O Cân. 838 antes e depois do Magnum Principium

O motu proprio do Papa Francisco sobre Liturgia — Magnum Principium, até o presente momento apenas com versões em italiano e em latim no site da Santa Sé — é uma incógnita. Aquilo a que ele se presta é, basicamente, modificar o Cân. 838 do Código de Direito Canônico para (supostamente) descentralizar o processo de tradução dos livros litúrgicos para as línguas dos diversos países, conferindo maior autonomia às Conferências Episcopais locais. A tabela abaixo compara redação atual do Código, ainda vigente até o final de setembro, com as alterações propostas pelo Motu Proprio:

Versão Atual (PT) Versão Atual (IT) Nova Versão
Cân. 838 — § 1. O ordenamento da sagrada liturgia depende unicamente da autoridade da Igreja, a qual se encontra na Sé Apostólica e, segundo as normas do direito, no Bispo diocesano. Can. 838 – §1. Regolare la sacra liturgia dipende unicamente dall’autorità della Chiesa: ciò compete propriamente alla Sede Apostolica e, a norma del diritto, al Vescovo diocesano. Can. 838 – § 1. Regolare la sacra liturgia dipende unicamente dall’autorità della Chiesa: ciò compete propriamente alla Sede Apostolica e, a norma del diritto, al Vescovo diocesano.
§ 2. Pertence à Sé Apostólica ordenar a liturgia sagrada da Igreja universal, editar os livros litúrgicos e rever as versões dos mesmos nas línguas vernáculas, e ainda vigiar para que em toda a parte se observem fielmente as normas litúrgicas. §2. È di competenza della Sede Apostolica ordinare la sacra liturgia della Chiesa universale, pubblicare i libri liturgici e autorizzarne le versioni nelle lingue correnti, nonché vigilare perché le norme liturgiche siano osservate fedelmente ovunque. § 2. È di competenza della Sede Apostolica ordinare la sacra liturgia della Chiesa universale, pubblicare i libri liturgici, rivedere gli adattamenti approvati a norma del diritto dalla Conferenza Episcopale, nonché vigilare perché le norme liturgiche siano osservate ovunque fedelmente.
§ 3. Compete às Conferências episcopais preparar as versões dos livros litúrgicos nas línguas vernáculas, convenientemente adaptadas dentro dos limites fixados nos próprios livros litúrgicos, e editá-las, depois da revisão prévia da Santa Sé. §3. Spetta alle Conferenze Episcopali preparare le versioni dei libri liturgici nelle lingue correnti, dopo averle adattate convenientemente entro i limiti definiti negli stessi libri liturgici, e pubblicarle, previa autorizzazione della Santa Sede. § 3. Spetta alle Conferenze Episcopali preparare fedelmente le versioni dei libri liturgici nelle lingue correnti, adattate convenientemente entro i limiti definiti, approvarle e pubblicare i libri liturgici, per le regioni di loro pertinenza, dopo la conferma della Sede Apostolica.
§ 4. Ao Bispo diocesano, na Igreja que lhe foi confiada, pertence, dentro dos limites da sua competência, dar normas em matéria litúrgica, que todos estão obrigados a observar. §4. Al Vescovo diocesano nella Chiesa a lui affidata spetta, entro i limiti della sua competenza, dare norme in materia liturgica, alle quali tutti sono tenuti. § 4. Al Vescovo diocesano nella Chiesa a lui affidata spetta, entro i limiti della sua competenza, dare norme in materia liturgica, alle quali tutti sono tenuti.

 

As alterações são mínimas, e estão grafadas em negrito acima.

Os parágrafos primeiro e quarto permanecem iguais. No parágrafo segundo, a diferença entre os verbos «autorizzarne» (redação antiga) e «rivedere» (nova redação) não importa diminuição das competências da Santa Sé — como se antes ela precisasse autorizar as mudanças e, agora, passasse-as simplesmente a rever. Primeiro porque o verbo latino da versão nova é idêntico ao da redação atual — «(…) eorumque versiones in linguas vernaculas recognoscere (…)» — e, segundo, porque (e sobre isso há uma nota explicativa no Motu Proprio) o Pontifício Conselho para a interpretação dos textos canônicos e legislativos já esclareceu, em 2006, que a recognitio «não é uma aprovação genérica e sumária nem muito menos uma simples “autorização”, tratando-se, ao contrário, de um exame ou de uma revisão atenta e detalhada». Tanto é assim que outras traduções (como a portuguesa) já grafam, na versão atual, «rever as versões» em vez de «autorizar as versões».

Assim, a meu ver, a diferença é que antes a Santa Sé revia as próprias traduções feitas pelas Conferências (le versioni nelle lingue correnti) e, agora, passa a precisar rever somente as adaptações (gli adattamenti) eventualmente aprovadas pelas Conferências Episcopais.

O que muda no parágrafo terceiro — afora a (oportuna) ênfase na necessidade de que as traduções sejam feitas fielmente — é que as Conferências passam a poder «aprovar» as traduções dos livros litúrgicos, após a “confirmação” da Santa Sé («post confirmationem Apostolicae Sedis»). Ou seja, para a publicação (e consequente entrada em vigor) dos livros litúrgicos traduzidos, antes, exigia-se a recognitio da Santa Sé, hoje, é preciso a confirmatio da Sé Apostólica.

As diferenças são, assim, entre as traduções e entre as adaptações, e entre a revisão e a confirmação:

Antes do MP Após o MP
Traduções para o vernáculo Exigiam revisão da Santa Sé Exigem confirmação da Santa Sé
Adaptações litúrgicas Não eram mencionadas no Código Exigem revisão da Santa Sé
Revisão Era devida para as traduções dos livros litúrgicos É devida para as adaptações litúrgicas
Confirmação Não era mencionada no Código É devida para as traduções dos livros litúrgicos

 

Na teoria a diferença entre essas coisas está bem clara, como mostrou o Mons. Arthur Roche, o secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos que apresentou um comentário sobre o motu proprio. A recognitio é uma atividade ativa e criteriosa, em cujo seio é permitido à Santa Sé inclusive modificar o trabalho das Conferências Episcopais; a confirmatio é mera ratificação do trabalho levado a cabo pelos bispos, que «pressupõe uma avaliação positiva da fidelidade e da congruência dos textos elaborados em relação à Edição Típica» dos livros litúrgicos. Na prática, contudo, podem surgir dificuldades.

