Nova redação do Catecismo sobre a pena de morte

A respeito da recente alteração do parágrafo 2267 do Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte, sem a menor pretensão de esgotar o assunto, diga-se apenas, preliminarmente, quanto segue:

  1. Um catecismo é um resumo da Fé Católica; é um texto, por excelência, pedagógico, que se propõe a apresentar de maneira orgânica a Doutrina da Igreja, conforme interpretada pelo Seu Magistério. Rigorosamente falando, um catecismo não é fonte magisterial, mas instrumento de exposição doutrinária.
  2. Assim, o Catecismo não é nem “falível” e nem “infalível”: simplesmente essas categorias não se aplicam a ele. A infalibilidade é uma nota do Magistério da Igreja, que tem os seus meios próprios de manifestação. Assim, por exemplo, o Magistério Pontifício pode se manifestar através de uma Carta Encíclica (veículo de exercício do magistério papal por excelência): um catecismo pode (e deve) apresentar de maneira orgânica e acessível o conteúdo das encíclicas papais, mas o que é “Magistério”, a rigor, são as encíclicas e não o catecismo. Catecismos e suas formulações são contingentes, ao passo que a Doutrina é imutável.
  3. Ou seja, um catecismo não possui autoridade por si só. A Doutrina Católica apresentada por um catecismo, qualquer que seja ele, somente é infalível na medida em que o Magistério que lhe subjaz é, ele próprio, infalível. A rigor, o Catecismo não obriga à Fé: o que obriga são os documentos magisteriais que embasam o Catecismo.
  4. Mudanças na formulação de algum ponto de um catecismo, assim, não têm característica de aprofundamento doutrinário. Simplesmente não podem ter, porque a doutrina se aprofunda pelo labor orgânico do Magistério, e jamais pela forma eventualmente escolhida para a sua exposição pedagógica. A mudança na redação de algum ponto do Catecismo deve, necessariamente, encontrar o seu fundamento no exercício do Magistério que precede a modificação do texto, não podendo a simples reescrita de um parágrafo funcionar como sucedâneo de um ato magisterial.
  5. Isso significa que eventuais dificuldades suscitadas pela formulação de algum parágrafo do Catecismo devem ser resolvidas nas referências magisteriais que digam respeito ao ponto controverso. O Catecismo não esgota a Doutrina nem a substitui.
  6. A nova redação do parágrafo 2267 provocou uma enorme e desnecessária confusão sobre a pena de morte; isso porque o texto mistura aspectos principiológicos com questões contingentes, substituindo a redação anterior, que era boa e clara, por uma bastante inferior e confusa.
  7. Diga-se, antes do mais, que a Doutrina da Igreja a respeito da pena de morte não mudou. Não mudou, primeiro porque Doutrina não muda e, segundo, porque redação de parágrafo de catecismo não é veículo idôneo para desenvolvimento doutrinário. Assim, a posição da Igreja a respeito do assunto há forçosamente de ser, hoje, após a nova redação do parágrafo 2267, rigorosamente a mesma da semana passada, quando ainda vigente a redação antiga. Não entender isso é desconhecer os rudimentos da Doutrina Católica.
  8. A nova redação, injustificadissimamente, substituiu a referência à Evangelium Vitae, Encíclica que fala especificamente sobre a inviolabilidade da vida humana, por um discurso do Papa Francisco onde o tema da pena de morte é mencionado en passant. Ora, à toda evidência, remover a referência à Evangelium Vitae não tem o condão de revogar a Carta Encíclica, de modo que ela permanece sendo o referencial doutrinário válido, vigente e autorizado sobre o assunto.
  9. A referida Carta Encíclica dizia (n. 56) que a pena de morte não devia ser aplicada «senão em casos de absoluta necessidade», os quais, «graças à organização cada vez mais adequada da instituição penal, (…) são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes». Em outras palavras, o fundamento da não-aplicação da pena capital hoje é a «organização cada vez mais adequada da instituição penal», e não uma suposta “inadmissibilidade intrínseca” da pena de morte.
  10. Ou seja, ao contrário do que dá a entender a novel formulação do parágrafo 2267, in finis, do Catecismo da Igreja Católica, a pena de morte é inadmissível não simpliciter, mas apenas secundum quid: na medida em que existem «sistemas de detenção mais eficazes» e em que se disseminou «uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado», então a pena de morte é inadmissível. Fora dessas condições, não.
  11. Esses fundamentos, como salta aos olhos, são intrinsecamente contingentes: podem existir hoje e, amanhã, não mais se verificarem, como também podem não ser rigorosamente os mesmos nos diversos países do globo. Ademais, um Catecismo versa precipuamente sobre doutrinas e não sobre situações de fato, estas as quais são, por sua própria natureza e ao contrário daquelas, extremamente mutáveis. 
  12. Que a carta da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o tema não discorra sobre estes assuntos tem pouca importância: principalmente no âmbito do Catolicismo, as coisas não deixam de existir se as pessoas silenciam sobre elas. E, principalmente!, apesar de o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé falar várias vezes em «desenvolvimento da doutrina», na verdade não existe aqui desenvolvimento algum. O juízo prático sobre a aplicação de tal ou qual pena em determinadas situações concretas é, em essência, um juízo prudencial e não doutrinário. Além do mais, a doutrina, se se desenvolve, só o faz de maneira orgânica e harmônica, e não negando hoje o que até ontem afirmava.
  13. Se o objetivo das autoridades eclesiásticas é, hoje, «empenha[r]-se com determinação a favor da sua [da pena de morte] abolição em todo o mundo» (CCE, 2267), elas têm todo o direito de fazê-lo — e, aliás, já o vinham fazendo há muitos anos mesmo com a antiga redação do Catecismo, como a carta de D. Ladaria exemplifica fartamente. Não era absolutamente necessário proceder a esta modificação confusa em um texto de referência catequética para se colocar contra a pena de morte no Ocidente do século XXI.
  14. Sobre o tema, por fim, reitero tanto quanto escrevi aqui ainda em 2014, em particular o seguinte: «é legítimo, em abstrato, ao poder temporal punir os criminosos inclusive com a morte; (…) [e] é perfeitamente possível que, nos Estados modernamente constituídos e com a sensibilidade contemporânea, não haja espaço para a aplicação daquela pena máxima».

