O mundo velho e o vinho novo

Vi no Facebook uma chamada do pe. Kramer para a homilia que o Papa Francisco proferiu ontem na Casa Santa Marta. E vi-a sob um viés profundamente negativo: o sacerdote citava o texto dizendo que a preleção pontifícia era uma inversão do ensino católico. Os papas sempre haviam ensinado que era preciso não inovar, mas seguir a tradição; o Papa Francisco, ao contrário, dizia que — para usar a manchete do Catholic Family News — aqueles que resistem às mudanças são rebeldes obstinados e idólatras, e são culpados de “divinização”!

Eu imediatamente apontei um distinguo: do fato de se deverem evitar as inovações na Doutrina não segue que toda inovação seja execrável, por um lado, e, pelo outro, a condenação do Papa aos que “resistem às mudanças” não abarca por si só os que resistem contra mudanças doutrinárias. Trata-se, claramente, da célebre dicotomia entre a Doutrina e a expressão da Doutrina (ou melhor, em um sentido mais amplo, entre os aspectos doutrinários e os não-doutrinários da vida cristã) que eu já pincelei aqui no blog quando Bergoglio nem sonhava em ser Papa.

Ainda: a meditação pontifícia centra-se em condenar aqueles que justificam as suas atitudes por meio do «sempre si è fatto così!» — sempre se fez assim. Se por um lado eu claramente percebo como um rad-trad possa vestir esta carapuça, por outro lado não é possível admitir que lhe assista razão em sua queixa. Isto por uma razão muito simples: não seguimos o Cristianismo porque entre nós “sempre se fez assim”, mas sim porque o Cristianismo é a Religião Verdadeira! Há sem dúvidas muita nobreza em respeitar as tradições da família e da pátria, mas isso não é, absolutamente, um valor em si mesmo. É pelo fato de o Cristianismo ser verdadeiro que os que nos antecederam o preservaram, e não por ele ter sido preservado que é verdadeiro. Esta ordem, aqui, é absolutamente fundamental, e desconsiderá-la é equiparar o Cristianismo aos antigos pagãos — afinal, também eles honravam os deuses dos seus antepassados…

Na meditação do Papa Francisco, assim, não há nenhuma condenação às coisas antigas — à «tradição» defendida de S. Clemente a Bento XV — pelo simples fato de serem antigas, no que se poderia interpretar como um desejo desordenado por mudanças, uma sede de inovações (inclusive Sua Santidade o diz com todas as letras: «cosa significa questo, che cambia la legge? No!»); como não há também censura alguma, note-se, simplesmente aos que àquelas coisas aderem. Não se critica o amor ao passado; critica-se, isto sim, o desdém pelo presente. Trata-se de uma diferença muito grande e muito importante, porque se por um lado ninguém pode abandonar o passado, por outro a ninguém é lícito — salvo talvez vocações especialíssimas — fugir do presente.

Ora, nós não somos espíritos desencarnados vagando a esmo por uma dimensão etérea, alheios ao mundo dos homens e às suas contingências; não. Somos seres humanos dotados de alma e corpo — de um corpo que se encontra geograficamente delimitado e também historicamente situado. Aprouve à Divina Providência que nós vivêssemos em um lugar concreto e em um tempo determinado. Cada um de nós é chamado a viver a sua vida da melhor forma, e isso significa viver o presente por duro que ele seja. Se Deus nos pôs neste mundo atual, com todos os seus problemas e todas as suas dificuldades, é este mundo atual, doente e falho, que somos chamados a converter ao Evangelho — e é neste mundo, com todas as suas vicissitudes, que temos que nos santificar. Não há outra opção.

Sempre si è fatto così é uma forma de dizer “nunca se fez de outra maneira”; mas outras maneiras podem ser necessárias para novas situações e, neste sentido, dizer que nunca se fez diferente equivale a queixar-se de que o mundo nunca foi como é hoje. Ora, mas essa é uma queixa absurda e sem sentido. Deus nos chama a pelejar contra os inimigos atuais, e não temos o direito de murmurar que a Cristandade nunca os viu tão pérfidos e tão numerosos, que a Igreja jamais os enfrentou tão vis e tão cruéis. Devemos fazer guerra incansável contra os inimigos à frente dos quais nos coloca a Providência! Que eles não tenham sido jamais enfrentados antes é um detalhe que deve preocupar somente pagãos. Não nos exime do combate.

O mundo está velho e não suporta mais o vinho novo do Evangelho. E não temos o direito de desperdiçar a Sã Doutrina despejando-a em vasos rotos — falando a ouvidos moucos — sob a escusa de que sempre se fez dessa maneira, quando os odres não estavam tão estragados, quando os homens ainda eram capazes de ouvir. Se os odres estão imprestáveis, se os homens ensurdeceram, exigem-se novas maneiras de lhes fazer chegar à alma a Boa Nova da Salvação. Cabe a nós, servos inúteis, fazer o que for necessário — ainda que nunca se tenha feito antes — para o cumprimento deste dever.

