OFF – All the lonely people

Registre-se para perpétua memória: eu estive no show de Paul McCartney do Morumbi. Em um impulso de prodigalidade, mandei-me às pressas para São Paulo. Fui. Vi. Voltei. Escrevo já em Recife, com apenas ligeiras horas de sono durante o vôo, mas ainda com as músicas da noite nos ouvidos. Valeu cada centavo, cada hora de sono perdida, cada músculo do corpo dolorido.

Entrei no Morumbi (pista) quase às nove e meia, pouco antes do show começar. Ao meu redor, todas as arquibancadas lotadas. À minha frente, todo o campo do estádio tomado de gente. Arrisquei-me ir até quase o meio do campo; mais para frente, estava complicado de passar. Os telões e o (excelente) sistema de som encarregaram-se de garantir a qualidade do show. A enorme lua cheia, perfeitamente redonda, enfeitava a noite dando-lhe um clima festivo. E eu, no meio do Morumbi junto com mais algumas dezenas de milhares de pessoas, esperávamos o Paul entrar.

Ele não nos deixou esperar quase nada: a pontualidade inglesa venceu o tradicional atraso brasileiro. Sorridente, blazer azul, sotaque britânico: durante as quase três horas do show, Paul McCartney teve o Morumbi inteiro nas mãos.

Porque um Beatle é um Beatle é um Beatle: é impressionante. Bastava a introdução de uma música conhecida para fazer o estádio reverberar. Qualquer sorriso, aceno ou piscadela do Paul arrancava aplausos da enorme platéia. Bastava-lhe um gesto para um lado do estádio e, de repente, toda a arquibancada daquele lado levantava-se em braços erguidos. Bastava-lhe cantar um “yeah, yeah” no microfone que, no instante seguinte, todo o Morumbi cantava com ele.

Cantar “Let it Be” com o isqueiro aceso no alto; admirar os fogos de artifício sincronizados com a música; repetir incontáveis vezes o “na-na-na-nanana-ná” de “Hey Jude”; dançar e pular quando, após ensaiar uma despedida, Paul voltou com uma grande bandeira do Brasil e tocou “Day Tripper”; cantar “All my Loving” a plenos pulmões! A noite foi espetacular. Difícil até de descrever, para quem não estava. A lua subia rápido no céu, mais rápido do que o costume. As horas passavam depressa, e queríamos que não passassem. O espetáculo foi primoroso.

O homem tem quase setenta anos e, mesmo assim, fez um show memorável. Não interrompeu o espetáculo em nenhum momento; apenas duas rápidas tradicionais saídas, para voltar em seguida levando ao delírio a multidão que gritava o seu nome. Corria pelo palco, arriscava dançar, passava do violão para o piano e, deste, para o bandolim e o violão novamente. Fez todo mundo cantar e dançar a noite inteira! E eu, lonely person no meio da multidão, concedia-me o inefável prazer de cantar alta e desafinadamente as músicas das quais gosto, com o meu péssimo inglês, dançando do meu jeito desengonçado. Viera de Recife, não podia perder esta chance. Thank you, Paul!

O falso padre do Morumbi e Teologia Sacramental

Certas notícias nos deixam perplexos. Foi o caso de um “falso padre”, membro da Igreja Católica Apostólica Brasileira Missionária [p.s.: ver “este formal comunicado”], que durante dois anos atuou em uma das maiores paróquias da região do Morumbi, a de São Pedro e São Paulo, sem que ninguém parecesse se preocupar com isso.

Durante este tempo, o pe. José Francisco de Lima celebrou missas, batizados, confissões e casamentos. A primeira pergunta feita pelos fiéis quando souberem que ele não era padre católico foi a mais natural possível: e quanto à validade dos sacramentos por ele ministrados ao longo destes dois anos?

Em uma matéria veiculada hoje na Folha de São Paulo (aqui, para assinantes), foram feitas as seguintes declarações:

Validade dos sacramentos

“Todos que foram assistidos pelo ministério do falso padre […] no tocante aos sacramentos do batismo, do matrimônio e da própria penitência, podem ficar tranquilos quanto à validade porque nesse caso a boa-fé dos fiéis é contemplada e a igreja, sendo mãe solicita e benigna, supre a eficácia sacramental”, diz a nota [da Diocese de Campo Limpo].

A posição é contrária à defendida pelo padre Geraldo Martins Dias, da área de comunicação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Em entrevista à Folha na semana passada, disse que os sacramentos ministrados por falsos padres não têm validade.

Para o especialista em direito canônico e professor da PUC Edson Chagas Pacondes, a igreja tem o direito de suprir os sacramentos pois foi enganada.