Sobre o assunto, veja-se, também, entre outros, este texto sobre o ensino tradicional da Igreja acerca do assunto; este outro texto, pequeno, mas relevante, sobre a distinção entre a dignidade da natureza humana e a dignidade moral do homem; e estas considerações do Joathas sobre a nova redação do Catecismo acerca da pena de morte.

Os perpétuos incapazes

Hoje as pessoas têm uma verdadeira aversão à pena de morte. Tratam-na como se fosse uma violência, uma agressão, uma injustiça; mas à primeira vista tanta ojeriza parece não ter sentido. Afinal de contas, por definição, toda e qualquer pena legitimamente aplicada é de algum modo um exercício de força, é um mal infligido, é um dano causado; não fosse desse modo, pena não seria. Mesmo assim, a coisa mais comum é encontrar pessoas que exercem, sobre a pena capital, um juízo de reprovação por vezes até mais severo do que contra o próprio crime de homicídio. Como se explica isso?

Penso que há dois pressupostos elípticos que ajudam a compreender essa mentalidade. Há, primeiro, uma exacerbação da sensibilidade cristã. Aquela história de que deveríamos oferecer a outra face a quem nos esbofeteia ficou de tal modo impregnada na cultura ocidental que por (muitas) vezes, ao não agirmos assim, sentimos que estamos violando um dever. A metáfora do sândalo perfumando o machado que o derruba tornou-se universal; e nós, quando nos negamos a perfumar aqueles que nos destroem, percebemo-nos como se fôssemos de algum modo transgressores de uma lei ainda mais alta do que a que proíbe o crime.

A verdade é que parece de algum modo mais censurável a pena que o crime por uma razão análoga àquela que faz com que a vingança seja por vezes mais reprovável que a própria agressão. O agressor avilta-se pelo próprio fato de agredir; já o agredido, espera-se que seja magnânimo. Se o agressor praticou o mal movido por sabe-se lá que condições — a necessidade, o medo, o impulso –, o mesmo não se pode dizer da vingança: ela é sempre premeditada, ela não tem outro propósito senão retribuir o mal sofrido. E quando se institucionaliza a pena de morte o contraste fica ainda mais marcante: é fácil imaginar um criminoso premido pelas circunstâncias, enquanto o mesmo não se pode jamais dizer da impessoalidade burocrática da justiça.

