O governo brasileiro e o Sínodo Pan-Amazônico

A existência de um Sínodo Especial para a Amazônia a ser realizado em outubro próximo não é — ou pelo menos não deveria ser — novidade para ninguém. Fala-se sobre o assunto há anos. O Papa Francisco anunciou solenemente a assembleia em outubro de 2017, avisando já à época que a convocação se dava em resposta aos pedidos que lhe haviam sido feitos por conferências episcopais latino-americanas. Tem vídeo:

Não é um sínodo que vai acontecer na Amazônia, com bispos do mundo inteiro viajando para o Brasil. Não tem nada a ver com isso. É uma assembleia do Sínodo dos Bispos, aquela “instituição permanente criada pelo Papa Paulo VI (15 de setembro de 1965) em resposta aos desejos dos Padres do Concílio Vaticano II para manter vivo o espírito de colegialidade nascido da experiência conciliar”. É o mesmo Sínodo que já se reuniu em anos recentes para falar, por exemplo, sobre a família em 2015 ou sobre a juventude em 2018.

Em outubro deste ano vai ocorrer a Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Pan-Amazônia. O nome “Sínodo da Amazônia”, assim, não se refere a uma reunião de bispos brasileiros que terá lugar na Amazônia. É uma reunião de bispos do mundo inteiro que acontecerá em Roma (onde sempre ocorrem as assembleias do Sínodo dos Bispos) para falar sobre a Amazônia.

É, portanto, de causar espécie que o primeiro escalão do Governo Federal venha a público dizer que quer “neutralizar isso aí” (!), alegando questões de soberania nacional e alertando para o recrudescimento do “discurso ideológico da esquerda” (!). A notícia é absurdamente surreal. O que cargas d’água o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República do Brasil tem a ver com uma assembleia de bispos católicos marcada para acontecer na Itália? Quem o General Augusto Heleno pensa que é para dizer ao Papa em Roma o que ele pode ou não pode discutir?

O encontro não acontecerá em território brasileiro, não havendo assim qualquer risco às fronteiras do país ou à soberania amazônica. Se o Governo Brasileiro quisesse somente impedir os bispos brasileiros de participarem do encontro, isso já seria de um autoritarismo intolerável, comparável apenas às mais odiosas ditaduras comunistas. Mas é ainda pior, porque não se fala em sanções a cidadãos brasileiros — os quais, em tese ao menos, seriam passíveis de receber punições do Estado Brasileiro. Mas não é isso. Dizendo simplesmente que quer “neutralizar isso aí”, fica parecendo que o Governo quer impedir cidadãos estrangeiros em um país estrangeiro de conversarem sobre o Brasil. Isso deixa de ser odioso para ser francamente ridículo.

Com todas as críticas que possam ser feitas ao Sínodo Pan-Amazônico, é preciso ter senso de prioridades. É totalmente inadmissível que um órgão governamental queira pautar as discussões de uma instituição eclesiástica. Um militar arvorar-se “bispo do exterior” para influenciar uma assembleia sinodal é um acinte e um ultraje, que exige repúdio vigoroso e imediato. Alguém precisa avisar ao General Augusto Heleno que ele não é Constantino.

Isso independe por completo das reais motivações por trás da convocação do Sínodo ou dos resultados que dele se esperam. Este blogueiro acredita sinceramente que a assembleia será na melhor das hipóteses inócua; o mais provável é que seja trágica. O documento preparatório não fala em diaconato feminino nem em ordenação de homens casados, por exemplo, mas ambos os temas já foram abertamente tratados pelo episcopado progressista. Se estas medidas não forem energicamente rejeitadas pelos Padres Sinodais, se o Sínodo deixar qualquer mínima brecha pela qual elas possam se insinuar na vida eclesial, poder-se-ão perder algumas gerações de católicos até que a confusão venha a ser desfeita.

O assunto é sério e é grave, o momento pede orações e pede trabalho diligente na promoção da Doutrina da Igreja e no combate ao anti-catolicismo que tenta se insinuar nas instituições eclesiásticas. Ninguém é ingênuo. Mas nem mesmo assim é possível admitir ingerência estatal nas coisas da Igreja. Ainda que o Imperador esteja correto e os Bispos estejam errados, aquele acerto e este erro serão sempre eventuais e contingentes, absolutamente acidentais, e por isso não se pode aceitar como algo lícito que César mova o braço secular contra a Igreja de Nosso Senhor. Isso não se pode admitir de maneira alguma e, neste tema, católico algum pode sequer titubear.

Não importa que o mesmo seja dito pelos inimigos do Cristianismo. Eles o dizem por malícia e com insinceridade; nós o dizemos por amor à Igreja e com toda a convicção de nossas almas. A verdade é verdade de onde quer que venha. Independente do uso que façam dela.

Os contraceptivos e a Zika

O grande Paulo VI, na sua conhecida encíclica Humanae Vitae, estabeleceu o seguinte ensinamento lapidar: “[é] de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” (HV 14). Não satisfeito, antevendo talvez as objeções que porventura lhe pudessem fazer, o Servo de Deus continua assim o seu arrazoado:

Não se podem invocar, como razões válidas, para a justificação dos atos conjugais tornados intencionalmente infecundos, o mal menor (…). Na verdade, se é lícito, algumas vezes, tolerar o mal menor para evitar um mal maior, ou para promover um bem superior, nunca é lícito, nem sequer por razões gravíssimas, fazer o mal, para que daí provenha o bem; isto é, ter como objeto de um ato positivo da vontade aquilo que é intrinsecamente desordenado e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo se for praticado com intenção de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares, ou sociais [id. ibid.].

Esta encíclica não diz diretamente que a contracepção é intrinsecamente má. Quem o faz é S. João Paulo II na Veritatis Splendor (n. 80). O que são atos intrinsecamente maus? São aqueles — ainda S. João Paulo II — que são maus “sempre e por si mesmos, ou seja, pelo próprio objecto, independentemente das posteriores intenções de quem age e das circunstâncias” (id. ibid.). Aliás, vale a pena a leitura dos parágrafos desta encíclica que falam sobre o tema: os nn. 79-83 e 95-97 ajudarão a conhecer com mais clareza a posição da Igreja sobre o assunto. Em suma, não é legítimo, “nem sequer por razões gravíssimas”, tornar um ato conjugal intencionalmente infecundo — independente das circunstâncias em que se encontre o agente (e.g. às voltas com um surto de uma moléstia incurável) e das intenções que ele porventura tenha (evitar que um filho nasça gravemente doente, v.g.).

[Existe, talvez, uma discussão teologicamente legítima que se pode fazer a respeito da posição católica contrária à contracepção: é a que indaga se o Magistério versa sobre todo e qualquer ato sexual, em qualquer contexto, ou se fala especificamente a respeito do ato conjugal entre esposos legitimamente casados. Pode-se encontrar aqui uma discussão a este respeito. A argumentação é pertinente porque, em se tratando da fornicação — da prática do ato sexual fora do casamento, entre solteiros — tão desgraçadamente comum nos dias de hoje, não é claro se o uso do preservativo agrava ou não o pecado (que, lembremo-nos, já é mortal). De qualquer maneira, não se discute (obviamente) se existe alguma situação em que o uso dos contraceptivos seja legítimo, mas sim se há alguma que o Magistério não abrangeu. São duas coisas completamente distintas, mas a questão tem a sua relevância prática, quando menos, para responder à acusação estapafúrdia de que a Igreja, condenando a camisinha, é responsável (v.g.) pelos altos índices de gravidez na adolescência. Tal é um completo nonsense (afinal, a Igreja condena os atos sexuais fora do Matrimônio, e não apenas “a camisinha”), contra o qual, por frustrante que seja, o baixo nível do anti-catolicismo contemporâneo obriga-nos por vezes a nos batermos.]

Coletiva do Papa aos jornalistas durante o voo de retorno do México deixou perplexos católicos e não-católicos por conta de uma resposta estranha que Sua Santidade deu a uma pergunta a respeito da Zika, do aborto e da contracepção. Ei-las, pergunta e resposta, na íntegra (grifos da RV):

(Paloma Garcia Ovejero, “Cope”)

Santo Padre, há algumas semanas há muita preocupação em muitos países latino-americanos, mas também na Europa, sobre o vírus “Zika”. O risco maior seria para as mulheres grávidas: há angustia. Algumas autoridades propuseram o aborto, ou de se evitar a gravidez. Neste caso, a Igreja pode levar em consideração o conceito de “entre os males, o menor”?