Imagine-se a hipótese de a tradução de uma determinada Conferência não guardar congruência ou fidelidade para com a Editio Typica — ou seja, faltar um pressuposto da confirmatio como exigido pelo Magnum Principium. Neste caso, não podendo mais a Santa Sé intervir diretamente na tradução (hipótese só admitida para a recognitio), o motu proprio parece tornar todo o processo mais lento e burocrático: o texto deveria então voltar para a Conferência, que deveria proceder por conta própria às correções devidas, para depois enviá-lo novamente a Roma e aguardar a chancela dicasterial — que pode inclusive não vir mais uma vez, se não houverem sido sanados os vícios que levaram a Sé Apostólica a negar a confirmação da primeira vez. Não se vislumbra, destarte, o benefício que a mudança do Cân. 838 pode trazer.

Sobre as adaptações litúrgicas — inclusive profundiores aptationes, como consta no documento… –, tendo em conta os horrores dos abusos litúrgicos com os quais os fiéis católicos foram desgraçadamente forçados a conviver nas últimas décadas, não é possível sequer imaginar que bem aos fiéis possa delas advir. No entanto, como o procedimento para a aprovação delas permanece mais rigoroso (sendo inclusive, s.m.j., o mesmo já em vigor há mais de duas décadas por força da Varietatis Legitimae), parece não haver nenhuma mudança nesta matéria por conta do Magnum Principium.

Canonização sem martírio nem heroísmo: os altares ficam mais próximos?

Com o motu proprio Maiorem hac dilectionem, publicado no último dia 11 de julho, o Papa Francisco estabeleceu um novo critério para a canonização dos santos: a oferta da vida (vitae oblatio), que agora passa a ser uma nova causa para o processo de beatificação e canonização. Até então o caminho para os altares era aberto pelas hipóteses do martírio (super martyrio) e do heroísmo das virtudes (super heroicitatem virtutum).

Na prática, o que acontece é que a Congregação para a Causa dos Santos vai passar a admitir processos de canonização baseados na oferta da própria vida, ainda que a morte não se dê in odium Fidei (hipótese tradicional de martírio) e ainda que a pessoa não tenha levado uma vida extraordinária na prática das virtudes cristãs (hipótese tradicional de heroísmo das virtudes). Ou seja, será possível postular a canonização de uma pessoa que, ainda não tendo exercido durante a vida as virtudes em grau heróico, ofereça propter caritatem a própria vida e aceite uma morte prematura mesmo em situações distintas do martírio propriamente dito.

As condições, segundo o documento (Art. 2), são as seguintes:

a) oferta livre e voluntária da vida e aceitação heroica propter caritatem de uma morte certa e a curto prazo;
b) nexo entre a oferta da vida e a morte prematura;
c) exercício, pelo menos em grau ordinário, das virtudes cristãs antes da oferta da vida e, depois, até à morte;
d) existência da fama de santidade e de sinais, pelo menos depois da morte;
e) necessidade do milagre para a beatificação, ocorrido depois da morte do Servo de Deus e por sua intercessão.

A ideia (ventilada, por exemplo, aqui) de que o Papa Francisco esteja querendo canonizar cristãos não-católicos não se sustenta. Se ele quisesse fazê-lo, seria muito mais fácil utilizar-se da hipótese (desde sempre vigente!) do martírio, uma vez que não-católicos são, ainda hoje, perseguidos e mortos mundo afora por conta de sua fé. A perseguição movida contra cristãos, por exemplo, pelos muçulmanos, naturalmente não conhece barreiras denominacionais — para os sarracenos, um herege é tão infiel quanto um católico, e um e outro são igualmente assassinados por não aceitarem se prostrar diante do Allah de Maomé.

Ora, todos sabemos «que aqueles que sofrem de ignorância da verdadeira religião, se aquela é invencível, não são eles ante os olhos do Senhor réus por isso de culpa alguma» (Pio IX, Singulari Quadam, 1854, Denzinger, 1647, apud Montfort) e, a princípio, uma pessoa que prefere morrer a negar suas convicções transmite um atestado bastante credível da própria boa-fé (conquanto matar por aquilo em que se acredita, e eventualmente morrer no processo — caso, por exemplo, dos fautores de todas as revoluções do mundo –, seja coisa banal e bastante condizente com os instintos desordenados humanos, naturalmente não é disso que se trata quando, por exemplo, cristãos coptas morrem em uma Igreja explodida por terroristas islâmicos). Aqui a virtude (mesmo que meramente humana) é inegável e, em muitos aspectos, verdadeiramente admirável.

Se o objetivo fosse canonizar não-católicos, então, não seria necessário alterar os critérios vigentes de canonização. Seria perfeitamente possível lançar mão dos mártires não-católicos que os muçulmanos, inadvertidamente, costumam mandar para o Paraíso.

No entanto, elevar aos altares essas pessoas não é possível. Primeiro porque fora da Igreja nenhuma salvação é certa, nem mesmo a do martírio: o Concílio de Florença atesta que fora da comunhão da Igreja não se pode salvar nem mesmo vertendo o sangue em nome de Cristo, e diante de uma sentença assim peremptória não é possível abrir brecha para nenhuma espécie de irenismo. No mesmo sentido, embora de maneira mais comedida, o Papa Pio IX ensina a mesma coisa: é um erro esperar bem da salvação dos que vivem fora da verdadeira Igreja de Nosso Senhor (Syllabus, erro 17).

Em segundo (e mais importante) lugar porque declarar alguém santo — “santo de altar” — não é meramente ter fundada esperança de que o sujeito se encontra na Bem-Aventurança Eterna, não é apenas encontrar na vida da pessoa aspectos admiráveis: é mais que isso. Canonizar é insculpir uma vida humana no frontispício da Igreja de Cristo, para louvor público de Deus e edificação dos fiéis. É abrir uns rasgos na Eternidade e trazer para as feridas da Igreja Militante uns lampejos da glória da Igreja Triunfante. Qualquer um pode salvar-se mediante um ato de contrição sincero in articulo mortis (e nós esperamos que sejam muitos os que ingressam nas Moradas Eternas por esta via!), mas não é disso que se trata quando estamos falando em eternizar histórias humanas nos altares imorredouros da indefectível Igreja de Nosso Senhor.

