O pecado original e as tragédias sociais

O status naturalis hobbesiano em que atualmente se encontra o estado do Espírito Santo por conta da greve da PM (parece que já foram registradas 90 mortes violentas desde sábado), bem como as chacinas nos presídios que rebentaram no início do ano (por exemplo, com presos decapitados e eviscerados em Manaus) dão ensejo a algumas considerações.

Antes de tudo, é relevante registrar que as tragédias oferecem uma demonstração concreta, empírica, quase produzida em balão de ensaio, de um dos postulados mais básicos do Cristianismo: com o pecado original, a desordem foi introduzida na criação e o homem passou a sofrer uma como que inclinação natural para a prática do mal. Foi Chesterton quem disse que o pecado original era um dogma quase auto-evidente, podendo ser inferido do prosaico fato de (p. ex.) um homem esfolar um gato: diante da crueldade sem propósito ou se nega a existência de Deus (posição dos ateus) ou se afirma que existe, atualmente, uma separação entre Deus e o homem (visão de mundo cristã).

Ironicamente, o inglês acrescentava que os modernos materialistas haviam chegado a uma genial solução inovadora, negando o gato. Um século depois do Ortodoxia, os intelectuais contemporâneos — tributários daqueles contra os quais Chesterton levantou o seu gênio — chegam hoje à mesmíssima “brilhante” conclusão com cem anos de atraso.

Sobre a crise penitenciária, um ministro do STF chegou a sugerir, a sério, a legalização das drogas. A dar crédito ao ministro Barroso, então, bandidos de facções rivais só estão se matando dentro das penitenciárias porque a maconha é proibida no Brasil. “Dando certo” com a maconha — seja lá o que isso signifique –, o visionário ministro acha que se deve, também, legalizar a cocaína (!). Tudo, claro, para «quebrar o tráfico». Parece não ocorrer ao senhor ministro a hipótese de o tráfico continuar funcionando a despeito da legalização — como, mutatis mutandis, os cigarros ilegais movimentam bilhões de reais anualmente no país, mesmo não havendo notícia de que o tabaco tenha sido algum dia criminalizado. Igualmente não interessa a Luís Roberto Barroso o singelo fato de a cocaína não ser legalizada em lugar nenhum do mundo; a legislação estrangeira só brilha aos olhos do ministro quando é para introduzir o aborto por vias escusas no país.

No mesmo contexto, um artigo da Carta Capital enumera diversos problemas dos presídios capixabas; curiosamente, é o último artigo do «Justificando» sobre o Espírito Santo, escrito pouco antes da barbárie que tomou conta das ruas do final de semana para cá. Longe do portal pretensamente jurídico, a página inicial da revista ostenta uma chamada dizendo que a culpa da crise é do «ajuste fiscal» do governador pemedebista. Last but not least, o Sakamoto acredita que o problema só se pode resolver com a desmilitarização da polícia, a qual o articulista considera mero «instrumento de uma parcela da sociedade com um grupo de poder econômico para a qual os domínios fora de seu castelo são terra de ninguém».

É preciso muito sangue frio, reconheça-se, para usar o assassinato de noventa capixabas com o fito de atacar o governo do PMDB; do mesmo modo se exige uma dose particularmente refinada de psicopatia para achar que uma rebelião penitenciária (onde os presos estão literalmente arrancando as cabeças dos membros das facções rivais) é uma boa oportunidade para defender a legalização da cocaína. Sob a tagarelice da mídia fica assim diluída a responsabilidade individual, à qual ninguém parece dar grande importância; ao mesmo tempo, pontificando soluções mirabolantes, as pessoas fingem se esquecer de que existe, no âmago de qualquer «crise social», (i) indivíduos humanos que respondem a estímulos e (ii) cujos atos exigem responsabilização.

Indivíduos que respondem à estímulos: se o número de assaltos, saques e assassinatos aumenta precisamente quando se sabe que o policiamento ostensivo não está nas ruas, e sendo esta a única variável relevante sofrendo alteração considerável, é imperativa a conclusão de que fulano é menos propenso a assaltar, saquear ou assassinar quando sabe que corre risco maior de ser pego pela polícia. Em poucas palavras, a sensação de impunidade favorece o crime. Isto, que é óbvio e empiricamente verificável, quase não se encontra no discurso público oficial — e, ao contrário, não falta quem defenda que o «poder de punir do Estado» precisa urgentemente ser revisto porque, na verdade, ele existe para garantir «a permanência de um projeto de exploração».

