os Sacramentos da Sua Igreja. Eles podem perfeitamente fazer bonitos trabalhos sociais junto a comunidades carentes, podem pregar a paz e a concórdia e podem fazer outro sem-número de obras naturalmente boas, que Deus decerto há de levar em conta no dia do Seu julgamento; contudo,  e infelizmente, afastam-se a si próprios e aos outros da fonte de toda a graça que é a Igreja, e isso Deus também haverá de ter em consideração.

Sobre isso valem todas as considerações feitas acima. Do fato do espiritismo ser uma doutrina errônea e terrivelmente errônea, inspirada por Satanás para perder as almas, não segue que cada espírita em concreto seja, ele próprio, um Anticristo endemoniado. É possível abraçar mesmo uma doutrina satânica como o espiritismo em boa fé; a responsabilidade subjetiva de cada um, mais uma vez, compete a Deus e a mais ninguém julgar.

Sim, a verdade ou a falsidade objetiva das doutrinas compete à Igreja (não a mim e nem a ninguém) julgar. Foi o próprio Cristo que dispôs assim. Ou aceitamos isso com todas as suas consequências, ou não somos cristãos. É simples assim.

6. Não é portanto (e por fim) verdade que os cristãos não podem julgar. Eles não só podem como devem fazê-lo, a fim de não serem enganados pelas falsas doutrinas que medram na história, pelo joio que o Inimigo semeia no campo do Senhor. Todo mundo cita aquele «Não julgueis» dos Evangelhos, mas se esquece de citar o complemento que se lhe segue na mesmíssima linha: «Não julgueis pela aparência, mas julgai conforme a justiça» (Jo VII, 24). Não é portanto verdade que estejamos proibidos de julgar; o que não podemos é julgar conforme as aparências, mas sim perscrutar as coisas como elas realmente são para julgar conforme a justiça.

Ninguém pode, portanto, julgar o espiritismo ou o protestantismo ou qualquer outra doutrina pela aparência de bondade que os seus seguidores porventura ostentem (digamos, pelo auxílio material prestado a comunidades carentes, ou pela leitura dedicada das Sagradas Escrituras); antes, é mister julgar segundo a justiça, i.e., segundo o que a coisa realmente é. E quem diz o que as coisas realmente são é a Igreja de Nosso Senhor, “coluna e sustentáculo da Verdade” (1Tm 3, 15), longe da qual não se pode pretender seguir a Jesus Cristo, como o Papa Francisco tem repetido incontáveis vezes.

Afaste-se, portanto, essa história de que um bom cristão “não pode julgar” – a qual aliás sempre inclui, em si mesma e contraditoriamente, um julgamento àqueles que se censuram por estarem “julgando”… – e precisa se abster de apreciar as doutrinas que o mundo lhe apresenta (e se chocam com Aquela que ele recebeu do próprio Cristo mediante os Apóstolos). Não dá para não julgar. Quando alguém diz (v.g.) que Cristo não é Deus, tal sentença entra em rota de colisão com a Fé Católica que afirma ser Ele Deus e Homem verdadeiro, e portanto repudiar como errônea – julgar falsa – esta afirmação é uma necessidade lógica. Mais uma vez, isso nada diz a respeito da boa ou má fé do mensageiro. Mas a mensagem, esta sim, precisa ser analisada e valorada: e isso, que todo bom cristão deve fazer – a fim de não ser enganado e nem deixar no erro os seus próximos -, outra coisa não é que julgar.

Lutero e o Papa alemão

Fui surpreendido, durante o final de semana, com a afirmação de que o Papa havia elogiado Lutero. Não dei muita atenção à notícia que, imediatamente, rechacei como estapafúrdia. Afinal de contas, Lutero fora um monge sem vocação, perturbado, entregue escancaradamente aos prazeres da carne e que (talvez numa tentativa de tranqüilizar a própria consciência) inventou uma teologia satânica onde pudesse salvar-se sem precisar abandonar os seus pecados – arrastando assim para o Inferno uma multidão incomensurável de almas.