Mas há aqui também um outro pressuposto inconfessado: é a noção de que a civilização é superior ao crime e, portanto, nós, homens de bem, somos de alguma maneira superiores aos criminosos — não estando assim autorizados a agir com eles da mesma forma que eles agem para conosco. Em crianças nós toleramos certos comportamentos que, em um adulto, seriam dignos da mais áspera censura; repreender uma criança da mesma forma que repreenderíamos um adulto soa-nos um absurdo injustificável. Se uma criança nos bate com todas as suas forças, nós nem assim poderíamos bater-lhe de volta com toda a força de que dispomos. Ora, o criminoso está em um nível evolutivo inferior ao homem civilizado — e, portanto, ainda que ele nos faça todo o mal que esteja ao seu alcance, nós não lhe poderemos causar em resposta todo o dano de que somos capazes. Não deixa assim de ser irônico que o humanismo abolicionista tenha esses rasgos de condescendência: a pena capital é repelida porque, coitado, o criminoso não a merece.

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O estranho é que a abolição da pena de morte termina por resvalar, no limite, para a supressão de toda e qualquer pena. Executar um criminoso é uma crueldade, concedamos; mas não é também uma coisa cruel encarcerar um infeliz? Se um assassino não merece ser executado porque a sociedade não pode pagar o mal com o mal, por que um sequestrador mereceria ser encarcerado? Tal não seria punir a privação da liberdade do cativeiro com a privação da liberdade do cárcere? Se não aceitamos que se possa castigar unicamente para pagar o mal praticado — a clássica função retributiva da pena –, haverá realmente boas razões para se castigar por qualquer motivo que seja? Não deveríamos procurar outras formas de resolver os conflitos, formas que causem menos danos?

Gustavo Corção, falando sobre o valor da vida, escreveu certa vez que a consciência católica sempre viu na pena capital «um recurso extremo graças ao qual os homens mais perversos recuperaram a dignidade perdida e o direito ao respeito de todos». A afirmação, que provavelmente será considerada estranha aos leitores contemporâneos, tem no entanto um fundamento bastante simples: nós só atribuímos responsabilidades pelos seus atos àqueles que são perfeitos como nós. Inimputáveis são os loucos e as crianças — aqueles coitados que, na fórmula jurídica, são incapazes de perceber o caráter ilícito de sua atitude ou de se determinar de acordo com esse entendimento (Código Penal, 26). Inimputáveis são seres humanos defeituosos, incompletos, inferiores. Apregoar o abolicionismo universal das penas, assim, é no fundo tratar a todos como perpétuos incapazes, é não lhes conceder a plenitude da condição humana.

Sobre a inadmissibilidade da pena de morte

Um leitor do blog me envia o seguinte comentário/pergunta:

O papa disse que a pena de morte é inadmissível. Isto que é interpretar corretamente o NÃO MATARÁS!!!

Respondamos com calma. A notícia à qual faz referência o meu interlocutor é esta que diz que o «Papa Francisco considera inaceitável para um cristão apoiar a pena de morte». Manchete, permita-se o comentário, reducionista e sensacionalista; data venia, o discurso de Sua Santidade «à Delegação da Associação Internacional de Direito Penal» – que pode ser encontrado na íntegra, em português, no site do Vaticano – é um pouco mais amplo do que isso.

Não teve lá muita repercussão porque, sinceramente, trata-se de um texto bastante genérico e protocolar, falando de maneira superficial sobre os lugares-comuns da doutrina penal contemporânea. Basicamente, o Papa Francisco apresenta alguns elementos em favor do Princípio da Legalidade – defende ele uma «concepção do direito penal como ultima ratio (…) limitado aos factos mais graves contra os interesses individuais e colectivos mais dignos de protecção» – e passa a elencar algumas medidas concretas que devem servir de limites à “face violenta do Estado”.

Não vejo possibilidade de discordância alguma, nem política e nem doutrinária, no que concerne às exposições de princípios. É evidente que o Direito Penal é e deve ser a ultima ratio; é incontestável que, historicamente, a pena estatal revestiu-se de requintes de crueldades hoje completamente extemporâneos e anacrônicos; é inegável que o já referido princípio da legalidade é uma conquista e uma proteção ao ser humano frente ao poder do Leviatã – de cujas arbitrariedades mesmo a história contemporânea nos dá, a cada dia, exemplos tristemente eloquentes.

Já quanto às incursões papais no terreno dos detalhes mais específicos, explique-se-lhes o sentido em que devem ser lidas com um exemplo paradigmático. Sobre a pena de morte, por cuja abolição – segundo o Papa – «todos os cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar», diga-se quanto segue.

algum material no Deus lo Vult! sobre o assunto; para não me alongar em demasia, respondo que a Doutrina Moral católica é feita de princípios imutáveis que devem ser aplicados em situações de fato, contingentes; e que, embora os princípios não mudem, as situações mudam, sim, e com incômoda freqüência, de modo que é perfeitamente possível que o mesmo princípio implique em duas respostas completamente diferentes, se completamente diferentes forem as duas situações nas quais ele é aplicado.