Papa Francisco: O aborto não é um “mal menor”. É um crime. É descartar um para salvar o outro. É aquilo que a máfia faz, eh? É um crime. É um mal absoluto. Sobre “mal menor”: mas, evitar a gravidez é – falemos em termos de conflito entre o quinto e o sexto Mandamento. Paulo VI, o Grande!, em uma situação difícil, na África, permitiu às religiosas de usar anticoncepcionais par aos casos de violência. Não confundir o mal de evitar a gravidez, sozinho, com o aborto. O aborto não é um problema teológico: é um problema humano, é um problema médico. Mata-se uma pessoa para salvar uma outra – nos melhores dos casos. Ou por conforto, não? Vai contra o Juramento de Hipócrates que os médicos devem fazer. É um mal em si mesmo, mas não é um mal religioso, ao início: não, é um mal humano. Além disso, evidentemente, já que é um mal humano – como todos assassinatos – é condenado. Ao invés, evitar a gravidez não é um mal absoluto: e, em certos casos, como neste, como naquele que mencionei do Beato Paulo VI, era claro. Ainda, eu exortaria os médicos para que façam tudo para encontrar as vacinas contra estes dois mosquitos que trazem este mal: sobre isto se deve trabalhar. Obrigado.

Não há reparos a serem feitos no que diz respeito ao aborto, penso, uma vez que a sua condenação está bastante clara e enfática; prestemos atenção no que concerne à contracepção.

Primeiro, que evitar a gravidez não é um mal absoluto. Verdade. A própria HV citada ensina que, havendo “motivos sérios para distanciar os nascimentos, que derivem ou das condições físicas ou psicológicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores” (HV 16), é lícito “regular a natalidade”. Mas, atenção!, que isto não se pode fazer de qualquer modo: o que é lícito é “ter em conta os ritmos naturais imanentes às funções geradoras, para usar do matrimônio só nos períodos infecundos” (id. ibid.). Uma epidemia de Zika é motivo suficientemente grave para espaçar o nascimento dos filhos? Sim, é. Isso significa que, em tais circunstâncias, um casal pode legitimamente recorrer aos “períodos infecundos” para não engravidar.

Segundo, a história de Paulo VI e as freiras. Aqui o negócio fica mais nebuloso; parece que ninguém conseguiu encontrar uma referência primária a este fato. O pe. Z., aliás, afirma, altissonante, que isso é uma mentira e Paulo VI jamais deu permissão alguma para que freiras usassem contraceptivos; houve um artigo, publicado no início da década de 60, onde esta hipótese era aventada, e nada mais. Há referências esparsas a coisas parecidas com isso (por exemplo, o pe. Cullinane afirma, num panfleto, que há um decreto do Santo Ofício com este teor na época de Pio XII), mas nada capaz de dirimir a questão.

Se a materialidade da história é — pra dizer o mínimo — controversa, o seu conteúdo não é mais cediço. Del Greco ensina que é lícito à mulher violentada expulsar do seu corpo o sêmen do estuprador, e que isto se deve considerar como legítima defesa; no entanto, parece que este uso “defensivo” dos anticoncepcionais não tem sido tão pacificamente aceito pelas autoridades vaticanas como dá a entender a entrevista pontifícia. Na década de 90, já sob S. João Paulo II, a Santa Sé proibiu a pílula mesmo para freiras que, missionárias em zona de guerra, corriam risco de estupro. Roma, portanto, non locuta, e esta causa não se pode pretender finita.

Terceiro, por fim, a ilação anticatólica — que, malgrado o Papa não diga com estas exatas palavras, os meios de comunicação do mundo inteiro foram praticamente unânimes em alardear — de que é lícito usar contraceptivos durante o surto de Zika para evitar o nascimento de crianças com microcefalia. Sobre isso, é preciso dizer

i) que a situação das freiras na África aparentemente não guarda semelhança alguma com a de pessoas tendo relações sexuais livres e consentidas em um país da América Latina afligido pela Zika: no primeiro caso há a violência que permite aventar a hipótese da legítima defesa e, no segundo, não;

ii) que, portanto, para que se possa discutir a possibilidade de se usar contraceptivos como no (suposto) caso de Paulo VI, é preciso que se esteja diante de uma situação que lhe seja minimamente análoga — é o que faz o National Catholic Register, ao aventar o exemplo de uma mulher que é constrangida, pelo marido doente de Zika, a ter relações sexuais com ele;

iii) que o Pe. Lombardi, comentando a entrevista, disse que o uso dos contraceptivos só poderia ser objeto de deliberação da consciência em casi di particolare emergenza e gravità — casos de particular emergência e gravidade –, o que parece ir ao encontro do que NCR publicou; por fim,

iv) que independente de tudo isso permanece integralmente válido o ensino tradicional da Igreja, contido no Magistério de — entre outros — Paulo VI e S. João Paulo II, segundo o qual o uso de contraceptivos não é legítimo nem “mesmo se for praticado com intenção de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares, ou sociais” (HV).

Evidentemente o aborto é um pecado mais grave que a contracepção; claro que peca mais quem tira a vida de um ser humano inocente do que quem torna um ato sexual intencionalmente infecundo. Esta diferença de gravidade entre os pecados, no entanto, não tem o condão de “justificar” o pecado menos grave, que continua sendo pecado, e pecado grave, é bom lembrar. Nunca é lícito fazer o mal para que dele provenha o bem; tendo lembrado Paulo VI no avião, o Papa Francisco bem que poderia ter-lhe citado esta frase — esta, sim, de cuja autoria não há dúvidas, e cuja doutrina é certa e segura.

Siamo tutti conigli

conigli

Certas verdades são bastante óbvias para serem problematizadas. É bastante evidente que homens são criados à imagem e semelhança de Deus e, únicos seres no mundo sensível dotados de inteligência e vontade, possuem uma dignidade intrínseca que os coloca a uma distância virtualmente infinita dos animais irracionais – inclusive dos coelhos. É óbvio, portanto, que não são coelhos os seres humanos em geral e nem muitíssimo menos os católicos em particular.

Uma outra coisa que é evidente para além de toda a evidência é que a Igreja Católica possui uma doutrina peculiar e bem conhecida a respeito da contracepção, segundo a qual – na conhecida formulação da Humanae Vitae – é “de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” (HV 14). E à Igreja, Mestra infalível em Fé e Moral, pode-se até acusar de ser pretensiosa; jamais, no entanto, de ser incoerente consigo mesma. Admitindo que a um observador externo seja legítimo perguntar se o ensinamento católico é verdadeiro ou falso, uma sua característica ninguém pode negar: ele é incomodamente constante.

Causou certo frisson a última declaração do Papa Francisco, segundo o qual católicos não devem se reproduzir como coelhos. Ora, trata-se de verdadeira evidência. É lógico que os católicos não devem se reproduzir “como coelhos”, e sim como filhos de Deus – a quem foi dirigido aquele mandato de “crescei e multiplicai-vos”. Não foi aos coelhos que Deus ordenou encher a terra e a submeter, e sim aos homens! Cumpre, pois, a estes procriar como convém à sua dignidade – que é muito maior, repita-se, do que a dos coelhos.

Ainda, simplesmente não é possível aos católicos reproduzirem-se como os simpáticos leporídeos. Isso porque, como disse Chesterton em certa ocasião, um homem nunca age igual a um animal: ou age de modo muito superior a ele, quando se comporta como homem; ou, então, muito inferior a ele, quando se esquece de sua dignidade e age de maneira irracional, instintiva, animalesca. Os seres humanos, portanto, jamais se reproduzem como animais: caso se esqueçam de que são homens, então agirão de maneira muito mais baixa, vil e degradante do que os pobres coelhos. E uma das formas de se esquecerem de que são homens está, precisamente, na busca irresponsável e egoísta pelo prazer venéreo em si mesmo, que é marca registrada dos dias de hoje. Um homem que viva praticando relações sexuais “casuais” e sem compromisso está agindo muito mais como um animal no cio do que outro, que tenha com a sua esposa um número de filhos maior do que a nossa sociedade decadente julga “conveniente”.