A virtude é virtude onde quer que se encontre — e isso não foi jamais negado –, mas a canonização não é um mero atestado de que alguém foi “uma pessoa boa”. Sem dúvidas é justo, em princípio, reconhecer que há um grande valor (talvez até mesmo — permita-o Deus! — sobrenatural) nestas mortes provocadas não por um ódio específico às heresias, mas sim pela imagem de Cristo que, nelas, conquanto deformada, ainda bruxuleia. Isso, no entanto, não autoriza jamais cogitar de apresentar um herege como modelo de santidade à imitação dos fiéis católicos. Evidentemente não é possível ornamentar a face visível da Igreja (Seu culto público) com almas que em vida A rejeitaram externamente — ainda que possam, na glória, fazer enfim parte d’Ela. São duas coisas completamente diferentes.

E se não é possível canonizar indistintamente os que são mortos por ódio a Deus, tampouco se pode conceder altares sem mais critérios aos que entregam a vida por amor ao próximo. Inclusive parece até mais fácil encontrar não-católicos martirizados do que não-católicos dispostos a realizar a oferta da própria vida propter caritatem. A situação atual não é, portanto, mais laxa do que a anterior. E se não era anteriormente possível canonizar entre os não-católicos nem mesmo as almas simples que derramaram o próprio sangue por causa de Nosso Senhor, pela exata mesma razão não é possível, agora, canonizar aquelas que, fora da Igreja, abrem mão de sua vida por amor ao próximo. A mera idéia não faz nem sentido.

O que muda então com o documento? O Padre Z. arriscou alguns comentários, e lembrou alguns santos que facilmente se encaixariam nesta hipótese de vitae oblatio — como S. Maximiliano Kolbe, que se ofereceu em lugar de um prisioneiro em um campo nazista, ou Santa Gianna Beretta Molla, que mesmo diagnosticada com um câncer de útero manteve a gravidez até que sua filha nascesse. São exemplos que revelam uma coisa que convém não esquecer: abrir mão da própria vida em favor de outrem já é uma atitude que apresenta rasgos de heroísmo! Não ficou mais fácil ser canonizado. Os altares não são para os medianos.

O Papa Francisco não está tornando mais fácil chegar ao Céu (afinal de contas, quem em sã consciência diria que é fácil morrer por alguém?): os altares continuam tão altos quanto sempre estiveram. Não é possível ao homem elevar-se aos altares: o que ele pode — e deve! — fazer é se deixar ser elevado até eles por Deus. Porque pode até haver canonização sem milagre, sem martírio, mesmo sem virtudes extraordinárias: o que não pode haver, jamais, é canonização sem santidade. Esta é a que não pode nunca faltar. Esta é a que somente Deus pode conceder.

Reforma do processo de nulidade matrimonial I – O que é nulidade?

Foram dois os motu proprios recentemente publicados pelo Papa Francisco “sobre a reforma do processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio”: Mitis et misericors Iesus e Mitis Iudex Dominus Iesus. Os dois têm a mesma data – 15 de agosto de 2015 – e o mesmo objeto – as mudanças no processo de nulidade matrimonial. São dois porque o primeiro deles altera os cânones do Código das Igrejas Orientais e, o segundo, os do Codex Iuris Canonici vigente na Igreja latina. Um só, portanto, é o propósito da dupla publicação, havendo dois documentos porque duplo é o regime jurídico da Igreja Católica: oriental e ocidental.

Os documentos se propõem a facilitar o processo pelo qual se obtém a declaração de nulidade matrimonial. Atenção que as palavras são aqui importantes: processo, i.e., meio, procedimento, o que significa que não houve nenhuma modificação substantiva no tema, nenhuma (aliás impossível) alteração doutrinária, nenhuma mudança de posição da Igreja no que se refere ao assunto; declaração, i.e., um documento de natureza — como o próprio nome diz — meramente declaratória (e não constitutiva), que se limita a fazer uma afirmação a respeito da realidade sem a alterar de nenhuma maneira; e nulidade, e não anulação, ou seja, uma qualidade já desde o início presente no Matrimônio tentado, e não uma que se lhe confere ao fim do processo canônico.

Relembrando as aulas de teologia sacramental: todo Sacramento, para ser válido — i.e., para existir — precisa de três coisas: forma, matéria e ministro. Não é qualquer forma, senão apenas a forma adequada; nem qualquer matéria, mas somente a matéria válida; nem tampouco qualquer ministro, senão só o ministro capaz. Faltando uma dessas três coisas, então o Sacramento, por mais que exteriormente pareça, não é Sacramento de verdade.

O exemplo da Eucaristia é talvez o mais claro e ajude a enxergar o que se está querendo dizer aqui: todo mundo sabe que, para a Eucaristia ser válida — ou seja, para o pão e o vinho realmente se transformarem no Corpo e no Sangue de Cristo — é preciso que as palavras da Consagração sejam proferidas por um sacerdote validamente ordenado. Ou seja: se um sujeito que não é padre chegar numa igreja, paramentar-se corretamente, subir ao altar, proferir todas as orações e realizar todos os gestos previstos no Missal, pegar a hóstia e disser “isto é o Meu corpo”, o cálice e afirmar “este é o cálice do Meu sangue”, elevá-los, enfim, fizer tudo de modo exatamente igual a como um padre de verdade faria, ninguém que esteja observando “de fora” vai perceber, mas o pão vai continuar sendo pão e, o vinho, vinho. Não vai ocorrer a transubstanciação. Não vai ter havido o Sacramento.

O que se quer dizer é isto: todo sacramento é um sinal sensível de uma graça invisível, mas nem todo sinal sensível é um sacramento! A Hóstia, ainda que seja do tipo com o qual estamos acostumados — o disco branco, de espessura fina, geralmente ornado com símbolos cristãos –, ainda que esteja sobre o altar, ainda que seja elevada por um homem paramentado como sacerdote católico, ainda assim, se o homem não for um sacerdote validamente ordenado então ela vai continuar sendo apenas pão. Não é porque a coisa parece um sacramento que ela é um sacramento de verdade. E isto, que é fácil ver no Sacramento da Eucaristia, vale para todo Sacramento da Igreja Católica.

Até para o Matrimônio, e aqui chegamos ao ponto. Assim como é possível que uma hóstia não seja o Corpo de Cristo mesmo que, externamente, ela pareça ter sido consagrada, da mesma maneira é possível que um casal vivendo maritalmente não forme um Matrimônio Católico ainda que, externamente, os dois pareçam ter se casado. Da mesma forma como é possível que a Hóstia não tenha sido validamente consagrada, é possível que o Matrimônio não tenha sido validamente contraído — e ao Matrimônio inválido nós chamamos nulo. E ao procedimento que a Igreja emprega para investigar se, de fato, aquela situação que parece um casamento é realmente um Matrimônio Sacramental chama-se comumente de processo de nulidade, e foi isto que o Papa Francisco alterou recentemente.

