Reforma do processo de nulidade matrimonial I – O que é nulidade?

Foram dois os motu proprios recentemente publicados pelo Papa Francisco “sobre a reforma do processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio”: Mitis et misericors Iesus e Mitis Iudex Dominus Iesus. Os dois têm a mesma data – 15 de agosto de 2015 – e o mesmo objeto – as mudanças no processo de nulidade matrimonial. São dois porque o primeiro deles altera os cânones do Código das Igrejas Orientais e, o segundo, os do Codex Iuris Canonici vigente na Igreja latina. Um só, portanto, é o propósito da dupla publicação, havendo dois documentos porque duplo é o regime jurídico da Igreja Católica: oriental e ocidental.

Os documentos se propõem a facilitar o processo pelo qual se obtém a declaração de nulidade matrimonial. Atenção que as palavras são aqui importantes: processo, i.e., meio, procedimento, o que significa que não houve nenhuma modificação substantiva no tema, nenhuma (aliás impossível) alteração doutrinária, nenhuma mudança de posição da Igreja no que se refere ao assunto; declaração, i.e., um documento de natureza — como o próprio nome diz — meramente declaratória (e não constitutiva), que se limita a fazer uma afirmação a respeito da realidade sem a alterar de nenhuma maneira; e nulidade, e não anulação, ou seja, uma qualidade já desde o início presente no Matrimônio tentado, e não uma que se lhe confere ao fim do processo canônico.

Relembrando as aulas de teologia sacramental: todo Sacramento, para ser válido — i.e., para existir — precisa de três coisas: forma, matéria e ministro. Não é qualquer forma, senão apenas a forma adequada; nem qualquer matéria, mas somente a matéria válida; nem tampouco qualquer ministro, senão só o ministro capaz. Faltando uma dessas três coisas, então o Sacramento, por mais que exteriormente pareça, não é Sacramento de verdade.

O exemplo da Eucaristia é talvez o mais claro e ajude a enxergar o que se está querendo dizer aqui: todo mundo sabe que, para a Eucaristia ser válida — ou seja, para o pão e o vinho realmente se transformarem no Corpo e no Sangue de Cristo — é preciso que as palavras da Consagração sejam proferidas por um sacerdote validamente ordenado. Ou seja: se um sujeito que não é padre chegar numa igreja, paramentar-se corretamente, subir ao altar, proferir todas as orações e realizar todos os gestos previstos no Missal, pegar a hóstia e disser “isto é o Meu corpo”, o cálice e afirmar “este é o cálice do Meu sangue”, elevá-los, enfim, fizer tudo de modo exatamente igual a como um padre de verdade faria, ninguém que esteja observando “de fora” vai perceber, mas o pão vai continuar sendo pão e, o vinho, vinho. Não vai ocorrer a transubstanciação. Não vai ter havido o Sacramento.

O que se quer dizer é isto: todo sacramento é um sinal sensível de uma graça invisível, mas nem todo sinal sensível é um sacramento! A Hóstia, ainda que seja do tipo com o qual estamos acostumados — o disco branco, de espessura fina, geralmente ornado com símbolos cristãos –, ainda que esteja sobre o altar, ainda que seja elevada por um homem paramentado como sacerdote católico, ainda assim, se o homem não for um sacerdote validamente ordenado então ela vai continuar sendo apenas pão. Não é porque a coisa parece um sacramento que ela é um sacramento de verdade. E isto, que é fácil ver no Sacramento da Eucaristia, vale para todo Sacramento da Igreja Católica.

Até para o Matrimônio, e aqui chegamos ao ponto. Assim como é possível que uma hóstia não seja o Corpo de Cristo mesmo que, externamente, ela pareça ter sido consagrada, da mesma maneira é possível que um casal vivendo maritalmente não forme um Matrimônio Católico ainda que, externamente, os dois pareçam ter se casado. Da mesma forma como é possível que a Hóstia não tenha sido validamente consagrada, é possível que o Matrimônio não tenha sido validamente contraído — e ao Matrimônio inválido nós chamamos nulo. E ao procedimento que a Igreja emprega para investigar se, de fato, aquela situação que parece um casamento é realmente um Matrimônio Sacramental chama-se comumente de processo de nulidade, e foi isto que o Papa Francisco alterou recentemente.