Houve quem pensasse que, com a sua declaração sobre coelhos, o Papa Francisco estivesse a legitimar de algum modo o controle de natalidade. Tal é insustentável por um sem-número de razões. Em primeiro lugar, como disse um santo – recente! – da Igreja, “são criminosas, anti-cristãs e infra-humanas, as teorias que fazem da limitação da natalidade um ideal ou um dever universal ou simplesmente geral” – e o Papa, que já se disse outras vezes “filho da Igreja”, sabe perfeitamente disso.

Em segundo lugar, a doutrina da Igreja a respeito da natalidade encontra-se, por excelência, na citada Humanae Vitae de Paulo VI. E o que já disse o Papa Francisco a respeito do seu predecessor? Em duas ocasiões recentes:

1. No “Encontro das Famílias” praticamente da véspera (sexta, 16 de janeiro): “Num período em que se propunha o problema do crescimento demográfico, [Paulo VI] teve a coragem de defender a abertura à vida na família. (…) Mas ele olhou mais longe: olhou os povos da terra e viu esta ameaça da destruição da família pela falta de filhos. Paulo VI era corajoso, era um bom pastor e avisou as suas ovelhas a propósito dos lobos que chegavam. Que ele, lá do Céu, nos abençoe nesta tarde! O nosso mundo tem necessidade de famílias sãs e fortes para superar estas ameaças. As Filipinas precisam de famílias santas e cheias de amor para proteger a beleza e a verdade da família no plano de Deus e servir de apoio e exemplo para as outras famílias. Toda a ameaça à família é uma ameaça à própria sociedade”.

2. No próprio vôo onde foi feita a declaração “polêmica” dos coelhos (tradução do Fratres, aqui): “O que eu quero dizer sobre Paulo VI é que a verdadeira abertura à vida é condição para o sacramento do matrimônio. Um homem não pode dar o sacramento para a mulher, e a mulher dar para ele, se eles não estão em concordância neste ponto de estarem abertos à vida. […] Mas o que eu queria dizer era que Paulo VI não era muito antiquado, mente fechada. Não, ele era um profeta que com isso nos disse para tomarmos cuidado com o neo-malthusianismo que vem chegando. Era isso o que eu queria dizer”.

Ora, quem é Paulo VI? É o Papa da condenação ao controle de natalidade. O que é “abertura à vida”? É a atitude de um casal receber generosamente os filhos que a Divina Providência julgar por bem lhe confiar. O que é “neo-malthusianismo”? É a doutrina que prega uma superpopulação atual, com a consequente necessidade de reduzirmos as nossas taxas de natalidade. Como é possível, então, que um Papa que louva o campeão da causa católica anti-contracepção, que relembra aos casais que eles devem – sob pena de nulidade matrimonial! – estar dispostos a receber os filhos que Deus lhes enviar, que manda tomar cuidado com a estória de que estamos vivendo em uma superpopulação a nos exigir controle de natalidade – como é possível, em suma, que um homem desses esteja, justo ele!, fazendo coro aos inimigos da Igreja e condescendendo à mentalidade antinatalista que ele próprio, por todos os flancos, se esmera em desconstruir? Que sentido isso faz?

Em terceiro lugar, no seio da própria entrevista concedida no vôo, apenas por duas vezes o Papa Francisco fala em números de filhos:

  • “Conheci uma mulher há alguns meses numa paróquia que estava grávida de sua oitava criança, que tinha tido sete cesárias. Mas ela quer deixar 7 filhos órfãos? Isso é tentar a Deus.”
  • “Eu acho que o número de 3 filhos por família que você mencionou – me faz sofrer – eu acho que é o número que os especialistas dizem ser importante para manter a população “indo”. Três por casal. Quando isso diminuiu, o outro extremo acontece. Ouvi dizer, não sei se é verdade, que em 2024 não haverá dinheiro para pagar pensionistas por causa da queda na população.”

Ou seja, se existisse algum limite concreto que o Papa estivesse tentando determinar para os católicos – coisa que não há e nem pode haver; mas o imaginemos, para argumentar – tal seria um limite mínimo de três, e não máximo de nada. Ora, isso vai muito longe do que o mundo pagão entende por “responsabilidade” familiar!

Em quarto lugar, por fim, porque há não muito tempo – há menos de um mês – o Papa Francisco dirigiu um discurso à Associação Nacional das Famílias Numerosas. Ora, trata-se de pronunciamento com um objetivo específico e previamente preparado; portanto, a mais mínima honestidade intelectual há de reconhecer ser ele mais fidedigno – para entender o pensamento do Papa a respeito da natalidade católica – do que as sabatinas feitas num voo de retorno após uma viagem de uma semana na Ásia. E, no citado discurso, é possível ler – entre outras coisas – o quanto segue:

  • [O]s filhos e as filhas de uma família numerosa são mais capazes de comunhão fraterna desde a primeira infância. Num mundo muitas vezes marcado pelo egoísmo, a família numerosa é uma escola de solidariedade e de partilha; e destas atitudes beneficia toda a sociedade.
  • A presença das famílias numerosas é uma esperança para a sociedade.
  • Portanto espero, também pensando na baixa taxa de natalidade que desde há tempos se regista na Itália, uma maior atenção da política e dos administradores públicos, a todos os níveis, a fim de dar o apoio previsto a estas famílias. Cada família é célula da sociedade, mas a família numerosa é uma célula mais rica, mais vital, e o Estado tem todo o interesse em investir nela!
  • A este propósito, são João Paulo II escrevia: «As famílias devem crescer na consciência de serem protagonistas da chamada política familiar e assumir a responsabilidade de transformar a sociedade: de outra forma, as famílias serão as primeiras vítimas daqueles males que se limitaram a observar com indiferença» (Exort. ap. Familiaris consortio, 44).

Esta é, em suma, a posição de Paulo VI, de S. João Paulo II, de S. Josemaría Escrivá, do Papa Francisco, a respeito do “controle de natalidade”. Esta é a resposta de generosidade que somos chamados a dar ao mundo. Esta é a vida que a Igreja nos chama a viver. E a viveremos, por mais que se levantem contra nós as forças do mundo.

Quanto aos coelhos, que incendiaram a polêmica, há (pelo menos) duas possíveis comparações a respeito deles que é possível fazer. Por um lado, podem simbolizar o sexo irresponsável, animalesco, no cio, fugaz, instintivo: e, neste sentido, é preciso repetir fortemente, com o Papa Francisco, que evidentemente não podemos – ninguém pode! – procriar como coelhos! No entanto, os coelhos também são símbolo universal da fertilidade, de uma prole numerosa, de filhos como rebentos de oliveira ao redor de uma mesa – de uma mesa cheia de crianças. E, neste outro sentido, é preciso ter a coragem de dizer, ousadamente, com os santos, com os Papas, com a Igreja, contra quem quer que seja, che, sì, siamo tutti conigli – somos todos coelhos. Apraza a Deus que o sejamos.

O Sínodo e o homossexualismo: Papa Francisco e o Beato Paulo VI

Como parece que não há até agora nenhuma tradução, oficial ou oficiosa, para nenhuma língua civilizada afora o italiano, do relatório final do Sínodo dos Bispos (no último sábado publicado), ofereço aqui os meus dois tostões com os parágrafos referentes ao homossexualismo:

A atenção pastoral a respeito das pessoas com orientação homossexual

55. Algumas famílias passam pela experiência de possuir, entre seus membros, pessoas com orientação homossexual. A respeito dos que nos interrogam sobre quais cuidados pastorais são oportunos nestas situações, [em resposta] referimo-nos a quanto ensina a Igreja: «Não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogia, nem mesmo remota, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o Matrimônio e a família». Inobstante, os homens e as mulheres com tendências homossexuais devem ser acolhidos com respeito e delicadeza. «Em relação a eles, evitar-se-á todo traço de discriminação injusta» (Congregação para a Doutrina da Fé, Considerações sobre os projectos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais, 4).

56. É totalmente inaceitável que os pastores da Igreja sofram pressões nesta matéria, [bem como] que os organismos internacionais condicionem o auxílio financeiro aos países pobres à introdução de leis que instituam o “matrimônio” entre pessoas do mesmo sexo.