Kardec e Talião

Está rolando um interessante debate nos comentários de um texto do Deus lo Vult! do mês passado, sobre espiritismo e catolicismo. Trago de novo o assunto à baila só para fazer algumas considerações ligeiras sobre Justiça, Misericórdia y otras cositas más.

Antes de qualquer coisa, salta aos olhos como os espíritas – muito provavelmente sem perceberem – aplicam com uma extrema rigidez a Lex Talionis que criticam no Velho Testamento, elevando-a contudo a patamares inacreditáveis. “Olho por olho, dente por dente” – muitos consideram isso bárbaro e desumano. No entanto, os espíritas aplicam o mesmíssimo princípio a todas as coisas que acontecem no mundo e pensam com isso resolver o problema do mal!

Como responde um espírita à pergunta “por que sofro”? Ele diz “sofro porque, em uma vida passada, eu fiz alguém sofrer”. Olho por olho, dente por dente, dor por dor: esta é a Doutrina Espírita. A tal “lei da causa e efeito” com sua mecanicidade só confere um status metafísico à lei de Talião, que passa a ser absoluta e implacável. “Nenhum mal causado fica impune”. Se Talião é desumano e inaceitável, muito mais inaceitável é este “super-Talião” onipresente que os espíritas acreditam ser Deus.

Não há espaço para o perdão na Doutrina Espírita, por causa da lei acima. Se eu causei um mal, eu vou precisar sofrer um mal “equivalente” para poder lavar a minha alma da mancha da culpa adquirida. Se não for nesta vida, será numa próxima. E, com isso, julgam explicados os problemas do mundo… mas a que preço? Por acaso viver em um mundo nestes moldes é reconfortante? Por acaso isto é “Justiça”?

Além deste “talionismo espiritual”, os espíritas acreditam em um igualitarismo totalmente ilógico. A parábola do administrador que dá “a um, cinco talentos; a outro, dois talentos; e a outro, um talento” simplesmente não cabe na lógica espírita. Provavelmente eles vão explicar a diferença de tratamento entre os empregados do patrão com base em uma “vida pretérita” deles. Eles não aceitam que Deus possa dar a um mais do que a outros – mesmo quando Nosso Senhor, a Quem eles têm por “mestre”, por diversas vezes deu mostras claras e inequívocas de agir com desigualdade. Oras, por que algumas pessoas nascem com saúde, outras com saúde e dinheiro, outras com saúde, dinheiro e beleza, etc? Por que o administrador dá um talento a um, a outro dois, a outro cinco? Acaso é injusto o administrador? Acaso Deus é injusto quando distribui os Seus bens da maneira como Lhe apraz?

E quanto aos trabalhadores da última hora (Mt 20, 1-16)? Que trabalharam somente uma hora e ganharam exatamente a mesma coisa que os que suportaram “o peso do dia e do calor”? Mas é precisamente a este “pai de família”, a quem é permitido fazer dos seus bens o que lhe apraz, que o Reino dos Céus é comparado. Onde fica o igualitarismo espírita? Por que, então, o sujeito que se arrepender na hora da morte vai entrar no mesmo Reino dos Céus onde a outra pessoa que passou a vida toda sendo temente a Deus também estará? Nosso Senhor já respondeu a estas questões! Elas só são difíceis para quem acredita que Talião é o Senhor do Universo, e que as coisas são regidas por um mecanicismo igualitário cego e impessoal. Crêem em Deus os espíritas? Por certo, não no mesmo Deus que eu creio.

O Cristianismo tem o mérito de dar valor ao sofrimento. Mas não como na Doutrina Espírita – o sofrimento não é uma “punição” por pecados de vidas passadas, mas sim uma oportunidade de santificação. Nosso Senhor era Justo, nele não havia pecado e, mesmo assim, Ele sofreu – é por isso que o sofrimento humano tem valor. Ele foi “divinizado” quando Deus tomou as nossas dores. Ele foi o preço da nossa Redenção; é por meio do sofrimento, então, que se alcança o Reino dos Céus, não na lógica talionesca espírita, mas na lógica da gratuidade do Amor Divino. O problema do mal só encontra sentido na Cruz de Nosso Senhor – é para Ela que os espíritas deveriam olhar, ao se questionarem sobre os males do mundo. Infelizmente, eles preferiram olhar para a Lei de Talião. São tão poucos os pontos em comum entre a doutrina de Kardec e a de Nosso Senhor Jesus Cristo, que somente com um olhar totalmente superficial é possível julgá-las parecidas ou mesmo compatíveis.