Praticamente nenhum dos pronunciamentos eclesiásticos das últimas décadas a respeito da pena de morte tem caráter principiológico, porque neste campo a situação já está mais do que resolvida há séculos: é prego batido e ponta virada. Na formulação do recente Catecismo, a «doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor» (CCE §2267). Isso, absolutamente, não está em discussão. O que se discute é, exatamente, a situação contingente atual: será que as atuais circunstâncias são tais que, nelas, o recurso à pena de morte é a única solução para a eficaz defesa da sociedade contra um injusto agressor?

Perceba-se que se trata aqui de um juízo de fato e, por isso mesmo, i) nem as manifestações nesta seara obrigam à Fé num nível mesmo análogo às promulgações dogmáticas; e ii) nem elas se revestem do caráter de irrevogabilidade que é próprio de matéria doutrinária. Em uma palavra, é simplesmente nonsense afirmar que a Igreja tenha revisto a Sua posição a respeito da pena capital, porque exposição racional de princípios e aplicação de princípios a situações concretas são duas esferas que de maneira alguma se confundem entre si. Na primeira delas, é legítimo, em abstrato, ao poder temporal punir os criminosos inclusive com a morte; na segunda, é perfeitamente possível que, nos Estados modernamente constituídos e com a sensibilidade contemporânea, não haja espaço para a aplicação daquela pena máxima. Como diz o poeta, mudaram as estações; nada mudou.

Todas as demais intervenções pontifícias no referido discurso – sobre questões de maioridade penal, de situações dos presídios, de punições a pessoas vulneráveis (v.g. idosos, doentes, mulheres grávidas) etc. – resolvem-se do mesmíssimo modo. Todas elas são juízos prudenciais a respeito de como se devem aplicar os princípios da Teologia Moral às questões contemporâneas, da maneira como elas concretamente se apresentam ao homem moderno – e, claro, como o Vigário de Cristo as percebe. Não são exposições de princípios  morais (e nem muito menos apresentações de novos princípios morais contrários aos anteriormente vigentes), e sim, no sentido mais clássico, casuísticas. Servem para auxiliar a razão prática, não engessá-la.

A Igreja é infalível em Fé e em Moral, sem dúvidas. Mas são bem raras as coisas que sempre são legítimas independente de qualquer coisa, ou que nunca são permitidas de nenhuma maneira (como, v.g., matar diretamente um inocente, que nunca é lícito); a maior parte delas envolve a consideração de princípios imutáveis vis-à-vis situações contingentes. E uma lista exaustiva de todas as possíveis situações de fato é obviamente irrealizável; não é a isto que se propõe a Igreja de Cristo! A Doutrina Católica é um facho de luz que devemos usar para iluminar os nossos passos, e não um sucedâneo do caminhar humano.

Aborto, pena de morte e contradições

Está surpreendentemente bom este artigo sobre pena de morte publicado por Aleteia. Aborda um tema candente dos últimos tempos – a questão da pena de morte – com uma clareza de raciocínio e capacidade de exposição de idéias fascinante. Mais ainda, ele o faz sem se furtar ao sofisma talvez mais calhorda que existe no debate pró-vida contemporâneo: o que pinta como uma monstruosa contradição alguém se dizer ao mesmo tempo contra o aborto e a favor da pena de morte.

A resposta definitiva à questão é dada imediatamente após a manchete, antes mesmo de começar o texto em si: Defender o inocente não implica renunciar à punição do culpado. Claro, conciso, irretocável. Mas o argumento vai ser melhor desenvolvido ao longo das linhas do texto, as quais valem muito uma leitura.

A defesa da vida tem um objeto muito específico. O que se afirma é a inviolabilidade da vida humana inocente. Os dois adjetivos são essenciais para a correta compreensão do assunto.

O que é inviolável, em primeiro lugar, é a vida humana, e não simplesmente a “vida”. O ser humano se utiliza de seres vivos em seu benefício o tempo inteiro: colhendo o milho para engordar o pintinho, matando o frango para assar o galeto. Independente do que possam dizer os vegetarianos radicais, tudo isso é perfeitamente razoável e legítimo. Há certas diferenças essenciais entre o ser humano e os outros animais, e tais diferenças justificam que haja um tratamento diferenciado entre estes e aquele.

