O Sínodo dos Bispos e o Magistério Ordinário

Recebi esta semana, nas redes sociais, em tom alarmado, uma notícia segundo a qual o Papa Francisco havia publicado novas normas a respeito do Sínodo dos Bispos e que, agora, os documentos destes encontros passariam diretamente a ser “Magistério Ordinário”, deixando de existir as exortações pós-sinodais. O Papa estaria abrindo mão de sua primazia em favor da colegialidade episcopal.

A notícia era bastante estranha, já à primeira vista, por uma razão bastante simples: não existe isso de os textos sinodais passarem a ter automaticamente o status de “Magistério Ordinário”. Isso não tem nem lógica. “Magistério” é a parcela do poder eclesiástico encarregada da transmissão da Doutrina, e desse munus participam os diversos níveis da hierarquia, cada um a seu modo. Aliás, via de regra, as pessoas quando falam em “Magistério” estão pensando naquele exercício do munus docendi da Igreja a que os católicos têm — em maior ou menor medida — o dever de aquiescer. Passaria agora a haver, na Igreja, uma via magisterial paralela ao Romano Pontífice? Uma assembleia de bispos teria agora poder de ensinar os católicos, em matéria de Fé, independente do Papa?

Afinal de contas, o que é “Magistério Ordinário”? Essa expressão significa duas coisas:

1. “Magistério Ordinário” (do Papa) é o que se contrapõe a “Magistério Extraordinário” (do Papa). São duas modalidades distintas de exercício do ministério petrino, sendo a infalibilidade desta última a maior e mais relevante distinção entre ambas. O Magistério Extraordinário é o magistério infalível, circunscrito àquelas condições do Primeiro Concílio do Vaticano:

[O] Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis.

Constituição Dogmática Pastor Aeternus

Por exclusão, o Magistério do Papa, quando não se enquadra nessas estritas condições, não é por si mesmo dotado de infalibilidade e, portanto, diz-se Magistério Ordinário. Ou seja, nesse sentido, ambos os “Magistérios” têm por sujeito o Papa, sendo que um é infalível e, o outro, não.

2. “Magistério Ordinário” (Universal) é o ensino uníssono de todos os Bispos Católicos do mundo, tomados em sua unidade moral. Trata-se também aqui de expressão da infalibilidade do munus docendi, manifestada agora a partir do todo da Igreja e não apenas da Sua Cabeça (que é o Papa). Aqui, “Magistério Ordinário” (Universal) se contrapõe a “Magistério Extraordinário” (do Romano Pontífice).

Neste sentido, os “Magistérios” são ambos infalíveis, sendo que o primeiro deles tem por sujeito a totalidade moral do corpo episcopal e, o segundo, tem por sujeito o Papa somente.

Eu desconheço qualquer outro sentido no qual a expressão “Magistério Ordinário” seja empregada. “Magistério Ordinário” ou é o Magistério não-infalível do Romano Pontífice, ou é o Magistério infalível de todos os bispos do mundo tomados em união moral. Nunca encontrei uma terceira coisa que a expressão pudesse significar.

Pois bem. Como é possível, então, que os documentos conclusivos dos Sínodos dos Bispos ganhem automaticamente o status de Magistério Ordinário? Ora, se os bispos, reunidos em Sínodo, reproduzem fielmente a doutrina católica, em união moral com a totalidade do episcopado, então se está diante do Magistério Ordinário Universal que existe desde sempre e desde sempre é infalível. Não é um “status” jurídico de que tais pronunciamentos passam a gozar a partir de agora, com as modificações introduzidas pelo Papa Francisco; é uma nota ontológica que independe por completo das classificações canônicas que lhes sejam dadas.

Por outro lado, se as tais conclusões de um Sínodo de Bispos não guardam fidelidade com a Igreja Católica, se elas não representam o entendimento da totalidade moral do episcopado católico, então elas também não são Magistério Ordinário Universal independente do nome que se lhes queira dar. O que dizer, então, das notícias recentemente circuladas?