Há somente algumas poucas razões pelas quais se pode imaginar que a Eucaristia tenha sido nula: ou o padre era um falso sacerdote, ou a hóstia era feita de alguma coisa outra que trigo (digamos, mandioca), ou o sacerdote queria não consagrar no momento em que proferiu as palavras da Consagração; além dessas hipóteses é difícil imaginar outras muito diferentes. O Matrimônio, por ser um contrato jurídico, é um pouco mais complicado. A partir do cânon 1073 do Código de Direito Canônico encontra-se uma longa lista de razões pelas quais um Matrimônio pode ser invalidamente contraído — i.e., não existir. À guisa de exemplificação:

  • não podem contrair matrimônio válido os homens antes dos dezesseis anos completos nem a mulher antes dos catorze também completos (Cân.1083);
  • os que tenham recebido ordens sacras também não conseguem casar (Cân. 1087);
  • não podem casar os que possuem parentesco em linha reta, em qualquer grau (Cân. 1092);
  • aqueles que “por causas de natureza psíquica não podem assumir as obrigações essenciais do matrimônio” também são incapazes de o contrair (Cân. 1095);
  • quem é enganado acerca de “qualidade da outra parte que, por sua natureza, possa perturbar gravemente o consórcio da vida conjugal” também não casa validamente (Cân. 1098);
  • é também “inválido o matrimônio celebrado por violência ou por medo grave (…) para se libertar do qual alguém se veja obrigado a contrair matrimônio” (Cân. 1103);
  • se o sacerdote que vai assistir o Matrimônio não é o pároco, então precisa de delegação, sob pena de o matrimônio não ser validamente contraído (Cân. 1108);
  • etc.

Qualquer uma dessas situações, presentes no momento em que se celebrava o Matrimônio, são capazes de fazer com que ele tenha sido inválido; há que se verificar, por exemplo, se o impedimento estava presente, se podia ser dispensado, se de fato o foi. É para responder a estas perguntas que existe o procedimento de investigação de nulidade matrimonial dentro da Igreja Católica. Ele não tem nada a ver com mudar a realidade do casamento — se o casamento foi válido então ele permanecerá válido para sempre e, se foi inválido, também nunca será um matrimônio até que os defeitos sejam sanados –, mas sim com conhecer a verdadeira natureza de uma união exteriormente parecida com um casamento católico (como, insista-se na comparação que parece elucidativa, uma hóstia não-consagrada é exteriormente parecida — indistinguível até — de uma que seja o Corpo do Senhor).

Em suma, à semelhança do que ocorre com a Eucaristia, também o Matrimônio pode ser inválido. Estes “casamentos” nunca foram casamentos antes da atual reforma do Papa Francisco, e continuariam sem o ser ainda que nada tivesse mudado nos processos de nulidade.

Portanto,

i) todo casamento validamente contraído é indissolúvel (há a exceção do privilégio petrino para os matrimônios ratos e não consumados, mas não cabe entrar em detalhes aqui; até porque os casos aos quais ele é aplicável — onde não houve consumação, i.e., conjunção carnal — são por si mesmos excepcionais);

ii) nem tudo o que externamente parece um casamento é um casamento de verdade;

iii) é através do “processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio” que a Igreja se pronuncia a respeito da validade ou nulidade de um Matrimônio;

iv) um casamento que tenha sido nulo jamais existiu;

v) a existência ou inexistência do vínculo matrimonial é independente do processo pelo qual a sua nulidade é conhecida (i.e., um casamento nulo é nulo ainda que nunca venha a receber uma sentença de nulidade, e inversamente um matrimônio verdadeiro é verdadeiro matrimônio ainda que o processo canônico afirme ter ele sido inválido).

Não há lugar para a dissolução do vínculo conjugal por poder terreno algum: isto a Igreja sabe muito bem. Desde Cristo até os tempos de Henrique VIII, e de lá até os dias de hoje, e até a consumação dos séculos. Mas há, sim, espaço para a investigação honesta e sincera a respeito da verdade das coisas. Não cabe falar em “dissolver” se o vínculo já não existe em primeiro lugar. As mudanças recentes feitas pelo Papa Francisco dizem respeito aos meios de investigação daquela nulidade capaz de fazer com que nunca tenha havido Matrimônio de verdade. Nem todo mundo que vive junto está realmente casado; e reconhecê-lo em nada atinge a indissolubilidade do casamento verdadeiro.

Ano da Fé

Porta Fidei é o nome do motu proprio de Sua Santidade que proclama um Ano da Fé de outubro de 2012 a novembro de 2013. A razão é simples e urgente: «Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e a luz fique escondida» (PF 3).

Vivemos em uma terrível crise de Fé, é fato. E o Papa sabe disto perfeitamente, tanto que o coloca em pratos limpos: «Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora um tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado» (PF 2).

Que clareza assombrante, que honestidade assustadora! Não podemos mais considerar a Fé como um “pressuposto óbvio”. E o Papa não está falando somente “do mundo”, de todas as pessoas dos diversos credos (para estas, de fato, a Fé não deveria ser um pressuposto); o Papa está falando dos cristãos. São estes nos quais nós, obviamente, esperaríamos encontrar a Fé. E Bento XVI, com serenidade, diz que isso simplesmente não é verdade. Os cristãos não têm mais Fé.

E, isto, nós não podemos aceitar. Não podemos aceitar – parafraseando o Papa – que o sal se torne insípido e a luz fique escondida. Porque se Nosso Senhor veio para trazer a Fé ao mundo, é porque esta Fé é importante e deve ser propagada. Se o próprio Deus veio entregar-nos algo, não nos é lícito lançar fora este divino presente. Ora, quem seria louco de, estando diante do rei, lançar fora o presente que recebeu deste próprio monarca? Se isto nós não fazemos diante das autoridades do mundo, como poderíamos deitar por terra a Fé que Deus nos entregou – e fazê-lo diante dos olhos do Todo-Poderoso, que tudo vê? Sim, não podemos aceitar que a Fé seja perdida, que a semente fique sem fruto. Qualquer pessoa que tenha uma mínima consciência do que significa “Fé” haverá de entender isto com clareza.