Relatio Synodi, 55-56

Os termos são estes e apenas estes. Não há outros parágrafos; desapareceu toda aquela história de «accettando e valutando il loro orientamento sessuale» e quetais que tanta celeuma provocou na semana passada. No lugar dela, a referência peremptória, clara e cristalina, ao ensino da Igreja: entre as uniões homossexuais e o Matrimônio não é possível estabelecer sequer uma analogia remota. Sumiu a referência às «coppie dello stesso sesso»; em seu lugar, uma referência negativa ao “matrimônio” – com as aspas no original! – «entre pessoas do mesmo sexo», que os organismos sociais não poderiam impôr como condição ao fornecimento de auxílio financeiro aos países pobres.

A mídia, naturalmente, fez o seu burlesco espetáculo: «Vaticano elimina “boas-vindas” a gays em documento final do Sínodo». Uma verdadeira piada. Ora, se as referidas “boas-vindas” forem no sentido de alterar o ensino moral da Igreja, então não as há neste documento final como não havia tampouco no primeiro. Se, ao contrário, trata-se de estar sempre de portas abertas aos pecadores, quaisquer que sejam os seus pecados, então há tantas “boas-vindas” na versão preliminar quanto no relatório definitivo. Em uma palavra: a redação é outra, e a mensagem é a mesma. Contudo, o primeiro texto dava muito mais margem para interpretações tresloucadas do que o último, e portanto é um verdadeiro bálsamo que este tenha saído do jeito que saiu.

E mais: se é regra hermenêutica básica, de qualquer discurso, que as passagens mais ambíguas e vagas sejam interpretadas à luz das mais claras, então o Relatio Synodi determina e especifica o sentido do Relatio post disceptationem na semana passada divulgado. É isso: os parágrafos 50-52 do relatório preliminar diziam exatamente o que eu disse aqui que eles diziam, qual seja,

que os homossexuais «[d]evem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza»; e ainda que, para com eles, «[e]vitar-se-á (…) qualquer sinal de discriminação injusta» (CCE 2358).

Os próprios termos do relatório final foram os que eu usei no post do blog quatro dias antes! Não, isso não significa (necessariamente…) que os cardeais consultam o Deus lo Vult! nas horas vagas para descobrir a melhor forma de redigir um documento eclesiástico. Significa, tão-somente, que o sentido dos textos da Igreja deve ser buscado em referência aos outros documentos correlatos, e não ao desiderato da mídia. Porque a Doutrina Católica, ao contrário dos mass media, não muda ao sabor do momento. Aos incréus perdoa-se que ignorem essas coisas. Os católicos, que temos Fé, não podemos nos prestar a tão deplorável espetáculo.

Uma última coisa: o Papa Francisco beatificou ontem, no Vaticano, o seu predecessor Paulo VI. Na homilia, destacou o seguinte (grifo meu):

Nesta humildade, resplandece a grandeza do Beato Paulo VI, que soube, quando se perfilava uma sociedade secularizada e hostil, reger com clarividente sabedoria – e às vezes em solidão – o timão da barca de Pedro, sem nunca perder a alegria e a confiança no Senhor.

Não sei se todos conhecem em detalhes a dramática história: uma comissão fora instituída, ainda nos tempos de João XXIII, para estudar a doutrina da Igreja referente à contracepção. A expectativa de que a Igreja flexibilizasse o Seu ensinamento, bem como a pressão para que Ela o fizesse, eram então enormes. De fato,

na primavera de 1967, quatro documentos da comissão vazaram e foram publicados em inglês e francês. Estes documentos revelavam que a maioria dos membros estava a favor de mudar o ensinamento tradicional sobre a anticoncepção e que tinham recomendado isso ao Papa.

A imprensa fez uma festa com os documentos que vazaram. Os católicos do mundo inteiro receberam a impressão de que a Igreja preparava uma “mudança em seu magistério” sobre a questão da anticoncepção. Consequentemente, as esperanças e expectativas falsas se fortaleceram.

[…]

Os documentos deixam claro que, desde o começo da expansão de tal comissão, sob o governo papal de Paulo VI, o secretário-geral da comissão, o sacerdote dominicano Henri de Riedmatten, de acordo com outros membros de igual opinião, estava decidido a persuadir o Papa para que mudasse o ensinamento da Igreja (no referente à anticoncepção).

Quando se votou, em 20 de junho de 1966, dos 15 bispos, membros da comissão que estavam presentes, 9 votaram a favor da mudança. Além disso, 12 dos 19 especialistas teólogos apoiaram a mudança, assim como quase todos os conselheiros legais. Tristemente, inclusive o teólogo pessoal de Paulo VI, Dom Carlo Colombo, deixou claro que ele achava que poderia haver métodos anticoncepcionais em consonância com a tradição moral da Igreja.

No entanto, para a maior glória de Deus, o que veio foi a Humanae Vitae. E o resto da história nós já conhecemos.

Será que ela não se repete? Vejo (P.S.: não fui o único e nem o primeiro a vê-lo) um notável paralelo entre a contracepção na década de 60 e o homossexualismo nos dias de hoje, bem como entre as expectativas anteriormente provocadas nos católicos do século passado e estas, que a mídia contemporânea está tão empenhada em semear entre os descendentes daqueles. Haverá o mesmo paralelo entre Paulo VI e o Papa Francisco? A beatificação de ontem me deu essa esperança. Que o novo Servo de Deus possa olhar com particular zelo pela Igreja que ele precisou capitanear “às vezes em solidão”. Que a sua coragem e clarividência inspirem o Papa Francisco; que ele, pela intercessão do Beato Paulo VI, possa ser um timoneiro prudente – ainda que incompreendido… – a guiar a Igreja de Cristo nessas águas tumultuosas dos dias correntes.

A terceira via (*) entre socialismo e capitalismo

[(*) P.S.: Percebi depois que a expressão, mal escolhida, poderia conduzir a dois equívocos (nenhum dos quais escrevi, a propósito, mas cuja possibilidade de serem inferidos a partir da leitura realmente existia, como os comentaristas me fizeram notar), para evitar os quais acho oportuno escrever esta pequena nota prévia:

i) a “terceira via” não está aqui dita como se fosse um “meio-termo” entre o liberalismo e o socialismo, [alegadamente] conjugando o que há de melhor em cada uma das ideologias (v.g. a social-democracia);

ii) a “terceira via” não é a Doutrina Social da Igreja, como se esta fosse um sistema econômico pertencente à mesma categoria do capitalismo ou do comunismo; na verdade, uma vez que a DSI é mais propriamente um conjunto de princípios aos quais se devem adequar quaisquer sistemas político-econômicos concretos que se pretendam compatíveis com o catolicismo, melhor seria falar em “terceiras vias”, no plural, significando com isso quaisquer formas de organização da vida pública que, fugindo aos erros quer do liberalismo individualista, quer do socialismo coletivista, fosse informada pelos ditames da Doutrina Social católica (e, nesse sentido, o próprio distributismo citado nos comentários, se é conforme à DSI, com ela contudo não se identifica, sendo sempre possível conceber um outro pensamento que não seja idêntico ao distributismo mas igualmente respeite o que por aquela Doutrina é apregoado).

Em suma, o que este texto intentava era, simplesmente, apontar para a necessidade – tão amiúde negligenciada – de não se cair em uma defesa irrestrita do capitalismo ao se combater o comunismo (ou vice-versa); e o pretendia fazer sem apontar a social-democracia (de maneira alguma!) como uma solução concreta e sem nem mesmo insinuar que a Igreja tivesse um regime econômico pronto, monolítico e universalmente válido a implantar. Aos que se confundiram com essas coisas, minhas sentidas desculpas.]

Faz muitos anos que li “O problema da liberdade” de Fulton Sheen, mas uma de suas frases ficou-me impressa na memória: segundo o prelado, o liberalismo (capitalismo) queria concentrar a maior parte dos ovos em poucas cestas, o comunismo queria quebrar todos os ovos e espalhar o produto pelas cestas todas e, a Igreja, defendia a distribuição mais justa dos ovos inteiros pelas cestas existentes. Acredito que tenha sido a primeira vez que li um ensaio que defendesse uma terceira via como resposta ao clássico embate entre capitalismo e socialismo. É de se lamentar, no entanto, que a senda aberta pelo arcebispo americano não tenha sido melhor explorada pelos católicos que o sucederam.

