“Tem tão poucas pessoas, né?”

– Aqui está o seu refrigerante, querida.

– Rebeca. Meu nome é Rebeca. Pode me chamar de Rebeca.

E sorriu, deixando-me atônito.

Hoje, o círculo de casais do ECC do qual fazem parte os meus pais ofereceu um almoço de Natal para os moradores de rua que freqüentam a Toca de Assis daqui da cidade. Convidaram-me, e lá estive; ajudando-os um pouco a servir os convidados, conversando um pouco com eles. O diálogo acima foi travado entre eu e uma das garotas que estava almoçando. Indelicadeza a minha não lhe ter perguntado o nome! Ela prontamente percebeu, e fez questão de se apresentar: convenção social tão básica – e tão significativa – mas de que nós, às vezes, nos esquecemos. Ela tem um nome e faz questão de ser tratada pelo nome que possui.

É isso que faz dela uma pessoa, e não simplesmente uma “peça” a mais n’algum amontoado impessoal de seres humanos. Imediatamente, percebi que aquele almoço natalino estava muito mais humano do que os nossos almoços executivos feitos durante o trabalho diário, onde muitas vezes não sabemos o nome das pessoas que nos servem em tal ou qual restaurante, mesmo que estejamos acostumados a ir lá com relativa freqüência. Nós não nos importamos; Rebeca se importava. Como é possível que estejamos tão imersos nas futilidades do mundo moderno, que nos esqueçamos até mesmo das mais elementares formas de tratamento humano? As pessoas têm nomes, ainda que nós não demos muito valor para isso; e muito mais importante do que comer simplesmente para satisfazer uma necessidade fisiológica (como – parece-me! – estamos acostumados a fazer) é almoçar com relacionamentos. O que realmente importa não é um fast-food impessoal, e sim uma refeição entre seres humanos. Entre pessoas. Era isso o que aqueles mendigos procuravam lá, na Toca de Assis. Não se tratava simplesmente de comida. Até animais são capazes de comer; mas só seres humanos podem fazer uma refeição. É incrível que tal compreensão exista com tanta clareza precisamente em alguém que está acostumado a passar fome. Para vergonha minha.

Em outro momento, estava eu a admirar o presépio que fora montado na casa. Outro dos convivas me interpelou, perguntando-me se aquilo eram “as primeiras pessoas do mundo”. Olhei-o, incrédulo; como era possível que o sujeito não fosse capaz de reconhecer um presépio tradicional colocado bem na sua frente?! Reis magos, anjo, manjedoura, pastores, Santíssima Virgem e São José, ovelhas, vacas: a cena era a mais clássica possível. Olhei de novo para o presépio e, dele, para o rapaz. Comecei a explicar-lhe que, não, aquilo era uma representação do nascimento do Menino Jesus. Ao que ele redargüiu, com um olhar triste: “mas tem tão poucas pessoas, né?”.

Sim, há tão poucas pessoas…! Comecei a tentar explicar-lhe o porquê do Menino Jesus ter nascido em uma estrebaria. Nem arrisquei falar em “recenseamento”. Disse que eles estavam longe de casa e não havia lugar para eles na hospedaria; imediatamente percebi que “hospedaria” era uma expressão que não lhe fazia muito sentido. Pensei em “estalagem”, e também desisti antes mesmo de falar. Em um esforço de inculturação – ainda que às custas da precisão histórica -, disse-lhe que não havia vagas nos hotéis, que eles não tinham conseguido lugar para ficar e, portanto, tiveram que passar a noite junto aos animais. Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça, como se houvesse entendido.

Será que havia? Arrisquei uma abstração. Disse-lhe que, da mesma forma como havia “tão poucas pessoas” naquela época, naquele presépio, assim também era nos dias de hoje e, no Natal, eram bem poucas as pessoas que se importavam com o nascimento do Menino Jesus. Ele deu um sorriso triste, concordando, e um outro senhor que estava ao lado ouvindo a conversa também aquiesceu: “é mesmo…”. Entenderam. Pedi licença e afastei-me, pensativo.

Como é que eu nunca percebera antes que, nos presépios, há “tão poucas pessoas” quando – é óbvio! – deveria haver multidões encaminhando-se para contemplar o Nascimento do Salvador? Talvez eu esteja muito acostumado a fixar-me na pobreza da estrebaria, na ignomínia do estábulo, no frio da noite; para uma pessoa acostumada a morar nas ruas, no entanto, isso não é o mais chocante no presépio. Isso é o dia a dia. O que torna a cena do nascimento do Menino Jesus triste é o fato de haver “poucas pessoas” lá. E, nisso, é um mendigo quem está coberto de razão, mais uma vez. Porque as pessoas – o calor humano – fazem mais falta do que os confortos materiais, uma vez que as pessoas são mais importantes que os bens materiais.