Unamo-nos, pois, ao Vigário de Cristo. Testemunhemos a nossa Fé! E rezemos (desde já!) pelos frutos deste Ano da Fé. Quando o Papa escreveu a sua primeira encíclica sobre a Caridade e, pouco depois, chegou-nos a informação de que a próxima seria sobre a Esperança, eu fiquei imediatamente ansioso por ler a da terceira virtude teologal. E este anúncio de um Ano da Fé me parece um prelúdio dela. Que venham bons frutos, e que venham em abundância! Para que as almas sejam salvas. Ad Majorem Dei gloriam.

Anglicanorum Coetibus em ação

[Fonte: Salvem a Liturgia! Cliquem no link para verem algumas considerações do Apostolado sobre o assunto, bem como fotos da Santa Missa em uma paróquia americana de rito anglicano.]

Declaração na implementação da Constituição Apostólica Anglicanorum Coetibus

O estabelecimento de um Ordinariato Pessoal na Inglaterra e em Gales

Muito foi alcançado durante muitos anos como resultado de diálogo e frutíferas relações ecumênicas foram desenvolvidas entre a Igreja Católica e a Comunhão Anglicana. Obediente à oração do Senhor Jesus Cristo a Seu Pai Celestial, a unidade da Igreja permanece um constante desejo na visão e na vida de Anglicanos e Católicos. A oração pela Unidade dos Cristãos é a oração pelo dom da comunhão completa de uns com os outros. Nós nunca cansamos de rezar e trabalhar por essa meta.

Durante sua visita ao Reino Unido em setembro, Sua Santidade, o Papa Bento XVI fez questão de salientar que a Constituição Apostólica Anglicanorum Coetibus: “… deve ser vista como um gesto profético que pode contribuir positivamente no desenvolvimento das relações entre Anglicanos e Católicos. Ela nos ajuda a focar nossa visão na meta última toda atividade ecumênica: a restauração da comunhão eclesial completa no contexto dos quais trocas de presentes de nossos patrimônios espirituais respectivos serve como um enriquecimento para nós todos.

É passado um ano desde que a Constituição Apostólica foi publicada. A iniciativa do Papa provém o estabelecimento de Ordinariatos Pessoais como um dos caminhos pelos quais membros da tradição Anglicana podem buscar entrar em comunhão plena com a Igreja Católica. Como o Santo Padre declarou daquela vez, ele estava respondendo a pedidos feitos “repetidamente e insistentemente” a ele por grupos de Anglicanos desejando “serem recebidos em comunhão plena individualmente e também em grupo”. Desde então, tornou-se claro que um número de clérigos anglicanos e os seus fiéis, de fato, a intenção de interpor o seu desejo de plena comunhão eclesial com a Igreja Católica para a realização dentro de uma estrutura de Ordinariato.

Em colaboração com a Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma, os Bispos da Inglaterra e de Gales prepararam o estabelecimento de um Ordinariato no começo de janeiro de 2011. Embora possa haver dificuldades de ordem prática nos próximos meses, os Bispos estão trabalhando para responder a estas em um nível nacional e local.

Cinco Bispos Anglicanos que autalmente pretendem entrar no Ordinariato já anunciaram sua decisão de se juntar ao ministério pastoral na Igreja da Inglaterra efetivamente em 31 de dezembro de 2010. Eles entrarão em comunhão plena com a Igreja Católica no começo de janeiro de 2011. Durante o mesmo mês, é esperado que o Decreto estabelecendo o Ordinariato seja emitido e que o nome do Ordinário seja anunciado. Logo depois, os ex-bispos anglicanos não-aposentados, cujas petições para serem ordenados forem aceitas pela CDF, serão ordenados ao diaconato e ao sacerdócio católico para o serviço no Ordinariato.

É esperado que os Bispos Anglicanos aposentados cujas petições para ordenação forem aceitas pela CDF sejam ordenados ao Diaconato Católico e ao Sacerdócio antes da Quaresma. Isso irá incentivá-los, juntamente com o Ordinariato e outros ex-Bispos Anglicanos a assistir com a preparação e recepção de antigos clérigos Anglicanos e seus fiéis em comunhão plena com a Igreja Católica durante a Semana Santa.

Antes do início da Quaresma, esses clérigos Anglicanos,que com grupos de fiéis que decidirem entrar no Ordinariato passarão por um período de formação intensa para sua ordenação como Sacerdotes Católicos

Após o início da Quaresma, os grupos de fiéis, juntamente com seus pastores, serão inscritos como candidatos ao Ordinariato. Então, e uma data a ser acordada entre o Ordinário e o Bispo Diocesano local, eles serão recebidos na Igreja Católica e confirmados (com o Sacramento da Crisma). Isso irá provavelmente ocorrer durante a Semana Santa, na Missa da Quinta-Feira Santa ou durante a Vigília Pascal. O período de formação para os fiéis e seus pastores continuará no Pentecostes. Até então, essas comunidades serão cuidadas sacramentalmente por clérigos locais, como designado pelo Bispo Diocesando e pelo Ordinário.

Durante o Pentecostes, esses antigos padres Anglicanos, cujas petições para ordenação foram aceitas pela CDF serão ordenados ao Sacerdócio Católico. A Ordenação ao Diaconato irá preceder esta em algum momento do Tempo Pascal. Formação em Teologia Católica e Prática Pastoral continuará por um tempo apropriado após a ordenação.

Em uma resposta generosa e oferecendo calorosas boas vindas àqueles buscando plena comunhão eclesial com a Igreja Católica através do Ordinariato, os Bispos sabem que os clérigos e fiéis que estão nesta jornada trarão seus próprios tesouros espirituais, os quais irão enriquecer a vida espiritual da Igreja Católica na Inglaterra e em Gales. Os Bispos farão tudo o que puderem para assegurar que haverá uma colaboração efetiva e próxima com o Ordinariato em nível diocesano e paroquial.

Finalmente, com as bênçãos e encorajamento recebidos pela visita recente do Papa Bento XVI, os Bispos Católicos da Inglaterra e de Gales resolveram continuar seu diálogo com outras Igrejas Cristãs e Comunidades Eclesiais na jornada em direção à comunhão na fé e na plenitude da unidade pela qual Cristo rezou.

“O motu proprio tem sentido transcendente à existência ou não de conflitos” – card. Cañizares

A notícia é antiga. A publicação no Oblatvs é de maio de 2009, mas – a julgar por alguns comentários que se ouvem por aí – creio que nem todo mundo a leu ainda. Vale a leitura. O cardeal Cañizares é prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos e, portanto, voz autorizada para dar a correta interpretação do Summorum Pontificum. Os destaques, s.m.j., são todos do pe. Clécio.