Só depois eu li as matérias da mídia e (principalmente) as fontes primárias. Divertiu-me principalmente esta notícia, onde o jornalista não faz a menor idéia do que está falando. Misturando gafes históricas imperdoáveis (diz que «[o] papa Leão 9 expulsou Lutero da Igreja Católica Romana em 1521», quando Leão IX morreu em 1054 e o Papa que excomungou Lutero foi na verdade Leão X) com uma interpretação louca do discurso do Papa no convento de Lutero, o texto termina sem dizer nada com nada. Isto aqui, p. ex., é de um nonsense cômico:

Os protestantes gostariam que os católicos dissessem que Lutero não era um herege, mas um grande teólogo cristão. “Seria bom se eles pudessem declará-lo um doutor da Igreja”, disse à Reuters a bispa luterana de Erfurt, Ilse Junkermann.

É óbvio que os católicos não podem dizer que monge apóstata alemão é “um grande teólogo cristão” (!), e nem muitíssimo menos pode a Igreja declarar “doutor da Igreja” (!!) um heresiarca. A idéia é francamente tão absurda que, por si só, revela o vergonhoso desconhecimento da Igreja Católica do responsável pela matéria. E, ao final, ainda sou obrigado a ler que «[n]ão está claro se o Vaticano, que não gosta de oficialmente desfazer iniciativas de papas anteriores, pode ou deseja ir tão longe como a reabilitação de fato de Lutero» – cáspita, isto só não está claro para o retardado que escreveu esta reportagem! Pois qualquer pessoa normal e que conheça um mínimo de Doutrina Católica sabe que a Igreja não retrocede em questões doutrinárias e – mais que isso! – que Ela não pode retroceder, sob pena de perder a própria identidade. E, sim, isto está claro como o sol ao meio-dia para qualquer pessoa que não seja cega.

Depois da diversão, fui às fontes primárias. Está aqui o pronunciamento de Sua Santidade no Augustinerkloster de Erfurt – o convento onde Lutero viveu como monge agostiniano antes de romper com a Igreja. E descobri que o Papa “elogia” sim, Lutero, naquilo que ele é elogiável; para, imediatamente depois, criticá-lo acidamente no que ele precisa ser criticado.

O discurso do Papa é obra de um gênio. Ele está falando a luteranos e, portanto, precisa encarar a ingrata tarefa de dizer coisas pouco honrosas sobre o pai espiritual de seus ouvintes. O que faz o Papa? Ora, sabe-se que Lutero era uma mente doentia atormentada pelo pecado, que não confiava na graça de Deus e pôs na própria cabeça que era incapaz de deixar de pecar: então o Papa fala sobre a importância de nos preocuparmos a respeito do juízo de Deus em um mundo onde «a maioria das pessoas, mesmo cristãs, dá por suposto que Deus, em última análise, não se interessa dos nossos pecados e das nossas virtudes». Mas não deixa de criticar: esta luta perturbada de Lutero, «no fim de contas, era uma luta a propósito de Deus e com Deus».

O que o Papa faz? Ora, sabe-se que Lutero levou uma vida imoral e dissoluta, não obstante a sua doutrina possua elementos de verdade capaz de seduzir os incautos (como de fato tem seduzido nos últimos séculos); então o Papa fala que a espiritualidade de Lutero era cristocêntrica, mas que isso não é suficiente: «Mas isto pressupõe que Cristo seja o centro da nossa espiritualidade e que o amor por Ele, o viver juntamente com Ele, oriente a nossa vida». Coisa que todos sabem que Lutero não fez. Dizer que é necessário que o viver juntamente com Cristo – i.e., o viver em estado de Graça, o viver praticando a virtude e evitando o pecado – oriente a nossa vida… eu não consigo pensar em uma forma mais elegante de contrariar os seguidores do Sola Fide, aqueles cuja doutrina tem por princípio fundamental justamente que o que importa é no quê se crê, e não como se vive. Bento XVI só “elogia” Lutero para, imediatamente em seguida, demonstrar a falsidade do luteranismo.

E assim caminha o Papa, construindo com maestria a ponte entre ele e os luteranos ao aludir aos problemas do luteranismo sem bater (muito…) de frente com a figura de Lutero; permitindo-se até mesmo apontar os pontos problemáticos do protestantismo a partir de algum aspecto mais aceitável do monge alemão. Para, no final, pedir o óbvio: que os protestantes se convertam. E de um modo tão gentil que se torna quase impossível negar, digno de um diplomata experiente tratando de um assunto espinhoso: «E por isso Lhe pedimos a graça de aprender de novo [a] viver a fé, para assim nos podermos tornar um só».