Atos que exigem responsabilização: toda ação humana tem consequências e todo ato mal realizado introduz no mundo uma desordem que cumpre ser reparada. Isso está no âmago da consciência moral de todo mundo; não é outra a razão pela qual a função retributiva da pena foi sempre universalmente aceita pela totalidade das civilizações, só passando a ser questionada em alguns estratos da sociedade decadente contemporânea — nada coincidentemente, uma sociedade que perdeu a própria noção de mal moral (a «negação do gato» de Chesterton erigida a senso comum). Sim, a pena de morte é uma leprosa; mas mesmo os que não querem nem ouvir falar dela sentem um certo incômodo diante da ideia de que não há nada que possa ser feito com um sujeito que, já preso, mata, esquarteja e eviscera seres humanos.

Mas tudo isso é somente a parte, digamos, externa da questão — aquela que diz respeito à proteção dos terceiros inocentes. Há que se falar também — e principalmente! — das questões envolvendo o indivíduo criminoso, tanto para evitar que ele delinqua quanto para a sua eventual redenção. A experiência de Vitória nos ensina que colocar a polícia nas ruas é uma forma eficaz de minimizar os saques e arrastões; no entanto, não seria melhor se as pessoas não fizessem o mal independente de haver ou não quem as castigue?

O mal é uma contingência permanente da liberdade humana e, como tal, não pode ser erradicado. Mas é possível e necessário consumir a nossa vida na luta contra ele. É preciso educar para a virtude — essa expressão que se encontra atualmente tão fora de moda. É preciso incutir nas pessoas a idéia de que existe no mundo uma ordem que as transcende. Um assaltante sabe que assaltar é errado e alguém que saqueia uma loja de eletrodomésticos não gostaria de ter a própria casa saqueada; por quê, então, ele saqueia?

Todo pecado é uma desordem no sentido de que é antepôr um bem menor a um bem maior. Um televisor é um bem, mas o fato de que este bem pertence ao seu dono legítimo (àquele que empregou tempo e dinheiro na sua produção ou aquisição) é um bem maior. O problema dos assaltantes não é que eles não entendam ou não reconheçam o direito de propriedade; o problema é que eles sacrificam o direito de propriedade alheio (o bem maior) à satisfação da própria vontade (o bem menor). Esta é a desordem essencial. Respeitar o direito alheio só é possível em detrimento da própria vontade, impondo-lhe limites, dizendo-lhe que ela não pode ter aqui, agora e sem mais o bem de que desejaria fruir já. Isto, na verdade, é o antiquíssimo exercício de mortificação da própria vontade proposto pela Igreja há vinte séculos e ao qual os poderosos há dois mil anos dão as costas.

Nietzsche chama isso pejorativamente de «moral de escravos»; mas não era preciso que o caos se instalasse em uma metrópole brasileira para que se percebesse que a satisfação universal das vontades particulares é impossível. É bastante evidente que se as pessoas forem condicionadas antes a satisfazer que a renunciar às próprias vontades a violência vai cedo ou tarde exsurgir. Nada surpreendentemente, a moral que o alemão desdenhava como «escrava» é a única possível em sociedade e, por isso mesmo, é a única que torna os homens livres. Fora dela o que existe é a barbárie e a lei do mais forte.

Há décadas a nossa sociedade ocidental vem publicamente rejeitando a moral cristã, e os resultados estão aí para quem quiser ver: demonstrados na teoria e verificados na prática. A mera repressão jurídica, policial, conquanto evidentemente necessária, fornecesse apenas um verniz de civilização: o verdadeiro problema é mais profundo. Vem lá do Éden! E para ele somente a Igreja tem solução. Franquear-Lhe publicamente o pastoreio das almas, assim, é o mais eficaz remédio para a paz e a prosperidade, quando todas as panacéias apresentadas pelos Seus detratores se mostraram catastróficas.

Ele não deixaria inacabada!

O Cristianismo é a religião do Verbo Encarnado, e esta é uma das suas características de conseqüências mais maravilhosamente radicais. Não significa simplesmente que Deus existe, que nos criou e nos ama; não significa apenas que Ele nos destinou a uma Bem-Aventurança superior àquela a que nós seríamos merecedores por natureza. Não quer dizer meramente que Ele Se revelou a nós, comunicando-nos à inteligência verdades sublimes sobre Si. Tudo isso é verdadeiro, mas a Encarnação é um acontecimento muito maior. Trata-se de algo muito mais misterioso e profundo, muito mais sublime e incompreensível: queremos dizer que Deus tomou por Sua a nossa carne, assumiu a nossa humanidade e, assim, fez-Se um de nós.