[Isto obviamente não autoriza que os demais seres vivos sejam usados de forma desumana e irresponsável; não é porque podemos matar uma galinha para fazer uma canja que nos é igualmente permitido esfolar um gato, e não é porque é legítimo capinar a frente da nossa casa que não existe nunca nenhum problema moral com o desmatamento. Os ecoterroristas estão para o uso legítimo da natureza como os vegans para a alimentação humana. Ninguém precisa defender o esfolamento de felinos para provar a imoralidade do vegetarianismo radical, como ninguém precisa extinguir a Mata Atlântica para entender que os catastrofistas ambientais estão errados. O parêntese talvez seja necessário.]

Em segundo lugar, é preciso ter em conta que indiscutivelmente inviolável é a vida humana inocente. Discutir a pena de morte para um criminoso não é a mesma coisa que trair o ideal da defesa da vida, da mesma forma que discutir a cadeia para quem comete crimes não é igual a contradizer o direito de ir e vir. E da mesma forma que há uma diferença muito grande entre o ser humano e os animais irracionais que justificam as diferenças de tratamento dispensadas a ambos, há também uma diferença – menor que a primeira, por certo, mas também diferença – entre um inocente e um criminoso, que justifica pelo menos defender um tratamento desigual para ambos sem que isso implique em nenhuma contradição.

Ao contrário do que acontece com os promotores do aborto, são pouquíssimos os católicos para os quais a pena de morte é propriamente uma bandeira. Trata-se muito mais de uma questão acadêmica, especulativa, de salvaguardar a coerência da Doutrina Moral da Igreja, de compreender melhor a Justiça que se esconde para além dos costumes sociais vigentes na sociedade contemporânea – e não de introduzir a figura da pena capital no ordenamento jurídico pátrio. Todos os defensores do aborto querem que o aborto seja legalizado; nem todos os (assim chamados) “defensores da pena de morte” querem que ela seja efetivamente implantada. Isso permite ao John Zmirak (autor do texto acima indicado) fazer a seguinte genial provocação:

Eu já propus o seguinte aos liberais pró-escolha, que chamavam de hipócrita quem era pró-vida e ao mesmo tempo favorável à pena de morte: “Caros liberais pró-escolha, vamos fazer um acordo: eu deixo de apoiar a pena de morte e vocês param de apoiar o aborto. Se vocês pararem de matar os inocentes, nós concordamos em parar de matar os culpados”. Ninguém aceitou a minha proposta (…).

E o mesmo trato vale para qualquer abortista hipócrita que venha despejar erística vazia por aqui.

Há uma última coisa que o Zmirak não faz, mas que eu gostaria de fazer. Não há contradição entre ser contra o aborto e a favor da pena de morte, como foi mostrado acima, mas a recíproca não é verdadeira: há, sim, contradição, uma aberrante e clamorosa contradição, uma contradição inescapável e vergonhosa, em ser ao mesmo tempo contra a pena de morte e favorável ao aborto. É insofismavelmente contraditório e hipócrita defender ao mesmo tempo que os criminosos não podem ser condenados à morte pelos tribunais, mas as crianças inocentes podem ser mortas por suas mães sem nenhum problema. E, disso, não dá para fugir.

Todo mundo que é a favor do aborto, portanto, não tem envergadura moral alguma para se dizer contra a pena de morte. E todo mundo que é contra a pena de morte deveria, por força de coerência, opôr-se também e visceralmente à legalização do aborto, esta particular forma de pena de morte que é direcionada aos mais inocentes e indefesos dos seres humanos: as crianças no ventre materno. Agir diferente disso é que é contradição e hipocrisia.

Outros textos muito bons do John Zmirak podem ser lidos em português no próprio Aleteia. O blog dele em inglês (que eu também só conheci agora) é este The Bad Catholic’s Bingo Hall.

Ainda Uganda e leis anti-gay: esclarecimentos

Eu pus um post scriptum no texto que escrevi ontem sobre a lei anti-homossexualismo da Uganda, mas a honestidade intelectual manda que se fale com um pouco mais de vagar sobre o assunto. Ao comentar o conteúdo do projeto de lei ugandense, baseei-me no que fora escrito pelo sr. Luis Nagao em maio de 2011. Lá, o articulista dizia, verbis, o seguinte:

[O] projeto estabelece diferentes níveis de punição. Começam com prisão por determinado tempo, passando pela pena perpétua (no caso de sexo com menores de 18 anos) e avançam até morte (em casos de relações com menores de 14 anos, transmissão de AIDS, incesto ou “ofensas em série”[)].

Considerei que “ofensas em série” eram estupros em série por conta do contexto e por uma questão de proporcionalidade para com os demais crimes mencionados no mesmo parágrafo (especificamente, “relações com menores de 14 anos”, “transmissão de AIDS” e “incesto”). Mas parece que a minha interpretação não era exata.