É com este pedido que termina o discurso do Papa: pedindo a Deus para que católicos e protestantes possam se “tornar um só”. E como tal é possível? Obviamente não é possível condescender com a Fé legada pelos Apóstolos, com a Fé Católica que a Igreja guarda. Isto o próprio Papa disse com todas as letras, na celebração ecumênica feita pouco depois no mesmo convento de Erfurt:

Nas vésperas da vinda do Papa, falou-se diversas vezes de um dom ecuménico do hóspede que se esperava desta visita. Não é preciso especificar os dons mencionados em tal contexto. A propósito, quero dizer que isto constitui um equívoco político da fé e do ecumenismo. Quando um Chefe de Estado visita um país amigo, geralmente a sua vinda é antecedida por contactos das devidas instâncias que preparam a estipulação de um ou mesmo vários acordos entre os dois Estados: ponderando vantagens e desvantagens chega-se a um compromisso que, em última análise, aparece vantajoso para ambas as partes, de tal modo que depois o tratado pode ser assinado. Mas a fé dos cristãos não se baseia numa ponderação das nossas vantagens e desvantagens. Uma fé construída por nós próprios não tem valor. A fé não é algo que nós esquadrinhamos ou concordamos. É o fundamento sobre o qual vivemos. A unidade não cresce através da ponderação de vantagens e desvantagens, mas só graças a uma penetração cada vez mais profunda na fé mediante o pensamento e a vida.

E, se não é possível transigir com a Fé, então a unidade na Fé só é possível com a conversão dos transviados. Sim, que os filhos de Lutero possam abjurar os seus erros e receber de novo a Fé Católica, a Fé Verdadeira, a Fé sem a qual é impossível agradar a Deus. Que sejam profícuos os esforços ecumênicos de Sua Santidade! Que o filho pródigo caia em si e, cansando-se de comer a lavagem dos porcos, volte depressa à Casa Paterna – onde Deus o espera com festa.

Sacrificando as ovelhas

Ai, que grande lixo! “CNBB contra a nota”, diz O Dia Online. A nota em questão é aquela da Pastoral de Católicos na Política do Rio de Janeiro, que eu reproduzi aqui e que condena o PNDH-3 do governo petista. Segundo a matéria d’O Dia:

A nota diz que o plano é uma cartilha “de estilo radical-socialista”. Em janeiro, a CNBB condenou aspectos do programa, como a proposta de legalização do aborto. Mas, ao mesmo tempo, se dizia “desejosa de participar do diálogo nacional” sobre o PNDH.

E, sim, eu me lembro da declaração da CNBB sobre o tema que eu também reproduzi aqui. Pelo andar da carruagem, parece ser patente a divisão dentro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Graças a Deus.

O estilo “morde-e-sopra” certamente não me agrada e nem agrada a Nosso Senhor, que exigiu que a linguagem dos Seus discípulos fosse “sim, sim, não não”. No entanto, dá-me esperanças ver que existem pessoas dentro da CNBB preocupadas em soprar. Pelo menos isso! A situação atual está muito melhor do que já foi anteriormente, quando, da Conferência, só esperávamos receber facadas pelas costas e ofensas à Igreja de Nosso Senhor.

Aproveito o ensejo para agradecer publicamente aos membros da CNBB que são responsáveis pelas coisas decentes emanadas pela Conferência. São poucos, mas prestam um serviço inestimável. Que tenham coragem! São minoria, mas são fiéis, e a fidelidade a Deus é uma característica capaz de mover montanhas e possibilitar vitórias que, humanamente, seriam impossíveis. Que tenham coragem, e continuem! Que os lobos sejam desmascarados, e que a CNBB seja expurgada de toda influência demoníaca e, arrancada às garras de Satanás onde esteve por tanto tempo, possa ser recolocada a serviço de Nosso Senhor.

Voltando ao assunto: “Para Dom Dimas, bispo-auxiliar do Rio, o maior problema da nota é que ela ataca todo o PNDH e não apenas alguns pontos específicos”. Oras, em primeiro lugar, todo o PNDH, sim, está repleto de uma ideologia anti-cristã e, nos pontos onde há concordância entre o maldito Plano e a Doutrina Cristã, esta concordância é meramente acidental.

