A causa honoris como descriminante do aborto

Ano passado, eu disse aqui no Deus lo Vult! acreditar que o inciso II do Art. 128 do Código Penal – não se pune o aborto «se a gravidez resulta de estupro» – era uma espécie de legítima defesa da honra. Dia desses, conversando com uns amigos, levantei de novo a hipótese: semelhante conteúdo não poderia senão ser informado por uma mens legis que talvez fizesse sentido na década de 40 – responsável, por exemplo, por aquela história da atenuação da culpa do marido que matava a esposa apanhada em adultério -, mas que hoje em dia era verdadeira excrescência.

É evidente que, hoje, o lobby pró-aborto já fez o mais indecente carnaval com a tragédia das mulheres vítimas de violência sexual, mas o que quero dizer é o seguinte: a mentalidade que justificou – mais de 70 anos atrás – a inclusão no Código Penal Brasileiro de uma não-incriminação do aborto em casos de estupro tinha mais em vista, evidentemente, a desonra da mulher violada que um suposto “direito reprodutivo” seu. E ainda isso: se hoje, passadas algumas décadas, nós conseguimos olhar com certa repugnância para a tese de que é direito do marido traído tirar a vida da esposa, tenho a esperança de que, algumas décadas ainda à frente, olharemos com horror para a idéia (tão corrente neste despontar do terceiro milênio!) de que a mãe tem ius vitae necisque sobre o filho de um estuprador. E será uma conquista civilizatória.

Mas hoje, lendo algumas páginas do sempre abalizado Nelson Hungria [“Comentários ao Código Penal – Volume V”.  Forense: Rio de Janeiro, 1979. p. 272.], deparo-me com a seguinte retrospectiva histórica da lavra do insigne penalista:

Eram, porém, reconhecidos [no «tempo de Zacchia» – Paolo Zacchia, penso eu] certos motivos para o abrandamento e mesmo exclusão da pena. (…) A causa honoris, no caso da mulher violentada, era descriminante do aborto, quando ainda inanimado o feto: “si honesta puella invicta ab adolescente adultero corrupta fuisset, ante animationem foetus potest illum excutere, ut multi volunt, ne honorem suum amittat.”

Causa honoris, portanto. Veja-se, a idéia de que se poderia não punir uma mulher violentada que assassinasse o seu próprio filho não é nova; mas, exatamente por isso, as justificativas que séculos atrás se empregavam para justificar esse arrazoado são totalmente inaceitáveis nos dias que correm. Seria de se esperar que esta espécie de aborto honoris causa caísse em desuso; no entanto e ao invés, recrudesceu-se-lhe a abrangência! Por pura ideologia feminista: a mesma, aliás, que não aceita a figura da «mulher honesta» (antigo Art. 215 do CP), mas exige que seja reconhecido o sacrossanto direito ao aborto por motivo de honra.

* * *

Como bônus, encontram-se, à página 281 do livro de Hungria, estas eloqüentes linhas de García Pintos:

Se as palavras hão de ter algum sentido, um ser animal que tem características próprias de independência anatômica e fisiológica se há de chamar indivíduo; e se é da espécie humana, há de se chamar pessoa. Pessoa talvez derive da palavra com a qual se denominava a máscara que Roma usava no teatro clássico. Contudo, parece-nos mais exato, como sugestão, o que lemos em algum lugar: persona é igual a “per se una”, quer dizer, por si mesmo um, e o filho concebido é biologicamente por si mesmo um.

Sensacional.

Parabéns à boa ciência

Nasceu em São Paulo, no mês passado, o pequeno Valdir Gabriel, aos oito meses. Produto de uma gravidez extra-uterina, o feto “estava alojado não no útero, onde deveria estar, mas numa região mais acima, próxima do estômago” (GAZETA DO POVO).

A notícia veiculada por G1 reconhece:

Esse tipo de gravidez costuma ser interrompido pelos médicos para resguardar a vida da mãe, uma vez que a continuidade da gestação leva à morte em 40% dos casos e o bebê sobrevive em apenas 5% dos casos.

Entretanto a mãe, Maria Benedita, optou por fazer jus à sua vocação materna (e ao nome de batismo que carrega) e não medir esforços para salvar a vida do filho. Parabéns ao Dr. Waldemir Rezende, um dos médicos presentes ao parto, e que classificou o caso como “um milagre da vida e da ciência”:

[O]s riscos sempre existem e são grandes, mas a natureza é sábia e pode nos ajudar a procurar as soluções para os diversos problemas que encontramos pelo caminho – Dr. Rezende, in ACI DIGITAL.

Caberia lembrar o que consta na vergonhosa declaração da OAB sobre a interrupção da gravidez no caso dos bebês anencéfalos, de 2004:

12. A asserção do clássico Nélson Hungria, a respeito da gravidez extra-uterina e da gravidez molar, pode, perfeitamente, ser aplicada à hipótese do feto anencefálico:

“O feto expulso (para que se caracterize aborto) deve ser produto fisiológico, e não patalógico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto” ( Comentários ao código penal, Forense, 1958, vol. V, p. 207/208).

Agora, que temos um contra-exemplo palpável de gravidez extra-uterina que tem não apenas uma “presumida possibilidade de continuação da vida”, mas um nascimento efetivo e uma vida pós-parto verdadeira, está na hora de enterrar o clássico Nélson Hungria. A ciência venceu a patologia – afinal, é para isso que serve a ciência.

E, en passant e ad hominem, registro que falar em “possibilidade de continuação da vida do feto” é assumir que o feto já tem vida e, portanto, deve ser protegido. Touché.

Nestes dias em que o Supremo está para julgar o aborto dos anencéfalos, é importante que a boa ciência se levante em favor dos nascituros.

Leituras relacionadas:

Se o embrião humano fosse pessoa… (pe. Lodi)
A polêmica (i)legalidade do aborto de feto anencéfálico (Guylene Vasques Moreira Martins)