No afã – justíssimo – de combater o comunismo, muitas vezes acabamos empurrados para o erro oposto. Não é verdade que o católico precise defender intransigentemente o capitalismo ou mesmo possa ser liberal sem reservas: se é indiscutível que se deve no geral apoiar a economia de livre mercado, não é menos verdade que certa intervenção estatal é exigida para o correto funcionamento das forças econômicas em prol do bem comum. Neste sentido, recomenda-se a leitura dos parágrafos 347-350 do Compêndio de Doutrina Social da Igreja; o qual, alguns parágrafos adiante, termina por sintetizar que «[o] livre mercado pode produzir efeitos benéficos para a coletividade somente em presença de uma organização do Estado que defina e oriente a direção do desenvolvimento econômico» (Compêndio, 353). Isso talvez seja um terror para o libertarianismo puro; no entanto, como se disse acima, o católico não pode ser liberal simpliciter.

O espírito do capitalismo, aliás, segundo Weber, é próprio da ética protestante, para usar o título de sua provavelmente mais famosa obra. Uma das situações narradas pelo sociólogo alemão para explicar a diferença entre conservadores e liberais é bem curiosa. Sob a ótica econômica, incentiva-se a venda de uma mercadoria aumentando-se o valor que por ela se está disposto a pagar: são as leis básicas da oferta e da demanda. Se o trabalho é visto como uma mercadoria, então seria de se esperar que aumentar os salários incentivasse os trabalhadores a trabalharem mais. No entanto, Weber notou que exatamente o oposto disso verificava-se com certos indivíduos: recebendo mais, eles passavam a trabalhar menos, porque passavam a conseguir o mesmo salário de antes com um dispêndio menor de horas de trabalho.

Semelhante mentalidade não é favorável à atividade econômica racional que caracteriza o capitalismo, ou pelo menos não lhe é tão favorável quanto a outra mentalidade daquele que, diante de melhores salários, enxergue nisso mais uma oportunidade de aumentar o pão que de diminuir o suor do rosto. No entanto, é fato sociológico que os nossos – de nós, os católicos – antepassados europeus no geral preferiram trabalhar menos a acumular mais, e isso talvez seja digno de mais atenção do que até agora se lhe tem dispensado. Talvez devêssemos buscar melhores soluções para o problema dos ovos e das cestas, cuja importância não parece ter diminuído nas últimas décadas.

O problema maior que vejo na exaltação ingênua do capitalismo é o seguinte: dada ela, alguém não poderia pretender que o socialismo seja capaz de passar por um processo semelhante ao que atravessou o liberalismo: qual seja, o metamorfosear-se tanto que as razões da censura eclesiástica original deixem de subsistir (ou, pelo menos, transformem-se em elementos acidentais sem cuja presença seja possível a concepção filosófica continuar existindo)? Esta pergunta não pode ser respondida ao modo leviano ao qual as condescendências que atualmente fazemos ao liberalismo podem levar o observador incauto. Em uma palavra: não podemos abraçar tão acriticamente o capitalismo liberal que isso conduza a uma legitimação – ainda que meramente retórica – da adesão ao socialismo “mitigado”. Não é somente verdade que, numa escala de erros, o marxismo está mais alto que o liberalismo; não é uma questão meramente quantitativa. Nessa argumentação [precisa] entra[r] também o fato de que as idéias liberais não podem ser assumidas sem ressalvas. E, nisto, parece-me que temos sido um pouco relapsos.

Na Octogesima adveniens, o Papa nos ensina que, mesmo diante da multiplicidade de formas nas quais o marxismo atualmente se apresenta, «seria ilusório e perigoso mesmo, chegar-se ao ponto de esquecer a ligação íntima que [a]s une radicalmente, e de aceitar os elementos de análise marxista sem reconhecer as suas relações com a ideologia» (OA, 34). No entanto, no parágrafo seguinte é feita uma recomendação análoga no que toca ao liberalismo, à qual infelizmente se tem concedido muito menos importância que à primeira:

Mas, os cristãos que se comprometem nesta linha [da renovação da ideologia liberal] não terão também eles tendência para idealizar o liberalismo, o qual se torna então uma proclamação em favor da liberdade? Eles quereriam um modelo novo, mais adaptado às condições atuais, esquecendo facilmente de que, nas suas próprias raízes, o liberalismo filosófico é uma afirmação errônea da autonomia do indivíduo, na sua atividade, nas suas motivações e no exercício da sua liberdade. Isto equivale a dizer que a ideologia liberal exige igualmente da parte deles um discernimento atento (id. ibid., 35).

Cuidemos, portanto, para não subestimar o Magistério da Igreja, e para que a nossa involuntária aquiescência seletiva não induza outras pessoas a preterirem o ensino católico seguro em favor das doutrinas da moda. A resposta ao problema da liberdade não está em nenhuma das ideologias que assolaram o mundo das revoluções burguesas para cá. No nosso labor apologético, é preciso dar mais ênfase à terceira via entre socialismo e capitalismo que a uma – extemporânea e muitas vezes errônea – defesa demasiado crédula do liberalismo contemporâneo.

O que fazer com as ambigüidades do Vaticano II?

Alguém me pergunta (na verdade, simplesmente anuncia em tom triunfal):

Essa vai para os conservadores populares:

Walter Kasper admite aquilo que todos os católicos verdadeiros já sabiam:

O documentos do Vaticano II foram de propósitos escritos de forma ambígua!

Refere-se a este texto: Cardeal Kasper admite ambigüidade intencional nos textos do Concílio Vaticano II. A declaração do purpurado é a seguinte (grifos do Fratres):

Em muitos lugares, [os Padres Conciliares] tiveram que encontrar fórmulas de concessões, em que, frequentemente, as posições da maioria estão localizadas imediatamente próximas àquelas da minoria, projetadas para limitá-las. Assim, os textos conciliares em si têm um enorme potencial de conflito, sendo uma porta aberta à recepção seletiva em uma ou outra direção.” (Cardeal Walter Kasper, L’Osservatore Romano, 12 de abril de 2013)

O que dizer?

De minha parte, eu só posso constatar que esta “confissão” veio com cinqüenta anos de atraso e apenas repetiu o que todo mundo já sabia. É claro que os textos do Concílio Vaticano II “têm um enorme potencial de conflito” e é claro que isso foi proposital; achavam o quê, que foi “por acaso”? Parafraseando Dawkins, pensavam que fora obra de The Blind Papermaker?

Dizer que há “fórmulas de concessões” nos textos do Vaticano II equivale a dizer que há sol ao meio dia, é o mesmo que descobrir a pólvora. É sério que precisávamos das declarações do Kasper para perceber esta obviedade? Se não houvesse possibilidade de interpretar equivocadamente os textos do Concílio, por qual absurda razão, por exemplo, a Lumen Gentium precisaria de uma “Nota explicativa prévia”, conhecida de qualquer pessoa que já tenha alguma vez na vida folheado o documento?

Aquela história do “a gente fala de maneira diplomática aqui e depois do Concílio tira as conclusões que nos forem convenientes” não é anedota, é fato documentado. Um papel com essas confissões bem pouco honestas caiu nas mãos de Paulo VI durante o Concílio, que então percebeu estar sendo enganado e chorou amargamente. Mais uma vez, isso não é conhecimento esotérico e nem segredo de estado conhecido apenas dos “católicos verdadeiros” (sic), isso é um dado jornalístico: o The Rhine Flows into the Tiber é um livro de 1967!

Ninguém jamais negou ou desconheceu aquilo que o Kasper disse ao Osservatore: o que negamos, e visceralmente, é que isso justifique a sedição contra a Igreja de Cristo. É claro que os textos do Vaticano II se prestam a diversas interpretações, e é exatamente por isso que ninguém – nem os progressistas e nem os rad-trads – pode prescindir do Magistério vivo da Igreja para lhes precisar o sentido correto!

A assistência do Espírito Santo não garante o esplendor da mais perfeita e conveniente expressão latina lapidar. A única coisa que Ele garante é que a Igreja não vai ensinar heresias – o que, aplicado ao Vaticano II, significa simplesmente que todo e qualquer texto do Concílio é passível de interpretação ortodoxa. Somente isso. Não significa que não há interpretações heréticas, não significa que a ortodoxia está sempre expressa da melhor maneira possível e não significa nem mesmo que, dado um excerto, a interpretação ortodoxa é a mais imediata. A única garantia que temos é a de que ela existe. C’est fini.