Há somente algumas poucas razões pelas quais se pode imaginar que a Eucaristia tenha sido nula: ou o padre era um falso sacerdote, ou a hóstia era feita de alguma coisa outra que trigo (digamos, mandioca), ou o sacerdote queria não consagrar no momento em que proferiu as palavras da Consagração; além dessas hipóteses é difícil imaginar outras muito diferentes. O Matrimônio, por ser um contrato jurídico, é um pouco mais complicado. A partir do cânon 1073 do Código de Direito Canônico encontra-se uma longa lista de razões pelas quais um Matrimônio pode ser invalidamente contraído — i.e., não existir. À guisa de exemplificação:

  • não podem contrair matrimônio válido os homens antes dos dezesseis anos completos nem a mulher antes dos catorze também completos (Cân.1083);
  • os que tenham recebido ordens sacras também não conseguem casar (Cân. 1087);
  • não podem casar os que possuem parentesco em linha reta, em qualquer grau (Cân. 1092);
  • aqueles que “por causas de natureza psíquica não podem assumir as obrigações essenciais do matrimônio” também são incapazes de o contrair (Cân. 1095);
  • quem é enganado acerca de “qualidade da outra parte que, por sua natureza, possa perturbar gravemente o consórcio da vida conjugal” também não casa validamente (Cân. 1098);
  • é também “inválido o matrimônio celebrado por violência ou por medo grave (…) para se libertar do qual alguém se veja obrigado a contrair matrimônio” (Cân. 1103);
  • se o sacerdote que vai assistir o Matrimônio não é o pároco, então precisa de delegação, sob pena de o matrimônio não ser validamente contraído (Cân. 1108);
  • etc.

Qualquer uma dessas situações, presentes no momento em que se celebrava o Matrimônio, são capazes de fazer com que ele tenha sido inválido; há que se verificar, por exemplo, se o impedimento estava presente, se podia ser dispensado, se de fato o foi. É para responder a estas perguntas que existe o procedimento de investigação de nulidade matrimonial dentro da Igreja Católica. Ele não tem nada a ver com mudar a realidade do casamento — se o casamento foi válido então ele permanecerá válido para sempre e, se foi inválido, também nunca será um matrimônio até que os defeitos sejam sanados –, mas sim com conhecer a verdadeira natureza de uma união exteriormente parecida com um casamento católico (como, insista-se na comparação que parece elucidativa, uma hóstia não-consagrada é exteriormente parecida — indistinguível até — de uma que seja o Corpo do Senhor).

Em suma, à semelhança do que ocorre com a Eucaristia, também o Matrimônio pode ser inválido. Estes “casamentos” nunca foram casamentos antes da atual reforma do Papa Francisco, e continuariam sem o ser ainda que nada tivesse mudado nos processos de nulidade.

Portanto,

i) todo casamento validamente contraído é indissolúvel (há a exceção do privilégio petrino para os matrimônios ratos e não consumados, mas não cabe entrar em detalhes aqui; até porque os casos aos quais ele é aplicável — onde não houve consumação, i.e., conjunção carnal — são por si mesmos excepcionais);

ii) nem tudo o que externamente parece um casamento é um casamento de verdade;

iii) é através do “processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio” que a Igreja se pronuncia a respeito da validade ou nulidade de um Matrimônio;

iv) um casamento que tenha sido nulo jamais existiu;

v) a existência ou inexistência do vínculo matrimonial é independente do processo pelo qual a sua nulidade é conhecida (i.e., um casamento nulo é nulo ainda que nunca venha a receber uma sentença de nulidade, e inversamente um matrimônio verdadeiro é verdadeiro matrimônio ainda que o processo canônico afirme ter ele sido inválido).

Não há lugar para a dissolução do vínculo conjugal por poder terreno algum: isto a Igreja sabe muito bem. Desde Cristo até os tempos de Henrique VIII, e de lá até os dias de hoje, e até a consumação dos séculos. Mas há, sim, espaço para a investigação honesta e sincera a respeito da verdade das coisas. Não cabe falar em “dissolver” se o vínculo já não existe em primeiro lugar. As mudanças recentes feitas pelo Papa Francisco dizem respeito aos meios de investigação daquela nulidade capaz de fazer com que nunca tenha havido Matrimônio de verdade. Nem todo mundo que vive junto está realmente casado; e reconhecê-lo em nada atinge a indissolubilidade do casamento verdadeiro.