Fui procurar o documento; é uma Constituição Apostólica. Chama-se Episcopalis Communio e até o momento só está disponível em italiano no site da Santa Sé. Li-a atravessado, mas a parte que deu ensejo a esta querela toda foi a seguinte (tradução livre minha):

Entrega do Documento Final ao Romano Pontífice

§ 1. Recebida a aprovação dos membros [da Comissão de relatoria], o documento final da Assembléia é apresentado ao Romano Pontífice, que decidirá a respeito de sua publicação.

Se aprovado expressamente pelo Romano Pontífice, o documento final participa do Magistério Ordinário do Sucessor de Pedro.

§ 2. Na hipótese de o Romano Pontífice haver conferido à Assembléia do Sínodo potestade deliberativa, nos termos do Cân. 343 do Código de Direito Canônico, o documento final participa do Magistério ordinário do Sucessor de Pedro uma vez ratificado e promulgado por ele.

Neste caso o documento final vem publicado com a assinatura do Romano Pontífice juntamento com a dos membros.

Episcopalis Communio, Art. 18

Ou seja:

  1. o “Magistério Ordinário” em questão aqui é o Magistério Pontifício, aquele que se opõe ao Extraordinário e que, ao contrário deste, não possui em si mesmo a nota da infalibilidade; e
  2. o resultado do Sínodo dos Bispos evidentemente não integra de forma automática o magistério petrino — nem mesmo o ordinário! –, sendo necessária ou a aprovação expressa do Papa, na hipótese do parágrafo primeiro, ou a sua ratificação, na hipótese do segundo, neste último caso c/c o Cân. 343 do CIC, in finis.

Não há nada de novo aqui. A hipótese de concessão de poder deliberativo ao Sínodo estava já prevista no Código de Direito Canônico antes dessa Constituição Apostólica (e, ainda neste caso, a ratificação pontifícia é exigida); e a hipótese de o Papa expressamente aprovar e subscrever um documento escrito por outrem é evidente e não tem como ser de outra maneira. Ou acaso a aprovação formal, por parte de um Papa, de um documento eclesiástico não significa que o Papa está integrando ao seu magistério o ensinamento contido no documento aprovado? Não é exatamente assim que acontece com os documentos produzidos pelos Dicastérios Romanos? Ou alguém vai negar que, por exemplo, a instrução Dignitas Personae integra o magistério de Bento XVI a despeito de ter sido escrita pela Congregação para a Doutrina da Fé?

Em resumo, com a nova Constituição Apostólica, e s.m.j., são duas as possibilidades. Na primeira delas, o Documento Final redigido pelo Sínodo tem a aprovação do Papa e, portanto, ele o promulga diretamente: este documento, de certo modo, substitui a Exortação Apostólica Pós-Sinodal que era praxe o Papa redigir após as Assembleias Gerais do Sínodo dos Bispos. Na segunda delas, o Papa não aprova o Documento Final do Sínodo, hipótese na qual nada obsta a que ele redija, de próprio punho, uma Exortação Apostólica Pós-Sinodal e a faça publicar.

Em qualquer caso apenas integra o Magistério Ordinário do Papa o texto que tiver o Papa por autor, quer mediante aprovação expressa de documento sinodal, quer através de redação própria de Exortação Apostólica. Em nenhum caso um documento redigido pela assembleia sinodal pode “se transformar” em Magistério Ordinário à revelia do Romano Pontífice.

Animadoras notícias de Roma

Três notícias publicadas nos últimos dias em ZENIT são excelentes e merecem ser divulgadas.

Primum, “houve aqueles que tentaram fazer a destruição histórica do Papa Pio XII”, segundo explica o historiador brasileiro José Pereira da Silva. A descomunal onda de difamação que se lançou sobre a figura deste grande Papa da Igreja é já bastante conhecida nos meios históricos sérios. No entanto, e infelizmente, a maior parte das pessoas só conhece o “lado negro” da história, falso e deliberadamente caluniador, que ainda hoje, cinqüenta anos após a morte de Pio XII, apresenta-se como se fosse a mais límpida e cristalina verdade histórica. Nas palavras do professor José Pereira, “domina ainda hoje em alguns meios o lugar-comum que a Igreja não teria feito muito pelos judeus, no contexto da perseguição nazista”.