* * *

Prefácio do Cardeal Cañizares à edição espanhola de “A Reforma de Bento XVI”

Desde a publicação deste livro até a presente edição espanhola não passaram mais que uns poucos meses. Todavia, a transcendência de certos fatos ocorridos neste lapso de tempo modificou enormemente o “clima” em torno de sua temática, especialmente pelo ambiente de controvérsia que se criou em razão do levantamento das excomunhões dos quatro bispos ordenados há vinte anos por Dom Lefebvre. Este gesto de misericórdia gratuita do Santo Padre para tornar possível a sua plena inserção eclesial, que demonstra com fatos que a Igreja não renega sua tradição, fez com que a “Missa Tradicional” acabe ligada a um problema disciplinar e, pior ainda, político.

Como consequência, existe o risco de uma desfiguração do sentido profundo do Motu Proprio de 7 de julho de 2007; um gesto de extraordinário sentido comum eclesial pelo qual se reconheceu o valor pleno de um rito que nutriu espiritualmente a Igreja Ocidental durante séculos.

Não há dúvida de que um aprofundamento e uma renovação da liturgia eram necessários. Porém, com frequência, está não foi uma realização perfeitamente alcançada. A primeira parte da constituição Sacrosanctum Concilium não entrou no coração do povo cristão. Houve uma mudança nas formas, uma reforma, não, porém uma verdadeira renovação, tal e como pediam os Padres conciliares. Às vezes, mudou-se pelo simples gosto de mudar um passado percebido como totalmente negativo e superado, concebendo a reforma como uma ruptura e não como um desenvolvimento orgânico da tradição. Isto criou reações e resistências desde o princípio, que em alguns casos se concretizaram em posições e atitudes que levaram a soluções extremas, inclusive a ações concretas que implicavam penas canônicas. É urgente, entretanto, distinguir o problema disciplinar surgido de atitudes de desobediência de um grupo, do problema doutrinal e litúrgico.

Se cremos de verdade que a Eucaristia é realmente a “fonte e o ápice da vida cristã” – como nos recorda o Concílio Vaticano II – não podemos admitir que seja celebrada de um modo indigno. Para muitos, aceitar a reforma conciliar significou celebrar uma Missa que de um modo ou de outro devia ser “dessacralizada”. Quantos sacerdotes vimos ser tratados como “retrógrados” ou “anticonciliares” pelo simples fato de celebrarem de maneira solene, piedosa ou simplesmente por obedecerem cabalmente às rubricas! É peremptório sair desta dialética.

A reforma foi aplicada e principalmente vivida como uma mudança absoluta, como se se devesse criar um abismo entre o pré e o pós Concílio, em um contexto em que o termo “pré-conciliar” era usado como um insulto. Aqui também se deu o fenômeno que o Papa observa em sua recente carta aos bispos de 10 de março de 2009: “Às vezes se tem a impressão de que nossa sociedade tenha necessidade de um grupo, ao menos, com o qual não tenha tolerância alguma, o qual se pode atacar com ódio”. Durante este ano foi o caso, em boa medida, dos sacerdotes e fiéis ligados à forma de Missa herdada através dos séculos, tratados muitas vezes como “leprosos”, como dizia de forma contundente o então cardeal Ratzinger.

Hoje em dia, graças ao Motu Proprio, esta situação está mudando notavelmente. E em grande medida está acontecendo porque a vontade do Papa não foi unicamente satisfazer aos seguidores de Dom Lefebvre, nem limitar-se a responder aos justos desejos dos fiéis que se sentem ligados, por diversos motivos, à herança litúrgica representada pelo rito romano, MAS TAMBÉM, E DE MANEIRA ESPECIAL, ABRIR A RIQUEZA LITÚRGICA DA IGREJA A TODOS OS FIÉIS, TORNANDO POSSÍVEL ASSIM A DESCOBERTA DOS TESOUROS DO PATRIMÔNIO LITÚRGICO DA IGREJA A QUEM AINDA O IGNORA. Quantas vezes a atitude dos que os menosprezam não é devida a outra coisa senão a este desconhecimento! Por isso, considerado a partir deste último aspecto, o Motu Proprio tem sentido transcendente à existência ou não de conflitos: ainda quando não houvesse nenhum “tradicionalista” a quem satisfazer, este “descobrimento” teria sido suficiente para justificar as disposições do Papa.

Foi dito também que tais prescrições seriam um “atentado” contra o Concílio, isto, porém mostra um desconhecimento do mesmo Concílio, cuja intenção de dar a todos os fiéis a ocasião de conhecer e apreciar os múltiplos tesouros da liturgia da Igreja é precisamente o que desejou ardentemente esta magna assembleia: “O Sacrossanto Concílio, apegando-se fielmente à tradição, declara que a Santa Mãe Igreja atribui igual direito e honra a todos os ritos legitimamente reconhecidos e quer que no futuro sejam conservados e fomentados por todos os meios” (SC 4).

Por outro lado, estas disposições não são uma novidade; a Igreja sempre as manteve, e quando ocasionalmente não foi assim, as consequências foram trágicas. Não apenas foram respeitados os ritos do Oriente, mas também no Ocidente dioceses como Milão, Lyon, Colônia, Braga e diversas ordens religiosas conservaram pacificamente seus diversos ritos através dos séculos. Porém, o antecedente mais claro da situação atual é, sem dúvida, a Arquidiocese de Toledo. O Cardeal Cisneros usou de todos os meios para conservar como “extraordinário” na arquidiocese o rito moçárabe que estava em vias de extinção; não somente fez imprimir o Missal e o Breviário, como criou uma capela especial na Igreja Catedral, onde se celebra ainda hoje cotidianamente neste rito.

Esta variedade ritual não significou nunca, nem pode significar, diferença doutrinal, mas pelo contrário, põe em relevo uma profunda identidade de fundo. Entre os ritos atualmente em uso é necessário que se dê também esta mesma unidade. A tarefa atual, tal e como nos indica o presente livro de don Nicola Bux, é pôr em evidência a identidade teológica entre a liturgia dos diversos ritos que foram celebrados através dos séculos e a nova liturgia fruto da reforma, ou ainda, se esta identidade se houvesse desfigurado, recuperá-la.