E o Menino Jesus está para nascer. E passa fome, e passa frio; mas passa também (e principalmente) solidão. Acheguemo-nos a Ele, neste Natal que se avizinha. Preparemo-nos para O receber. Que Ele nasça para nós e na nossa vida. E que nós possamos, com os nossos intentos, comparecer espiritualmente à Manjedoura, aumentando o número de almas a visitar o Menino Jesus; para, assim, tentar – um pouco que seja! – compensar o grande ultraje histórico de se ter permitido serem tão poucos os que visitaram o Filho de Deus quando Ele Se fez carne e nasceu por nós. Que tenhamos todos um Santo Natal.

O Natal e a Paixão

Iniciamos o advento, preparando-nos para comemorar o Natal de Nosso Senhor. A cor litúrgica desta época do ano – o roxo – lembra-nos um outro tempo litúrgico que iremos vivenciar mais à frente: a Quaresma. À primeira vista, contudo, parece não haver similaridade entre o Advento e a Quaresma: no primeiro, estamos à espera do Nascimento do Salvador e, no segundo, da Sua Paixão, Morte e Ressurreição. O que o Nascimento de Cristo tem a ver com a Sua Morte e Ressurreição?

A mim, afigura-se como se a Igreja quisesse envolver-nos todos no Mistério da Encarnação em Sua totalidade, remetendo, no Natal do Salvador, à Sua Dolorosa Paixão; a penitência que fazemos ao longo destas quatro semanas incompletas deixa entrever isso, unindo os dois tempos litúrgicos que estão logicamente unidos (afinal, Jesus não morreria na Cruz se não tivesse um dia nascido, e Ele nasceu para nos resgatar com o Seu preciosíssimo Sangue – o que só se consumou no alto do Calvário). Ademais – não nos esqueçamos -, foi diante de Jesus Menino que Simeão disse à Virgem Santíssima que uma espada iria transpassar-Lhe a alma (cf. Lc 2, 35), de novo aludindo, no meio dos festejos natalinos, às dores da Semana Santa.

É-nos bastante comum pensarmos na Cruz como a consumação do Sacrifício de Cristo, que perdoou os nossos pecados – e é correto pensarmos assim. No entanto, muitas vezes nos esquecemos que este Sacrifício começou trinta e três anos atrás: começou com um recém-nascido envolto em faixas e colocado em uma manjedoura. Quando o Verbo Se fez carne. Quando a Divindade assumiu a nossa humanidade. É sem dúvidas humilhante e indigno da Majestade Divina que um Deus Eterno assuma um corpo material; mas, ao contrário, que grande honra é para a Humanidade poder contar, entre os seus membros, com um Deus! Sim, é já no Nascimento do Salvador que a Humanidade começa a ser elevada; se ela ainda não se poderia considerar redimida, estava já sem dúvidas muitíssimo bem representada.

O Divino Sangue que pagou pelos nossos pecados foi aquele vertido na Cruz do Calvário; mas o Salvador por outras vezes verteu o Seu Sangue Precioso, o que já seria suficiente para satisfazer a Justiça Divina ofendida pelo pecado. Em particular, no Horto das Oliveiras, quando Jesus suou sangue; comentando sobre esta passagem, diz-nos São Padre Pio:

É o sangue do seu Filho Bem-Amado que caiu sobre a Terra para a purificar. É o Sangue do seu Filho que ascende ao Seu trono para reconciliar a Justiça ultrajada. A alegria é na verdade muito mais veemente do que a dor.

Jesus chegou então ao fim do caminho doloroso?

Não. Ele não quer limitar a torrente do seu amor! É preciso que o homem saiba quanto ama o Homem-Deus. É preciso que o homem saiba até que abismos de abjeção pode levar amor tão completo. Embora a Justiça do Pai esteja satisfeita com o suor do Sangue preciosíssimo, o homem carece de provas palpáveis deste amor.

O homem precisa de provas do Amor de Deus! Mil e uma maneiras poderia encontrar Nosso Senhor para reconciliar o homem com Deus; não só o sangue do Getsêmani, como também, muitos anos antes, o sangue que o Menino Jesus derramou na Sua circuncisão. Mas Ele quis amar até o fim, até a Cruz.

Olhemos para o Nascimento do Deus Menino, com os olhos fitos na Cruz do Calvário: olhemos para o Sacrifício em favor de nós, iniciado quando o Verbo resolveu fazer-Se carne. Olhemos para a Paixão iniciada três décadas antes de se consumar no alto do Gólgota. Olhemos para o amor deste Deus que é capaz de fazer tantas coisas por amor a nós. E, verdadeiramente contritos, esperemos com alegria o nascimento do Deus Menino, vivendo bem este tempo de preparação, a fim de que possamos um dia encontrar Aquele que nasceu, viveu e morreu por amor de nós. Que a Virgem Maria, Mãe do Verbo Encarnado, conceda-nos a graça de um santo advento.