Achei muitíssimo interessante o professor ter trazido um fato, ocorrido na Holanda, que eu desconhecia:

O historiador cita o exemplo dos bispos holandeses, que protestaram abertamente contra a perseguição dos judeus em 1942. Isso provocou a deportação de todos os católicos de origem judaica, como Edith Stein.

«Com toda probabilidade os judeus-católicos teriam sobrevivido, como aconteceu com a maioria dos judeus-protestantes holandeses, se os bispos tivessem agido de outra maneira.»

Portanto, carece completamente de fundamento as acusações de que as coisas “seriam melhores” para os judeus se Pio XII tivesse agido de maneira aberta; é pura “futurologia do passado”, contradizendo inclusive os fatos observados em outros países nos quais tal posição foi tomada. Note-se ainda ser muitíssimo provável que a trágica experiência na Holanda tenha chegado ao conhecimento do então Pontífice, influenciando assim na decisão que ele tomou.

Secundum, foi publicada uma interessante entrevista na qual chama-se a atenção para a fidelidade à Igreja que os párocos devem ter nas suas homilias. Trazendo à tona uma lembrança muito pertinente, o professor Salvatore Vitiello, que leciona Teologia em Turim e em Roma, recordou que a homilia “não por acaso está reservada aos ministros sagrados e não pode ser pronunciada por fiéis leigos, [e nela] exercita-se, de modo particular, o que a Igreja chama de munus d[o]cendi, o dever de ensinar”.

Os fiéis têm o direito, participando da Santa Missa, de escutar o que a Igreja ensina, não o que um sacerdote, em certo momento, pensa ou acha justo.

Que bom seria se este direito dos fiéis não lhes fosse nunca negado! Certamente o mundo em que vivemos seria melhor, se os fiéis católicos tivessem sempre acesso, nas homilias que ouvem, à pureza límpida da Doutrina Católica, fonte de vida verdadeira. São também dignas de menção as seguintes palavras do professor Vitiello:

É absolutamente necessário sair, também no que diz respeito à pregação, do «túnel do relativismo», dessa ditadura que impede anunciar a diferença entre verdade e falsidade, bem e mal, pecado e virtude.

Senhor, dai-nos santos pregadores!

Tertium, para orgulho desta Terra de Santa Cruz, o cardeal Odilo Scherer fez, no Sínodo dos Bispos, pertinentes questionamentos sobre o que é a Palavra de Deus. Empenhando-se no trabalho de destruir o “lugar-comum” (tão disseminado quanto equivocado) que afirma ser a palavra de Deus unicamente a Bíblia, o cardeal lembra que “a Palavra de Deus, por excelência, é o próprio Jesus Cristo”, e que “a Palavra passou aos homens através da Bíblia e também através da Tradição da Igreja”. São, portanto, como sempre ensinou a Igreja, dois os canais da Revelação: as Sagradas Escrituras e a Sagrada Tradição. Disse ainda o cardeal brasileiro:

Nesse contexto, segundo o cardeal, o Sínodo parte de uma preocupação: «que o inestimável tesouro da Palavra de Deus presente na Sagrada Escritura e na Tradição viva da Igreja continue a ser comunicado à humanidade».

«Embora a Bíblia seja o livro mais editado e divulgado, ela ainda é muito desconhecida, ou lida e interpretada de maneira inadequada», escreve.

Que o Espírito Santo continue a iluminar o Sínodo dos Bispos, a fim de que a Doutrina Católica, claramente proclamada, possa atingir todos os homens sedentos da Verdade, para que estes, movidos pela Graça de Deus, convertam-se à Igreja de Jesus Cristo, a Igreja Católica Apostólica Romana, Única Esposa de Nosso Senhor, Única depositária fiel da Revelação, “Coluna e Sustentáculo da Verdade” (1 Tm 3, 15).