A Reforma de Bento XVI é, pois, um livro rico em dados, reflexões e ideias, e dentre os múltiplos assuntos nele tratados gostaria de ressaltar alguns pontos:

O primeiro é acerca do nome com o qual chamar a esta Missa. O autor propões chamá-la, ao estilo oriental, “liturgia de São Gregório Magno”. É talvez melhor que dizer simplesmente “gregoriana”, pois pode prestar-se a um duplo equívoco (que poderia em todo caso evitar-se com a denominação “dâmaso-gregoriana”). Também é mais conveniente que “Missa tradicional”, onde o adjetivo corre o perigo de contaminar-se com uma carga ou bem polêmica ou bem “folclórica”; ou que “modo extraordinário”, que é uma denominação demasiadamente extrínseca. “Usus antiquior” tem o defeito de ser uma referência meramente cronológica.

Por outro lado, “usus receptus” seria muito técnico. “Missal de São Pio V” ou “do Beato João XXIII” são termos demasiadamente limitados. O único inconveniente é que no rito bizantino já há uma liturgia de São Gregório, Papa de Roma; a dos dons pré-santificados usado na quaresma.

Em segundo lugar, o fato de que o uso seja “extraordinário” não deve significar que deva ser usado somente por sacerdotes e fiéis que se ligam ao modo extraordinário. Como propõe o padre Bux, seria muito positivo que quem celebra habitualmente no modo “ordinário”, o faça também, extraordinariamente, no “extraordinário”. Trata-se de um tesouro que é herança de todos e ao qual, de uma maneira ou de outra, todos deveriam ter acesso. Por isso, poder-se-ia propor especialmente para ocasiões em que há alguma riqueza peculiar do antigo missal que se pode aproveitar (sobretudo se no outro calendário não há nada especialmente previsto): por exemplo, para o tempo da Septuagésima, para as quatro Têmporas ou para a Vigília de Pentecostes e, talvez, até no caso de certas comunidades especiais, tanto de vida consagrada como confrarias ou irmandades. A celebração “extraordinária” também seria de grande utilidade para os ofícios da Semana Santa, ao menos em alguns deles, pois todos os ritos conservam no Tríduo Sagrado cerimônias e orações que remontam a épocas mais antigas da Igreja.

Outro ponto que é necessário destacar é a atitude de Bento XVI; não constitui tanto uma novidade nem câmbio de rumo de governo, mas sim leva à sua concretização o que já João Paulo II havia empreendido como iniciativas tais como o documento papal Quattuor abhinc annos, a consulta à comissão de Cardeais, o Motu Proprio Ecclesia Dei e a criação da Comissão de mesmo nome, ou as palavras dirigidas à Congregação do Culto Divino (2003).

Algo que se deve urgentemente ter em conta é a repercussão ecumênica destas discussões; as críticas dirigidas ao rito recebido da tradição romana alcançam também a outras tradições e sobretudo a dos irmãos ortodoxos. Quase todos os ataques dos que se opõem à reintrodução do missal antigo são precisamente ataque aos lugares que temos em comum com os orientais! Um sinal que confirma este fato são as expressões positivas do recentemente falecido Patriarca de Moscou ao publicar-se o Motu Proprio.

Não é um dos aspectos menos importantes deste livro o fato de que nos ajude a tomar consciência dos diversos aspectos da situação em que nos encontramos atualmente. Nossa geração enfrenta grandes desafios em matéria litúrgica: ajudar toda a Igreja a seguir plenamente o que indicou o Concílio Vaticano II na constituição Sacrosanctum Concilium e o que o Catecismo da Igreja Católica diz sobre a liturgia, aproveitar o que o Santo Padre – quando ainda era o cardeal Joseph Ratzinger – escreveu sobre o tema, especialmente em seu belíssimo livro Introdução ao Espírito da Liturgia, enriquecer-se com o modo com que o Santo Padre – assistido pela Oficina das celebrações litúrgicas presidida pelo Mons. Guido Marini, e da qual é consultor o autor deste livro – celebra a liturgia. Estas liturgias pontifícias são exemplares para todo o orbe católico.

Por último, acrescento que seria de grande importância que tudo isto se expusesse com profundidade nos seminários como parte integrante da formação para o sacerdócio, para proporcionar um conhecimento teórico-prático das riquezas litúrgicas, não somente do rito romano, mas também, na medida do possível, dos diversos ritos do Oriente e do Ocidente, e assim criar uma nova geração de sacerdotes livres de preconceitos dialéticos.

Oxalá este valioso livro de don Nicola Bux sirva para conhecer melhor as intenções do Santo Padre e descobrir as riquezas da herança recebida e, desse modo, para iluminar-nos em nossa ação. Para isto, peçamos ao Senhor saber interpretar, como dizia Paulo VI, os “sinais dos tempos”.

+ Antonio, cardeal Cañizares

Prefeito da Sagrada Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos

Administrador Apostólico de Toledo

8 de abril de 2009

Fonte: Subsídios Litúrgicos Summorum Pontificum

Tradução: OBLATVS

Comentários sobre a Ecclesiae Unitatem

Já era esperado há bastante tempo que o Papa unisse a Comissão Ecclesia Dei à Congregação Para a Doutrina da Fé; desde pelo menos o decreto que levantava as excomunhões dos bispos da FSSPX sagrados por D. Marcel Lefèbvre. Na verdade, era o caminho mais imediato a ser seguido; após o motu proprio Summorum Pontificum e a remissão das excomunhões, os dois fins precípuos da Comissão (regulamentar a celebração da Santa Missa segundo o missal anterior à Reforma Litúrgica e facilitar o regresso à Igreja de todos os católicos que estavam “ligados de diversos modos à Fraternidade fundada por Mons Lefebvre, que desejem permanecer unidos ao Sucessor de Pedro na Igreja Católica” – Ecclesia Dei, 5) já haviam “passado à alçada” da Igreja Universal, de modo que a integração da Ecclesia Dei a um dos dicastérios da Cúria era natural.

O Ecclesiae Unitatem foi assinado no dia 02 de julho de 2009, curiosamente no mesmo dia em que havia sido assinada a Ecclesia Dei: esta é de 02 de julho de 1988. No aniversário de vinte e um anos da Comissão, ela recebe o presente de estar agora subordinada ao Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – atualmente, o cardeal William Levada. É bastante trabalho; rezemos para que o eminentíssimo purpurado o consiga conduzir com a diligência que é necessária.