Ontem o Papa Francisco falou sobre o Vaticano II. Muitos acharam que ele fez uma crítica aos rad-trads, interpretação que é bastante aceitável. Mas eu penso que a verdadeira crítica é mais profunda, é ao modernismo estéril que, há mais de um século, vem envenenando a Igreja de Deus. As palavras do Santo Padre foram as seguintes:

Mas depois de 50 anos, fizemos tudo o que o Espírito Santo nos disse no Concílio? Não. Comemoramos este aniversário, erguemos um monumento, mas desde que não incomode. Nós não queremos mudar, e o pior: alguns querem voltar atrás. Isto é ser teimoso, significa querer domesticar o Espírito Santo; ser tolo, de coração lento”.

Ora, qualquer pessoa há de convir que os últimos cinqüenta anos foram o palco das maiores aberrações doutrinárias, litúrgicas, morais e pastorais que já envergonharam a Igreja de Cristo ao longo dos seus dois mil anos de história! Se o Papa, tendo isso diante dos olhos, diz que nós não fizemos “tudo o que o Espírito Santo nos disse no Concílio”, então só pode ser porque o Concílio não disse nenhuma dessas barbaridades que muitos passaram as últimas décadas realizando. Fosse diferente, o Papa teria afirmado com alegria que na maior parte dos lugares se fez, sim, a vontade do Espírito Santo de Deus. Mas ele não o fez. A declaração dele é sombria, mais até do que qualquer outra de Ratzinger sobre o assunto da qual eu me recorde agora; este pelo menos costumava destacar os bons frutos que haviam sido postos em prática, quando o Papa Francisco nem isso faz.

E, na verdade, “voltar atrás” sempre foi exatamente a maior característica dos taumaturgos que, desde a década de 60, assombram os pobres católicos com o famigerado “espírito do Concílio”. Ora, a “chance” histórica do modernismo foi justamente entre o final do século XIX e o início do XX: a janela de oportunidade dessa heresia era quando ela ainda não fora condenada pela Igreja. São Pio X, graças a Deus, fulminou-a na Pascendi (sabiam que esta encíclica está traduzida para o português no site do Vaticano? Nunca pararam para pensar que deve haver alguma razão para isso?) – e, de lá para cá, os modernistas são todos velhos que perderam o bonde da história e estão empenhados na utopia de fazer o relógio voltar para trás, transportando-os de volta ao tempo em que era pelo menos canonicamente lícito pregar as falsas doutrinas que a Igreja condenou sob Giuseppe Sarto. Em matéria eclesiástica, voltar atrás é desprezar as definições da Igreja, é insistir em discutir questões que já foram encerradas, é aferrar-se ao erro e se recusar a ouvir o Espírito Santo Paráclito, o Spiritus Veritatis que convence o homem do que é justo e verdadeiro.

Concluamos. Quem acompanha as palavras do Papa Francisco percebe que ele não é muito de falar sobre o Vaticano II. A curiosidade, creio, não permite maiores extrapolações. A meu ver, isso significa simplesmente que o Papa não o idolatra e nem o despreza, não sente necessidade nem de tudo justificar à luz dele e nem de evitá-lo como a uma moléstia contagiosa. O Santo Padre, afinal, sabe que a mensagem da Igreja é a mensagem do Evangelho, e é a esta verdade tão antiga e tão nova que – aí sim! – devem se referir todos os textos magisteriais, de S. Pio X ou de Paulo VI, do Vaticano II ou do Concílio de Florença. Independente de em que ânimo tenham sido escritos. Independente das traições que porventura tenha sofrido a Esposa de Cristo, uma certeza nós temos conosco para sempre: contra Ela não prevalecerão as portas do Inferno. E a força dessas palavras é maior do que todo o poder de Satanás; conhecendo-as, nós não temos o direito de tratar com suspeita a Igreja Santa de Deus.

Sim, defender a vida vale a pena

Comento, apenas brevemente, um parágrafo de um texto de D. Odilo Scherer publicado este fim de semana no Estadão, que merece uma leitura na íntegra. O parágrafo é o seguinte:

Não é por demais inglório manifestar-se sobre essa questão antipática, recebendo o carimbo de “conservador” e “mente fechada”? Dia mais, dia menos, o aborto será aprovado; existem pressões muito fortes sobre os legisladores e diversos interesses estão em jogo. Vale mesmo a pena? Eis o problema. A questão delicada da dignidade humana e do direito à vida é demasiado séria para ficar refém da pressão ideológica.

Eu penso já ter dito aqui que o valor das causas não está simplesmente na sua possibilidade de sucesso, mas que lhes é intrínseco. A verdade não deixa de ser verdade ainda que todo mundo dê crédito a mentira, e uma causa justa não deixa de ser justa (muito pelo contrário, aliás) se todo mundo estiver comprometido com a injustiça. Há muito de verdade no famoso bordão atribuído a Santo Atanásio: «se o mundo estiver contra a Verdade, Atanásio estará contra o mundo».

Isto não significa fechar por completo as possibilidades de diálogo (palavra tão mal entendida nos dias de hoje!); significa apenas ser capaz de manter uma sadia intransigência em certos princípios inegociáveis. Conversar com as pessoas que não pensam como nós é não somente possível como necessário: é somente dessa maneira que será possível a estas pessoas mudarem de idéia, afinal de contas. Não sei por que cargas d’água a palavra “diálogo” parece evocar na mente de alguns uma igualdade absoluta entre os interlocutores. Ora, isto absolutamente não é verdade e, se é necessário estabelecer um terreno comum entre os dialogantes como condição mesma para a existência do diálogo, isso de modo algum significa colocar em pé de igualdade as posições defendidas pelos dois lados antagônicos no debate de idéias. Santo Tomás já dizia que usava a razão contra os pagãos, o Antigo Testamento contra os judeus e as Escrituras inteiras contra os hereges; não penso que isso se distancie muito daqueles «círculos concêntricos, em que a mão de Deus nos colocou» sobre o qual Paulo VI fala na sua Encíclica sobre o Diálogo (Ecclesiam Suam, nn. 54ss).

Em uma palavra, por fim: o (justo) desejo de não ser antipático não pode levar à entrega de territórios cuja defesa não nos é lícito abandonar. Precisamos nos fazer ouvir, é certo; mas se os nossos interlocutores só nos concederem o beneplácito de sua atenção em troca de abandonarmos as nossas mais profundas convicções doutrinárias e morais, então não poderemos aceitar as suas condições porque, se o fizermos, nada mais teremos a lhes dizer. É essa a pertinente resposta que D. Scherer dá no seu artigo: há questões que são «demasiado séria[s] para ficar[em] refém da pressão ideológica». Se não nos querem ouvir, precisamos continuar falando; se a derrota é inevitável, então somos obrigados a morrer defendendo aquilo que sabemos ser certo.

Sim, lutar contra o inevitável pode parecer inglório, mas é somente aparência. A verdadeira glória está em defender o que é certo, independente das pressões que porventura soframos no caminho. Sim, defender a vida vale a pena. Por mais que o horizonte se nos descortine fechado e por mais que não pareça haver luz no fim do túnel, não temos o direito de duvidar jamais disso.

Humor Conciliar

Publico uma tradução do “Humor Conciliar” que o Andrea Tornielli nos trouxe recentemente e um amigo me mostrou via Secretum Meum Mihi. As historietas fazem parte de um livro («Las burbujas del Concilio», 128 páginas, 12 euros) de 1966 que acabou de ganhar uma edição moderna, a ser vendida nas editoras (italianas, suponho) a partir do próximo dia 3 de outubro. Algumas das anedotas são demasiado mordazes, mas outras são muito boas. E todas são, no mínimo, curiosas.

À lista abaixo eu acrescento outra que um amigo nos contou por email (talvez esteja no livro, não sei), sobre o nome das duas lojas que vendiam lanches para os Padres Conciliares: o «Bar Judas» e o «Bar Abbas». Que ninguém diga que os católicos (nem mesmo a alta hierarquia católica!) não têm senso de humor.