Ele explica que não há problemas no batismo, que por regra é ministrado por um padre, mas pode também ser dado por outra pessoa em situações excepcionais. Já no matrimônio, os ministros são os próprios noivos, e o padre é uma testemunha qualificada.

O perdão e a eucaristia é que não poderiam ser ministrados por alguém que não tenha recebido o sacramento da ordem. Teoricamente, não seriam válidos, mas a igreja tem o poder de validá-los, afirma Pacondes.

Em resumo, um verdadeiro festival de informações desencontradas. Como cada Sacramento é um Sacramento, separemos as coisas para melhor as entender.

1. Batismo

O ministro do Batismo é qualquer pessoa – até mesmo um herege ou um ateu – que derrame água na cabeça do batizando e pronuncie corretamente a fórmula “eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. Portanto, os batismos ministrados pelo pe. José Francisco são, em princípio, válidos sem maiores problemas.

2. Eucaristia

Para a Eucaristia, exige-se um sacerdote ordenado. Não sei se o pe. José Francisco é validamente ordenado; caso ele seja, as missas por ele celebradas foram válidas porém ilícitas e, caso não seja, foram inválidas. No entanto, os fiéis que, em boa fé, assistiram a missa dominical celebrada pelo padre da Igreja Brasileira Missionária não cometeram pecado, mesmo que a missa tenha sido inválida, uma vez que não tinham como adivinhar que o sacerdote que estava naquela paróquia era um impostor. Quanto a isso, também não há maiores problemas.

3. Confissão

Aqui a coisa começa a ficar complicada. Para a validade do Sacramento da Confissão, exige-se não apenas a potestade de perdoar pecados (que possuem apenas os ministros ordenados – os leigos, não) como também a jurisdição para fazê-lo.

Se o pe. José Francisco é sacerdote validamente ordenado (coisa que não sei), as confissões feitas a ele seriam inválidas por ausência de jurisdição. Entretanto, existe um princípio do Direito Canônico de suplência da Igreja – Supplet Ecclesia – que diz que, no erro comum de fato ou de direito, a Igreja supre a falta de jurisdição do sacerdote, tornando válido o Sacramento que, sem isso, não o seria, em benefício do penitente que não tem culpa da confusão toda. Em poucas palavras: em sendo, o falso padre, sacerdote validamente ordenado, e em não sabendo os fiéis que ele não possuía jurisdição, o Sacramento é válido pela aplicação do princípio acima mencionado. Peca o sacerdote por estar fazendo o que não deve, mas os fiéis recebem a graça sacramental.

Se o pe. José Francisco não for sacerdote ordenado, não existe suplência da Igreja e, portanto, as Confissões são inválidas mesmo. Em atenção à ignorância e à boa vontade do fiel, é possível que Deus conceda a Graça do perdão extra-sacramentalmente em casos assim; em todo o caso, sem dúvidas não cometem “pecados adicionais” quem se confessou com o falso padre e, por isso, julgou de boa fé estar confessado e em estado de Graça. Se eu fosse perguntado, recomendaria repetir a(s) confissão(ões) com um sacerdote verdadeiro assim que seja possível.

4. Matrimônio

Para católicos, a validade do Matrimônio depende da forma canônica, ou seja, da presença de uma testemunha qualificada da Igreja. O falso padre não é uma testemunha qualificada e, por isso, os Matrimônios por ele assistidos são todos inválidos, (salvo gravíssimo engano) aqui não cabendo suplência.

Aqui não importa se o falso padre é sacerdote ordenado ou não; não sendo católico, não é testemunha qualificada e, portanto, não pode receber o consentimento dos noivos.

Não pecam os católicos que, de boa fé, casaram-se na presença deste padre, mas a situação precisa ser regularizada. A sanatio in radice é o ato jurídico que, no meu entender, cabe em casos assim. Salvo melhor juízo, é possível até mesmo que o bispo faça uma sanatio geral, para todos os casos (já que são todos iguais) em que há a deficiência da forma canônica por causa da irresponsabilidade e da total falta de respeito do pe. José Francisco. É possível até mesmo que o bispo já a tenha feito, sendo talvez oportuna uma consulta à Diocese para confirmar isto.

Por fim, não poderia deixar de protestar (a) contra a irresponsabilidade da paróquia, que deixou por dois anos um sujeito atender espiritualmente aos fiéis sem ser padre católico; (b) contra o próprio padre, que não teve a menor consideração com a Fé alheia e deliberadamente fingiu ser uma coisa que não era, pouco se importando com a Fé Católica ou os cânones do Direito Canônico da Igreja; e (c) contra as reportagens, que divulgaram informações malucas e desencontradas sobre o assunto, provavelmente lançando os fiéis em mais confusão do que eles já estavam com semelhantes notícias. Rezemos para que casos assim não tornem a se repetir.