Alguém me mostrou a íntegra do projeto de lei de 2009 (atenção, este não é o projeto atual!), e lá existe uma parte preliminar que fala sobre a “interpretação” da lei e onde são feitas diversas definições de termos. Em particular, “serial offender” significa «uma pessoa que já tenha condenações anteriores pelo crime de homossexualidade ou crimes correlatos». Como o “crime de homossexualidade” é definido na mesma lei e abrange até mesmo coisas genéricas como «ele ou ela toca outra pessoa com a intenção de cometer ato homossexual» [Parte II, 2., (1), (c)], a interpretação mais imediata da lei diz que um homossexual que for condenado duas vezes por tocar libidinosamente o seu parceiro (em princípio, mesmo que seja em privado, mesmo que seja consensual e mesmo que o parceiro seja maior de idade) pode ser classificado como “serial offender” e receber punições mais severas – o que me parece uma clara barbaridade.

Como eu disse ontem, considero este tipo de punição injusta nos dias de hoje; citando-me, «a situação atual do mundo é de tal modo que não legitima que o homossexualismo em si seja objeto do Código Penal». Concedo inclusive que uma proposta dessas justifique a redação da petição de Avaaz que eu critiquei ontem, e certamente justifica que as pessoas protestem contra semelhante projeto de lei. Creio até ser bastante evidente que é muito difícil encontrar alguém que defenda com razoabilidade tal medida extremada.

Mesmo assim, há certas coisas que não encaixam. Além da evidente desproporção entre o homem gay que toca por duas vezes com lascívia o seu “namorado” e o aidético que estupra o próprio filho, há outra incoerência de ordem prática: o “crime de homossexualidade”, neste projeto de 2009, é punido com prisão perpétua! Ora, a gente aumenta a pena em crimes reincidentes com base no princípio de que a pena original foi pouca para emendar o criminoso. Alguém se lembrar de tipificar a reincidência de um crime que se pune com prisão perpétua (!) me parece de um legalismo tão exagerado que se me afigura completamente incompreensível. Chego honestamente a duvidar da exatidão do texto deste projeto de lei que encontro somente de segunda mão, transcrito em inglês num site chamado “Box Turtle Bulletin”

Infelizmente, eu não encontrei nenhuma fonte oficial do Governo Ugandense onde o inteiro teor da proposta pudesse ser conhecido. A gente só encontra coisas de segunda mão. A notícia recente que vi em G1 (reproduzindo Reuters) diz muito laconicamente que a pena de morte «foi retirada diante da forte reação internacional», mas que «a versão que tramita atualmente no Parlamento prevê duras penas de prisão» (perpétua inclusive) para homossexuais – sem entrar em mais detalhes e sem citar fontes primárias. O verbete na Wikipedia anglófona também não traz a letra do projeto, e só linka para dezenas de notícias e artigos. Difícil dizer exatamente o que está acontecendo na Uganda neste momento.

Só o que dá para saber é que está para ser votada uma lei que pune o homossexualismo, cujo (suposto) texto de 2009 era – na minha opinião e na de muita gente – injustamente duro. O resto é especulação, à qual o bom senso recomenda parcimônia. Protestar especificamente contra a pena de morte para o homossexualismo em si é legítimo; no entanto, induzir outrem a protestar apaixonadamente contra genéricas “leis anti-gay” (quando o termo é elástico o suficiente para englobar tudo o que contraria a agenda homossexual) é se aproveitar do sofrimento alheio para passar fraudulentamente gato por lebre.

Um milhão de assinaturas contra a “terrível lei contra gays” da Uganda

Está prestes a chegar a um milhão de assinaturas esta petição de Avaaz para “barrar a terrível lei contra gays em Uganda”. O texto original da petição diz o seguinte (grifos meus):

O parlamento de Uganda pode aprovar uma lei brutal que pode implicar na pena de morte para a homossexualidade. Se eles fizerem isso, milhares de ugandenses poderiam ser executados ou condenados a prisão perpétua, apenas por serem gays.

E uma atualização diz (grifos meus, igualmente):

A pressão está funcionando! Há relatos ainda não confirmados de que a cláusula sobre pena de morte foi removida do projeto de lei em uma comissão. Mas ela pode voltar a qualquer momento e os ugandenses ainda podem ser condenados a prisão perpétua por amarem alguém. Vamos continuar aumentando nossa mobilização!