* * *

Os primeiros efeitos da pílula

Em várias ocasiões, alguns jornais anunciaram novas nomeações cardinalícias por Paulo VI. E, a cada vez, as notícias se revelaram falsas previsões. «Por que o Papa não cria mais cardeais?», um bispo se perguntava. «Deve ter aprovado a pílula… e funcionou!», respondeu um perito.

Ecumenismo angélico

Um visitante chega ao Vaticano e pede uma audiência imediata com o Papa. O Guarda Suíço em serviço fica desconcertado: não é possível, tem que marcar um horário. O visitante insiste; o Guarda Suíço pergunta o seu nome e, depois, um Monsenhor o recebe. «Sou o Doutor Satanás», explica o visitante, «e preciso falar urgentemente com o Papa». O Doutor Satanás insiste tanto que o Monsenhor consegue, enfim, obter uma audiência extraordinária no mesmo dia, embora não sem [antes] ter verificado cuidadosamente a identidade do estranho visitante: chifres sob o chapéu, cauda ondulada, pé de bode… No dia seguinte, “L’Osservatore Romano” publica uma nota: «Sua Santidade recebeu em audiência privada o ilustre Doutor Satanás. O encontro durou cerca de 80 minutos e aconteceu em um ambiente cordial. O Santo Padre assegurou sua simpatia pelo líder dos anjos rebeldes».

Non decet

Alguns leigos participaram do famoso Esquema XIII, em particular na elaboração do capítulo sobre o Matrimônio. Entre eles havia uma mulher vinda do México (acompanhada pelo seu marido). Um dia, o cardeal irlandês Michael Browne interviu na comissão sobre o tema do «amor de concupiscência», afirmando que o esquema devia recordar este aspecto deplorável do amor humano, inclusive no âmbito do Matrimônio. De repente, a mulher o interrompeu dizendo: «Todos os bispos aqui presentes, espero, veneram a própria mãe e não se consideram frutos da concupiscência». O cardeal enrubesceu, mudou de assunto e ninguém voltou a falar sobre o tema.

Toaletes

Os banheiros do Concílio tinham duas indicações em italiano: «libre» e «ocupado». Um bispo propôs que fossem traduzidos para o latim, nestes termos: «sede vacante» e «feliciter regnante».

Mais atitudes e menos palavras.

O cardeal Suenens falava muito do diálogo no Concílio, mas (ao que parece) o praticava pouco em sua diocese. «É um especialista do monólogo no diálogo», diziam alguns dos sacerdotes da diocese de Malinas-Bruselas.

Onde está o pai?

Alguém abandona um recém-nascido nos jardins do Palácio do Santo Ofício. Dois seminaristas que passavam por lá o vêem e se perguntam quem serão seus pais: «será um bispo?», diz um. «Não, claro que não», responde o outro. «Por quê?». «Porque nunca se soube de nenhum bispo que tivesse feito algo significativo em nove meses. Talvez o Concílio?». «Impossível, o que sai dele nasce morto ou inválido. E se for de alguém do Santo Ofício?» «Nem brincando! Um filho é fruto do amor, e no Santo Ofício não há nenhum vestígio de amor».

Humor Pontifício

Ao final da Quarta Sessão, muitos Padres Conciliares criticaram duramente a prática das indulgências e chegaram até mesmo a pedir que fossem abolidas. O que dizia o Papa? Apenas se pode indicar que, ao receber os bispos latino-americanos pouco antes de terminar o Vaticano II, Paulo VI lhes dissera: «Dou-lhes minha bênção e as respectivas indulgências… porque ainda me é concedido dá-las».

A Trento

Os cardeais Ottaviani e Ruffini sobem num táxi e dizem ao motorista: «ao Concílio!». Depois começam a discutir questões teológicas. De repente, se dão conta de que o táxi saiu de Roma e se dirige ao norte. «Ei, taxista, onde nos está levando?». «Vocês me disseram: “ao Concílio!” e eu os estou levando a Trento. Creio que é o único destino possível para vocês…».

Viagem à Lua: um hino de louvor a Deus

Ainda a propósito do recente falecimento de Neil Armstrong e da conseqüente onda de redivivo entusiasmo pela viagem à Lua que se levantou nos últimos dias, vale a pena contextualizar alguns acontecimentos daquela época que, não raro, encontram-se distorcidos em alguns ambientes “tradicionalistas”. Refiro-me às declarações feitas então por Paulo VI. A primeira vez que tomei contato com elas foi há muitos anos, no site da Montfort, onde se insinuava – de maneira bem pouco católica, a propósito – que o falecido Pontífice tinha proferido aquelas palavras em um espírito de idolatria ao homem, de exaltação da Cidade dos Homens em oposição à Civitas Dei.

Lembro-me que isto à época me impressionou bastante, porque a ida do homem à Lua era freqüentemente apresentada como um fetiche neo-ateísta a demonstrar, de maneira cabal, a grandeza do progresso científico que finalmente havia alçado vôo após se libertar dos cabrestos obscurantistas da Religião. A viagem à Lua era apresentada – e, ainda hoje, muitas vezes é – como um troféu da emancipação humana do seu Criador, como um estandarte resplandecente da Ciência que, enfim, fora vitoriosa sobre a Fé. E neste sentido, é verdade, a declaração do Papa parecia profundamente incômoda, como se ele estivesse enaltecendo precisamente o movimento cientificista cuja pretensão era sepultar a Igreja de Deus.

A verdade, no entanto, é bem outra. Não sei em qual momento exato a aventura lunar foi seqüestrada pelos neo-ateus para lhes servir de objeto de propaganda da Descrença; mas sei que isto é sem dúvidas um fenômeno posterior. Porque, à época, os homens de todos os credos acompanhavam os cosmonautas a uma aventura cujo propósito era não destronar o Altíssimo do Seu Trono dos Céus, mas o de fazer valer o mandamento bíblico de submeter a si a Criação. Acompanhavam-se os astronautas com o mesmo espírito que, séculos antes, motivou as Grandes Navegações; com aquela “não menos certíssima esperança / de aumento da pequena Cristandade” que Camões cantou no início d’Os Lusíadas. A viagem à Lua, historicamente, foi uma obra de arte ofertada pelo homem ao Deus Altíssimo, e não a lança erguida contra Ele que se quis posteriormente apresentar.

Prova-nos isto a própria vida de Neil Armstrong que, como eu falei ontem, jamais viu nenhuma oposição entre ir à Lua e ser capaz de elevar a alma a Deus.

Prova-nos isto um pequeno item do acervo dos Musei Vaticani que eu vi em 2008 quando estive na Città Eterna:

Trata-se de uma pequena bandeira do Vaticano que foi levada à Lua pela Apollo 11 e, quando retornou à Terra, foi presenteada ao povo do país (junto com algumas pequenas pedras lunares recolhidas pelos astronautas).

Prova-nos isto, enfim, o próprio teor dos discursos de Paulo VI (pelos quais ele é acusado de idolatrar o homem):

Messaggio ai cosmonauti Armstrong, Aldrin e Collins (21 de julho de 1969);
Mensagem do Angelus (7 de fevereiro de 1971).

Onde o primeiro começa com um gloria in Excelsis Deo e finda mandando uma bênção aos astronautas (que “expandem até os abismos celestes o domínio sábio e audaz do homem”) e, o segundo, fazendo explícita referência ao mandamento bíblico de “crescer e dominar”, explica a forma como se encarava então a viagem à Lua:

[O progresso humano n]ão é paixão ambiciosa: é resposta à vocação do seu ser [do homem], que com isso mesmo [nello stesso tempo] aprende a ler no cosmo a exigência de um princípio criador e ativo, misterioso, silencioso, eterno e onipotente: sugere-a a própria desoladora miséria – cheia de realidade e de leis – do satélite explorado. Que meditação! O canto encontra no salmo sua palavra sublime: «Os céus narram a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de Suas mãos» (Ps. 18, 2).

Eis, portanto, o que pensava Paulo VI (e, com ele, a maior parte dos homens) a respeito da empresa lunar! O entusiasmo generalizado de então não tinha a conotação cientificista que se observa hoje; ao invés disso, o homem, principe del cielo, usava o seu engenho para realizar-se mais plenamente e, assim, aproximar-se mais de Deus. O homem não se afastou do seu Criador ao pisar na Lua, muito pelo contrário: da imensidão do espaço vazio, os astronautas – e, com eles, todos os homens que da Terra acompanhavam a inaudita empreitada – podiam ouvir com mais clareza os Céus cantarem a glória de Deus.