Qual o conteúdo do motu proprio? É interessante: primeiro, uma reafirmação da primazia do Papa, “que é o perpétuo e visível princípio e fundamento da unidade, seja dos bispos, seja dos fiéis” (EU 1), para a manutenção da unidade da Igreja. Depois, uma retrospectiva: “o Arcebispo Marcel Lefebvre (…) conferiu ilicitamente a ordenação episcopal a quatro sacerdotes” e “o Papa João Paulo II, de venerada memória, instituiu, em 2 de julho de 1988, a Pontifícia Comissão Ecclesia Dei” (EU 2), “[eu] quis ampliar e atualizar, com o Motu Proprio Summorum Pontificum, as indicações gerais já contidas no Motu Proprio Ecclesia Dei” (EU 3), “[eu] quis remitir a excomunhão dos quatro bispos ordenados ilicitamente por Mons. Lefebvre”, mas “as questões de doutrina, obviamente, permanecem, e até que sejam esclarecidas, a Fraternidade não tem um estatuto canônico na Igreja e seus ministros não podem exercitar de modo legítimo qualquer ministério” (EU 4).

Perceba-se: D. Lefevbre conferiu ilicitamente a sagração, o Papa levantou a excomunhão dos bispos ordenados ilicitamente por D. Lefevbvre, e os sacerdotes da FSSPX não podem exercitar de modo legítimo qualquer ministério. A insistência do Santo Padre neste assunto chega a parecer desnecessária. Será resposta às teorias rad-trads sobre a anulação das excomunhões? Será para sossegar o ânimo dos modernistas que vêem um “retrocesso” na proximidade entre a FSSPX e a Santa Sé? Não sei, mas a ênfase dada à ilicitude quer das ordenações de 1988, quer dos demais sacramentos ministrados pela Fraternidade desde então (incluindo as ordenações recentes, após o levantamento das excomunhões), é de uma clareza que chega a ser incomum.

Depois, existe a definição da estrutura da Ecclesia Dei, que é bastante simples e o Santo Padre resume em três pontos:

a) O Presidente da Comissão é o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.

b) A Comissão tem um próprio quadro orgânico composto de Secretário e oficiais.

c) Será competência do Presidente, assistido pelo Secretário, apresentar os principais casos e questões de caráter doutrinário ao estudo e discernimento das instâncias ordinárias da Congregação para a Doutrina da Fé, e também apresentar os resultados às disposições superiores do Sumo Pontífice.

Bastante simples, sem dúvidas. Todo o preâmbulo do motu proprio, antes de chegar a esta reformulação que é, afinal, o cerne do documento, poderia ter sido escrito de maneira mais sucinta. Mas o Santo Padre fez questão de reservar mais de 2/3 do documento para repetir a história que já conhecemos e reafirmar a ilicitude das ordenações de 1988. Parece que ele faz questão de dizer que o problema é grave, e é fundamental que todos o entendamos perfeitamente, porque não podemos nos dar ao luxo de gastar energia com caricaturas neste momento crítico que atravessa a Igreja.

Termina o Papa Bento XVI com um pedido: Estendo a todos um apelo urgente para rezar ao Senhor sem cessar, pela intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria, “ut unum sint”. Sim, rezemos, aos pés da Virgem Santíssima, pro unitate Ecclesiae. Que Ela alcance de Seu Divino Filho esta graça portentosa e tão necessária aos dias que hoje atravessa a Barca de Pedro.

O Papa e o Summorum Pontificum

Eu havia estranhado a resposta dada pelo Santo Padre a um jornalista, no avião que o levava à França, sobre o Motu Proprio Summorum Pontificum (cuja entrada em vigor completa um ano amanhã). No entanto, o Fratres in Unum traduziu a versão oficial das respostas do Papa, publicadas na Sala de Imprensa da Santa Sé.

A diferença fundamental entre os dois textos está na pergunta. Veja-se:

Na Radio Vaticana: Respondendo a outro jornalista, que lhe perguntou sobre o motu proprio, que permite celebrar a Missa em latim, como um passo atrás ao Concílio (…).
Na Sala de Imprensa da Santa Sé: O que vós dizeis aos que, na França, temem que o Motu proprio `Summorum pontificum’ marque um passo atrás sobre as grandes intuições do Concílio Vaticano II? Como vós podeis tranqüilizá-los?

Ou seja, a resposta do Papa não é uma “consideração particular” sobre o motu proprio que ele julgou necessário expôr; é, ao contrário, uma resposta tranquilizadora provocada por uma pergunta de um jornalista sobre o temor de alguns franceses. Faz toda a diferença.

Viagem do Papa à França

Começou hoje a primeira viagem apostólica do Papa Bento XVI à França. O Sumo Pontífice visitará a terra banhada pelo Reno (e pelo sangue dos católicos durante a Revolução de 1789…) de 12 a 15 de setembro, por causa do sesquicentenário das aparições de Nossa Senhora de Lourdes.

O Missal disponibilizado no site do Vaticano para esta viagem tem quase duzentas páginas. Cânticos em francês e em gregoriano, leituras da Bíblia em alemão, preces em português, árabe, em uma língua africana, polonês, chinês. Nas missas em Lourdes, cânon em latim. A de 15 de setembro, cânon romano. E um apêndice com algumas orações em latim e em francês. Très bien.

Não li nenhuma das mensagens do Santo Padre, pois até agora só as encontrei em Francês. Entretanto, li n’O GLOBO que o Papa pediu para que a França “cultive Deus na sociedade”:

– É importante nos tornarmos mais atentos quanto ao papel insubstituível da religião para a formação da consciência e a criação de um consenso étnico básico com a sociedade – disse o papa em francês fluente.

Os franceses gostam do Papa, segundo a Agência Ecclesia:

Mais de metade dos franceses têm opinião positiva do Papa Bento XVI, segundo uma sondagem de opinião levada a cabo pelo jornal “Le Parisien”.

A sondagem revela que 53% dos franceses em geral partilham desta opinião, um número que sobe para 65% entre aqueles que se declaram católicos. 53% dos católicos e 47% do geral definem o Papa como carismático.

A Rádio Vaticano noticiou o que aconteceu durante o vôo:

Respondendo a outro jornalista, que lhe perguntou sobre o motu proprio, que permite celebrar a Missa em latim, como um passo atrás ao Concílio, o Santo Padre respondeu: “É claro que a Liturgia conciliar renovada é aquela ordinária para a Igreja. O motu proprio é simplesmente um ato de tolerância pastoral para com as pessoas que receberam formação no período pré-conciliar. Portanto, é absolutamente infundado – concluiu – o fato de a liturgia em latim ser um retrocesso na Igreja”.

Rezemos pelo Sucessor de Pedro, Doce Cristo na Terra, para que a viagem possa ser proveitosa, e para que o Sando Padre, aos pés da Virgem de Lourdes, obtenha muitas graças para a Igreja.