A injustiça aparenta ser tão atroz que provoca naturalmente a comoção dos que são apresentados a este projeto de lei tão bárbaro e desumano. A época em que a sodomia era punível com a morte parece pertencer a obscuras épocas de antanho, graças a Deus suplantadas pelos tempos modernos mais civilizados. De minha parte, considero a situação atual razoável: nem todas as leis aplicáveis a um certo povo numa determinada época têm, de per si, validade absoluta para outros povos de épocas distintas. Em uma palavra, a situação atual do mundo é de tal modo que não legitima que o homossexualismo em si seja objeto do Código Penal. Aqui não quero fazer juízos de valor sobre situações passadas; restrinjo-me a tratar da situação atual, onde as circunstâncias permitem (exigem até) uma certa tolerância civil aos que cometem o nefando pecado contra a natureza.

Entretanto, é preciso deixar claras duas coisas. A primeira, que a apresentação de Avaaz falsifica o projeto de lei ora em trâmite na Uganda; a segunda, que se aproveita da (deliberadamente caricaturizada) barbaridade do projeto para angariar adeptos a causas pró-gay que nada têm a ver com o que está acontecendo na África atualmente.

Quanto à primeira, basta ler este texto sobre o assunto, que não pode ser acusado de ser um fundamentalista cristão proferindo discurso de ódio contra os gays. Falando mais detalhadamente sobre o projeto de lei (coisa que Avaaz muito convenientemente se exime de fazer), ele nos explica o seguinte:

[O] projeto estabelece diferentes níveis de punição. Começam com prisão por determinado tempo, passando pela pena perpétua (no caso de sexo com menores de 18 anos) e avançam até morte (em casos de relações com menores de 14 anos, transmissão de AIDS, incesto ou “ofensas em série”[)].

Donde se vê que a história inicial estava muito mal contada. Ninguém propôs que as pessoas fossem executadas “apenas por serem gays” ou “por amarem alguém”, como insinua a petição de Avaaz. Ao contrário, as penas mais severas são para quem pratica atividade homossexual com menores (com punição mais grave para os “casos de relações com menores de 14 anos” – i.e., efebofilia e pedofilia), para quem infecta os outros com uma doença incurável, para os incestuosos e para quem é estuprador em série [p.s.: na verdade, o Projeto de Lei disponível na internet (atenção, é o de 2009, não sei se é o atual – e aliás eu acho que não, porque ele destoa bastante do que foi escrito no “Outras Palavras” que citei neste texto) diz que “serial offender” é o sujeito que já foi condenado por homossexualismo “simples” anteriormente; este único ponto (cuja interpretação imediata me parece nonsense e desproporcional ao lado dos outros casos de “Aggravated homosexuality” tipificados, mas vou considerar que talvez seja isto mesmo), desta maneira, dá razão aos protestos contra a lei].  Que diferença entre isto e o que diz na petição! Fico imaginando se eles conseguiriam tantas assinaturas assim se dissessem “liberdade para gays pedófilos!” ou “diga não à punição para os serial rapists homossexuais na Uganda!”…

Quanto à segunda, cabe notar que a Doutrina da Igreja exige que o Direito Penal seja a ultima ratio no ordenamento social, bem como que o Estado deva deixar impunes os pecados que não afetam a ordem pública. Aqui no Brasil existem muitas pessoas lutando contra a imposição da ideologia gay na sociedade, mas nenhuma delas defende que os gays sejam presos ou as lésbicas sejam executadas. Lutar para que gays não sejam executados “apenas por serem gays” ou não peguem prisão perpétua “por amarem alguém” é uma coisa; extrapolar esta luta para abarcar “casamento gay”, adoção de crianças por duplas sodomitas e políticas de inclusão cidadã do homossexualismo é outra coisa completamente diferente. Os homossexuais podem certamente contar com o apoio dos católicos para que não sejam perseguidos, presos ou mortos injustamente; afinal, é exatamente isto o que diz o Catecismo: «[e]vitar-se-á, em relação a eles [os homossexuais], qualquer sinal de discriminação injusta» (CIC §2358). Mas certamente não é possível concordar com a exaltação do pecado ou com a atribuição de direitos positivos ao vício. Entre a discriminação injusta e a imposição do gay-way-of-life como padrão de moralidade social vai uma distância enorme. Os que tentam deliberadamente confundir as duas coisas (como se a Igreja apoiasse a pena de morte para gays ou como se quem é contra esta fosse automaticamente a favor de todos os outros itens da agenda gay) falsificam a realidade e só contribuem para disseminar a confusão na sociedade.