Fez-Se um de nós! O Deus Altíssimo, Criador dos Céus e da Terra, habitando eternamente em luz inacessível, dignou-Se revestir-Se das coisas criadas e, nos mais limítrofes rasgos de Sua Onipotência, confinou a Eternidade ao tempo e circunscreveu o Infinito ao ser humano. As reais dimensões desta verdade já incontáveis vezes a nós repetida encontram-se, não obstante, para muito além da nossa compreensão. Mas a Igreja Católica com freqüência nos possibilita um vislumbre da excelsa dignidade a que foi elevada a natureza humana e, por meio daquilo que festeja na terra, prepara-nos para o que nos aguarda no Céu.

Hoje é a festa da Gloriosa Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria, da Imaculada e Sempre-Virgem Mãe de Deus. O dogma, todos sabem o que quer dizer; nas palavras da Munificentissimus Deus, significa que «a imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial». Mas estas palavras já repetidas à exaustão podem nos fazer considerar de maneira leviana este dogma da Fé. Para uma melhor compreensão do que ele nos revela, é-nos útil considerar o que a Religião nos ensina sobre a relação entre o corpo e alma.

Segundo a antropologia cristã clássica, corpo e alma estão de tal maneira unidos que, juntos, perfazem uma unidade substancial. Isto atrela de maneira irredutível o destino de um ao de outro; a glorificação da alma, ao contrário do que postulam certas filosofias de influência espírita, exige e implica a glorificação do corpo. A primeira vez que isso me ficou claro foi quando um amigo traçava um paralelo entre o Pecado e a Redenção. O pecado arrastara o corpo à corrupção do túmulo e à morte; ora, se a salvação não fosse capaz de resgatar também o corpo humano desta desordem original, então haveria ainda um aspecto da existência humana que permaneceria sob o poder de Satanás a despeito do Sacrifício de Cristo. A culpa seria maior que a Redenção e, o Pecado, maior do que a Graça, o que é absurdo. Logo, também ao corpo humano – a este corpo humano que Deus quis assumir! – está destinada a Bem-Aventurança, também ele é capaz da Glória. Como exatamente se dará isso é-nos desconhecido; nas palavras do Apóstolo, trata-se daquilo que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração humano não imaginou. Mas sabemos, com certeza, que haverá olhos para ver e ouvidos para ouvir o que Deus tem preparado para os que O amam.

E a Assunção da Santíssima Virgem é motivo para que nos alegremos e, juntando-nos aos cristãos de todos os séculos, cantemos as glórias da Bem-Aventurada Mãe de Deus, d’Aquela que foi Imaculada desde o primeiro instante da Sua concepção; d’Aquela a Quem Deus, tendo tomado por Mãe quando desceu à terra, não permitiu que sofresse a corrupção do túmulo à qual Ela, não havendo tido jamais parte com o pecado, não estava por justiça sujeita.

Na verdade, a festa hoje celebrada é a coroação daquela outra que nós celebramos no dia oito de dezembro: é o cumprimento das promessas de Deus, a realização plena de Sua vontade, o arremate de Sua obra mais perfeita que Ele não deixaria inacabada! Porque parece que faltaria alguma coisa na História da Salvação se a Santíssima Virgem não tivesse sido elevada aos Céus: faltaria um troféu importante da vitória sobre a Morte e, sobretudo, faltaria uma graça que o Todo-Poderoso não teria concedido nem mesmo Àquela que foi chamada de “Cheia de Graça”, faltaria um agrado que o Senhor não fizera nem mesmo à Sua própria Mãe – e, se Ele tivesse negado a glorificação do Corpo Àquela que O carregou do ventre, nós outros, pecadores miseráveis, não poderíamos jamais ousar esperá-la para nós próprios. Mas o Deus Altíssimo não é mesquinho e, por isso, nós podemos ter esperança. Maria Santíssima foi assunta aos Céus, e a Vitória de Cristo está completa. Salve, ó Virgem Gloriosa! Lembrai-Vos de nós na presença de Deus. Rogai por nós, os pecadores. Sede em nosso favor. Alcançai-nos as graças de Deus. Sede nossa salvação.

Assumpta est Maria in caelum:
gaudent Angeli, laudantes benedicunt Dominum.