Curtas

– Eu ainda não havia visto este Sussidio per Confessori, que está disponível em português no site da Congregação para o Clero. São mais de setenta páginas, englobando explanações teológicas e orientações práticas. Entre estas últimas, à guisa de destaque:

Outras normas oferecem algumas pistas para ajudar os penitentes a confessarem-se com clareza, por exemplo, em relação ao número e espécie dos pecados graves, indicando os tempos mais oportunos, os meios concretos (quais possam ser, em qualquer ocasião, os intérpretes) e sobretudo a liberdade de confessar-se com os ministros aprovados e que os mesmos podem ser escolhidos.

É necessário confessar o número e a espécie dos pecados graves! Que coisa mais medieval e tão pouco ensinada nos dias de hoje! É um bom sinal. Que Deus nos livre dos maus confessores, deformadores de consciências. Que Ele nos dê santos sacerdotes.

* * *

Audiência Geral de Paulo VI em 1972, confronting the devil’s power. Pena que está em inglês e eu não posso traduzir agora. Reproduzo alguns trechos que o Carlos Ramalhete fez a gentileza de traduzir recentemente na lista “Tradição Católica”:

“E então o pecado, por seu lado, se torna a ocasião e o efeito da interferência, em nós e em nosso trabalho, de um agente hostil e escuro, o Diabo. O mal não é apenas uma carência, mas uma força ativa, um ser espiritual vivo que é perverso e perverte outros. Trata-se de uma realidade terrível, misteriosa e apavorante.

[…]

Ele solapa o equilíbrio moral do homem com seus sofismas. Ele é o sedutor esperto e maligno que sabe como abrir caminho até nós através dos sentidos, da imaginação e da libido, através da lógica utópica ou de contratos sociais desordenados no toma-lá-dá-cá de nossas atividades, para que ele consiga causar em nós desvios que são tão mais daninhos por parecerem conformar-se à nossa constituição mental ou física ou a nossas aspirações instintivas e profundas.

Este tema do Diabo e da influência que ele pode exercer sobre indivíduos e sobre comunidades, sobre sociedades inteiras e sobre acontecimentos, é um importantíssimo capítulo da doutrina cristã que deveria ser novamente estudado, ainda que seja hoje objeto de tão pouca atenção.

[…]

Isto não significa que todo pecado seja devido diretamente à ação diabólica, mas é verdade que quem não se vigia com um certo rigor moral está exposto à influência do ‘mistério da iniquidade’ citado por São Paulo, que coloca em grave risco a salvação. Nossa doutrina se torna incerta, com a escuridão obscurecida pela escuridão que rodeia o Diabo. Mas nossa curiosidade, excitada pela certeza de sua existência multiforme, tem o direito de fazer duas perguntas. Há sinais, e quais são eles, da presença da ação diabólica? E quais são os meios de defesa que temos contra perigo tão insidioso? Temos que ser cautelosos ao responder à primeira pergunta, ainda que os sinais do Maligno pareçam ser muito óbvios em algumas ocasiões. Podemos presumir que sua ação sinistra está operando onde a negação de Deus se torna radical, sutil e absurda; onde mentiras se tornam poderosas e hipócritas diante da Verdade evidente; onde o amor é sufocado pelo egoísmo cruel e frio; onde o nome de Cristo é atacado com ódio consciente e rebelde; onde o espírito do Evangelho é diluído e rejeitado, onde o desespero é afirmado como sendo a última palavra, etc.

[…]

É mais fácil formular uma resposta para a outra pergunta – que defesa, que remédio deveríamos usar contra a ação do Diabo: – ainda que continue a ser difícil colocá-los em prática. Poderíamos dizer: tudo o que nos defende do pecado nos fortalece, por isso mesmo, contra o inimigo invisível. A Graça é a defesa decisiva.

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Datafolha desvenda o mistério das multidões paulistanas. Como comentou um amigo: será que agora vão processá-la por homofobia?

Para pôr fim à imprecisão e a esse antigo debate paulistano, o Datafolha calculou a quantidade máxima de pessoas que os três principais espaços a sediar eventos do tipo –avenida Paulista, praça Campo de Bagatelle e vale do Anhangabaú– têm condição de abrigar. Mesmo com estimativas bastante generosas, é possível afirmar: não cabe tudo isso de gente.

Segundo o instituto de pesquisa, 1,5 milhão de pessoas é a lotação máxima do trecho Paulista-Consolação, caminho que a Parada Gay percorre. Isso num cálculo superestimado, considerando sete pessoas por metro quadrado, sufoco semelhante ao enfrentado por passageiros que embarcam na estação Sé do metrô no horário de pico. Para que 4 milhões ocupassem esses 216 mil m², seria necessário que 18 pessoas se espremessem em cada metro quadrado, algo só possível para contorcionistas como os da escola Acrobacia e Arte, convidados para ilustrar a capa desta edição.

* * *

Médico indica aborto, casal se recusa e menina sobrevive: dramática história!

“Todos os dias eu me perguntava se ela ainda estava viva dentro de mim”, contou Healther. Mas, contra todas as probabilidades, Charley-Marie surpreendeu os médicos e sobreviveu. Ela nasceu em janeiro do ano passado, três semanas antes do previsto. Imediatamente após o nascimento, a garota foi levada para a UTI do hospital para que fossem realizados exames no seu coração. O tumor ainda estava lá, contudo, de alguma forma, o coração da menina encontrou uma maneira de bombear o sangue.

[…]

Mais uma vez contrariando as expectativas, Charley-Marie teve, sim, sua festa de aniversário de 1 aninho, com direito à família reunida e fogos de artifício. Hoje, aos 19 meses, a menina se comporta com qualquer criança de sua idade, segundo a mãe. “Os médicos não tem ideia do que vai acontecer com o coração dela. E nós apenas esperamos pelo melhor”, afirmou.

Talvez coubesse perguntar como um médico é capaz de conviver com o fato de ter assinado uma sentença de morte para um bebê supostamente “condenado” (que, hoje, tem um ano e meio de idade). Mas o fato das pessoas conviverem com o aborto já é, de per si, um mistério grande o suficiente: o assassinato de crianças é sempre horrível, não importa quais sejam os motivos elencados. E Charley-Marie está aí, vivendo, para provar como sói os médicos estarem errados e, portanto, como é descabida qualquer pretensão de interromper a vida de outrem. Memento Marcela.

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Gaga sobre Gaga. Destaco:

O que me leva ao ponto mais chocante das extravagâncias de Lady Gaga. Parece que depois de tantos anos, não há imagem mais poderosa que o amor, o sofrimento e o compromisso total que a produzida pelo Cristianismo. Temo que muitos de seus seguidores não sabem o que é uma religiosa (de fato, as meninas estavam fascinadas pelas religiosas), mas o hábito religioso ainda proclama a castidade e o compromisso com algo e Alguém maior que si mesmo. Mantém seu poder, razão pela qual uma estrela do pop tenha tentado explorá-lo. Em vídeos onde menos (roupa) é mais e a novidade é tudo, a tradição ainda pode cativar e desestabilizar. A senhorita Germanotta pode tentar exorcizar suas raízes católicas com piadas sobre monges de plástico, mas a simplicidade que ela ridiculariza será sempre mais simbólica que suas extravagantes sátiras.

Ninguém foi capaz de superar a imagem do sofrimento por amor exemplificada pela Paixão de Cristo. A coroa de espinhos, os braços estendidos, as feridas e a humilhação alimentaram muitos mais do que uma estrela do pop buscando atenção. Nenhuma estrela pop fantasia sobre a extração asteca de corações ou a decapitação da Revolução Francesa, mas no entanto erotizam com o sofrimento de Cristo, porque admitem seus efeitos duradouros. Jesus sofreu, não por uma vã excitação física, como a senhorita Germanotta, e o que queremos conhecer é a profundidade de seu amor, um amor que está disponível para todos. E de novo, a senhorita Gemanotta não entende que a sexualidade onívora não é o mesmo que o amor universal.