Pena de Morte e Clemência

A Doutrina Católica sempre reconheceu a legitimidade do recurso à pena de morte quando esta é a única maneira de defender a sociedade e punir justamente o agressor. Os argumentos pela sua licitude, creio, são já amplamente conhecidos – e, conforme entendo, os “argumentos” dos que são contra ela em princípio resumem-se a um chororô naturalista e, absolutamente, não respondem às objeções dos que sempre defenderam ser permitido aos poderes públicos punirem certos crimes com a pena capital. Para quem tiver ainda alguma dúvida sobre o assunto, é imprescindível a leitura deste texto do Corção.

Uma coisa, no entanto, são os princípios que a dizem legítima e, outra, são as circunstâncias concretas nas quais ela pode ser legítima ou não. Imagino que não haja ninguém defendendo que seja lícito condenar a morte em quaisquer circunstâncias. A divergência quanto a questões de fato, neste caso, é perfeitamente legítima: de tal modo que um católico, embora não possa defender que a pena de morte é injusta em si mesma, é não obstante livre para julgá-la justa ou injusta diante de cada caso concreto.

Li hoje que o Comitê de Indultos da Geórgia (USA) negou um pedido de clemência para Troy Davis, homem negro condenado à morte pelo assassinato de um policial branco após um processo, ao que parece, bastante questionável – para dizer o mínimo. Segundo o portal de notícias do Terra, «[d]esde que foi condenado em 1991, sete dos nove testemunhas policiais se retrataram dos depoimentos alegando coerção e intimidação por parte da polícia».

um abaixo-assinado da Anistia Internacional para que se pare a execução – que ocorrerá amanhã, dia 21 de setembro. Eu não conheço os detalhes específicos deste caso e, portanto, não sei dizer se a pena é justa. Sei, contudo, que se deve evitar a todo custo condenar um inocente, como sei também que a criação de um “mártir” pode tornar (ainda mais) difícil a discussão racional sobre o assunto…

E sei também que, em todo caso, precisa de orações o sr. Troy Davis; para que encontre clemência se for inocente ou, se executado, para que aceite a expiação. E, inocente ou culpado, perdoado ou executado, que possa encontrar a Clemência do Justo Juiz, a única que – no final das contas – realmente importa. Que seja em favor dele a Virgem Santíssima. Que Deus possa mostrar-lhe misericórdia.

Superficialidades

– Uma afirmação incompleta em ZENIT: Santa Sé é contra a pena de morte. Na verdade, “[a] doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor” (CIC 2267). Portanto, a pena de morte, do ponto de vista doutrinário, é lícita; o que não significa que ela deva ser aplicada sempre e é – aí sim – somente neste sentido que se pode dizer que a Santa Sé é “contra” a pena de morte (nas aplicações circunstanciais atuais, e não no princípio).

Ver numa moratória da ONU que “a cultura da vida «hoje é compartilhada universalmente, apesar das contínuas ameaças e derivações violentas»” parece-me, data vênia, um extremo e ingênuo otimismo de Dom Agostino Marchetto. Outrossim – e mais importante -, a cultura da vida não se opõe à (lícita) aplicação da pena capital.

– A aprovação do presidente Lula no Nordeste é – vergonha!! – de 92%! Mesmo contabilizando o resto do país, ela chega a 80%! Quatro em cada cinco brasileiros aprovam o desgoverno petista! Já era sabido que o sr. presidente tinha um grande apoio da população nordestina, mas eu sinceramente me recuso a acreditar que este índice atinja mais de 90%. É absurdo demais.

– Os advogados de João da Costa – o candidato petista à prefeitura de Recife, que teve a candidatura cassada na última semana – dizem que o juiz que pronunciou a sentença em desfavor do petista é suspeito! Claro; afinal de contas, quem poderia honestamente ousar questionar a probidade incontestável das vestais do PT? Para o petismo, não têm nenhuma relevância coisas como argumentos, dados, fatos, provas, etc. A idoneidade do partido é um axioma inquestionável. Desgraçadamente, isso é especialmente válido para os eleitores recifenses que votam em João da Costa; a maior parte deles está candidamente convencida de que isto é mesmo “intriga da oposição”, “golpe”, “tapetão” e congêneres.

– Hoje é dia de São Miguel Arcanjo (no calendário novo, festa dos três Arcanjos). Que ele nos defenda no árduo e desproporcional combate que somos chamados a travar.

Sancte Michael Archangele, defende nos in praelio, contra nequitias et insidias diaboli esto praesidium: Imperet illi Deus, supplices deprecamur, tuque, Princeps militiae caelestis, satanam aliosque spiritus malignos, qui ad perditionem animarum pervagantur in mundo, divina virtute in infernum detrude. Amen.