E, em segundo lugar, é de uma ingenuidade irresponsável procurar defender o cão raivoso porque ele tem “olhos bonitinhos”, ou tentar salvar a maçã envenenada por causa da sua cor lustrosa. É de uma ingenuidade irresponsável, repito – que, diga-se de passagem, a Igreja nunca adotou -, vir em defesa das heresias por causa das coisas corretas que elas ainda mantêm.

Imagino uma declaração deste tipo na época da Reforma Protestante. O Papa Leão X, na bula Exsurge, Domine, enumerou os erros de Martinho Lutero. Mas não enumerou os pontos em que ele acertava, e nem muito menos defendeu o heresiarca por causa dos pontos que o Luteranismo mantinha da Fé Católica. Ao contrário: proibiu Lutero de pregar, mesmo sabendo que o Luteranismo não era condenável “no todo”, e sim somente n’alguns pontos específicos – especificamente, os que foram condenadas pela referida bula.

Houvesse secretariados-gerais àquela época, viriam em socorro ao Heresiarca. Diriam que esta posição não era a da Conferência – caso houvesse Conferências. Insistiriam nos pontos positivos da Reforma. Desejariam participar do diálogo. E, enquanto dialogassem com o lobo, as ovelhas seriam dispersas.

Quem poupa o lobo sacrifica as ovelhas, conforme disse (salvo engano) Victor Hugo. Esta é uma lição que os excelentíssimos responsáveis pela CNBB já deveriam ter aprendido. E espero que a aprendam depressa, antes que seja tarde demais.

A imprensa e a internet

Há um “ditado” em informática que diz o seguinte: para fazer uma besteira (o termo não é bem esse, mas preciso torná-lo adequado ao blog), é suficiente uma pessoa. Agora, para fazer uma grande besteira, é preciso uma pessoa e um computador.

A brincadeira me veio à mente quando eu pensava na Reforma Protestante e nos desastrosos efeitos que ela provocou na Europa do século XVI. Eu pensava no papel determinante que a invenção da imprensa desempenhou na propagação das heresias de Martinho Lutero e, por conseguinte, nas proporções que teve a Reforma. E disse para mim mesmo, parafraseando o ditado acima: para se fazer um herege, basta um monge bêbado sem vocação. Para lançar a Alemanha inteira na heresia, no entanto, só com um monge bêbado sem vocação e uma máquina tipográfica.

Não que a invenção da imprensa tenha sido uma coisa ruim. Facilitou o acesso a inestimáveis tesouros culturais antigos, propiciou o aumento da produção intelectual, popularizou escritos aos quais, de outra maneira, dificilmente as pessoas teriam acesso. No entanto, isso não é “um bem em si mesmo”. Depende do que foi feito com os tesouros antigos, do tipo de produção intelectual que foi feita, de qual literatura foi popularizada.

No caso da imprensa (cujo primeiro trabalho foi, ironicamente, a Bíblia de Gutemberg), ela foi terrivelmente usada por Martinho Lutero para espalhar os seus escritos e, assim, angariar adeptos para as suas heresias. Posso cometer alguma injustiça por ignorância histórica, mas tenho a impressão de que, olhando para trás, a partir da Reforma Protestante, os maus frutos da invenção da imprensa são mais visíveis do que os seus bons frutos.

A internet hoje provoca uma revolução análoga àquela que a imprensa provocou outrora. E é possível fazer também paráfrases do ditado ao qual eu me referia no início do post. Uma das que vejo mais claramente é no que se refere à castidade. Para levar material pornográfico para um jovem, um canalha é suficiente; para massificar a pornografia entre a juventude, é preciso um canalha e a internet.

Precisamos dar um melhor uso à internet do que este. E é com muita alegria que eu vejo o potencial positivo que a internet tem, nos sites de defesa da Fé Católica, nas listas de discussão por email, na possibilidade de contato entre pessoas que, de outra maneira, provavelmente jamais se conheceriam. É importante trabalhar e explorar essa potencialidade da rede mundial de computadores. Para, quem sabe, fazermos uma paráfrase enfim positiva do ditado da informática: uma que revele a importância da internet na manutenção e na promoção da Fé Católica durante a terrível crise do final do segundo milênio.